Revista Cidade Nova |
Viver bem, contemplando a morte
CUIDAR. Uma médica dedicada a garantir autonomia,
dignidade e coragem a pacientes diante da inevitável finitude da vida.
por Daniel Fassa publicado em 13/06/2022,
AO LONGO de sua trajetória como geriatra especializada em cuidados
paliativos, Ana Cláudia Quintana Arantes acompanhou muitas pessoas em um dos
momentos mais misteriosos e desafiadores da existência: o fim da vida. As
lições aprendidas nessa profunda experiência de cuidado, compaixão, escuta e
respeito à dignidade humana estão relatadas no livro “A morte é um dia que vale
a pena viver” (Sextante), que já vendeu mais de 350 mil cópias – um vídeo de
palestra homônima ministrada por ela supera 3 milhões de visualizações no
YouTube. Formada pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-graduada pela
Universidade de Oxford, a médica conversou com Cidade Nova sobre os tabus que
ainda envolvem o tema e os possíveis caminhos para tratá-lo com leveza e
sabedoria.
Por que falar sobre a morte? E por que é tão difícil para a
sociedade ocidental encarar esse tema?
_É muito difícil falar sobre a morte, porque a gente tem muita dificuldade de
lidar com o limite. Temos a percepção de que vai dar tempo de fazer tudo, que a
gente sempre vai ter uma outra chance, que falar sobre a morte é algo mórbido,
porque deteriora a qualidade do tempo que você acha que tem. Então, quando você
pensa que vai acabar, você fica triste, frustrado, com medo. Não se fala sobre
a morte porque não se tem coragem de aproveitar o momento presente com a
qualidade que ele merece. As pessoas pensam que não falar sobre a morte faz com
que você aproveite a sua vida, mas é exatamente o contrário: quando você sabe
que vai acabar, a percepção de importância fica muito mais evidente. Então, eu
acredito que falar sobre a morte, refletir sobre esse limite do nosso tempo
aqui nessa existência faz com que a gente entre num espaço que acelera a sua
condição de se realizar na vida, porque você consegue escolher o que é
prioridade, o que faz sentido tirar seu sono à noite, o que faz sentido
exacerbar suas rugas de preocupação, o que faz sentido você sorrir. E eu penso
que a morte é uma grande aliada para você fazer essas escolhas.
Geralmente, quando falamos sobre a morte com crianças, falamos
como algo distante, restrito à velhice. Deveríamos fazer diferente? Qual o
momento certo de falar sobre a morte com os pequenos?
_Você vai se surpreender muito se conversar com uma criança sobre a morte,
porque, de uma maneira um pouco inexplicável, as crianças têm muito mais
sabedoria sobre isso que os adultos. Se tem alguém doente na família, você
poupar uma criança de se relacionar com a rotina desses cuidados vai fazer com
que você poupe esse futuro adulto da capacidade de interagir com realidades
adversas. Então, quando você tem alguém doente na família e a criança é exposta
a essa rotina de cuidados, ela percebe que tem jeito, que tem amor, respeito,
dignidade. Ela não vai saber dar nome a essas atitudes, mas, à medida que ela
vai crescendo, ela vai percebendo que isso é o correto, que isso é o bom, o
verdadeiro. Você respeitar alguém que está frágil e nem por isso deixar de
sorrir, de dar risada, de ter humor, leveza. A convivência de uma criança com
um idoso faz com que essa pessoa mais velha possa se recordar de quem ela era
quando criança e essa criança possa ter curiosidade sobre como é a vida desse
adulto mais velho.
O que a senhora aprendeu de mais essencial até hoje sobre a morte
ao acompanhar pacientes terminais e seus familiares?
_A coisa mais importante que eu aprendo todo dia é o valor da escuta. Cada
paciente que eu cuido, cada família que eu estou amparando, cada situação de
terminalidade que eu vivencio, passo a passo, é um caminho novo na vida de uma
pessoa. Eu posso ter acompanhado milhares de pessoas em final de vida, mas o
paciente que eu estou acompanhando hoje, eu nunca acompanhei antes. Então,
tenho que ter esse compromisso com a escuta, com a presença, com a atenção.
Isso é algo que eu vou aprendendo todos os dias.
O paciente terminal deve sempre saber da sua condição? Por quê?
_O paciente em fase final de vida é um ser humano que tem seu tempo limitado.
Se você tem seu tempo limitado e não sabe, você não se organiza para poder
aproveitar esse tempo da melhor forma possível. Isso não é certo. Porque,
depois que o seu tempo acabar, não dá mais para você dizer que ama, se
despedir, organizar suas contas, passar a senha do banco, explicar para quem
você quer que fique o vaso da roseira na porta da sua casa de que você tanto
cuidou a vida inteira. Então, saber do tempo que te resta diz respeito a você
receber a oferta de poder escolher o que fazer com esse tempo. Eu não posso
chegar para um paciente e dizer: olha, você tem duas semanas de vida, porque
isso é errado. Eu não sei quantas semanas de vida ele tem. Mas eu posso chegar
e dizer: olha, o que você tem é muito sério e, já que você está se sentindo bem
agora, o que você quer que eu te ajude a fazer com esse tempo em que você está
feliz nesse momento? Porque pode ser que na próxima semana a gente tenha
problemas e você se sinta mais frágil. E se o paciente perguntar “eu vou
morrer?”, eu respondo para ele “por que você está me fazendo essa pergunta?”.
Em geral a resposta é “porque eu sinto que eu vou morrer”. Aí eu faço outra
pergunta: “e como você se sente diante disso, você tem medo, você está
preocupado, o que eu posso fazer para permanecer ao seu lado nesse momento?”. A
coisa mais nociva que você pode dizer a uma pessoa que te pergunta “eu vou
morrer?” é “todo mundo vai” ou “imagina, vira essa boca pra lá, tem que pensar
positivo, fazer fisioterapia, tratar o câncer, tem que acreditar, tem que ter
fé”. Se você só tem isso para dizer para uma pessoa que fala sobre a morte dela
é porque você não sabe falar sobre isso, não tem capacidade, coragem, força,
maturidade, não tem leveza para estar ao lado dessa pessoa. Quando a pessoa
fala da morte, ela quer ouvir alguém que cuide dela, não alguém que a proíba de
pensar sobre isso.
Além dessa transparência e dessa sabedoria na comunicação com uma
pessoa em fase final de vida, que outras recomendações fundamentais uma família
deve seguir para lidar com a situação?
_Seja presente de uma maneira incondicional. Não viabilize o seu afeto apenas
numa condição de vitória. Você pode viabilizar seu afeto também na fragilidade.
Você precisa ser corajoso para poder enfrentar a decisão de permanecer do lado
dessa pessoa, porque quem cuida tem a opção de ir embora. A pessoa que é
cuidada não tem a opção de sair da situação que ela está vivendo, ela tem que
enfrentar. Então, a família e os amigos precisam deixar do lado de fora do
quarto qualquer percepção de pena. A gente não pode ter pena de quem está
passando por um processo de adoecimento. Você tem que ter compaixão. E a compaixão
te permite ofertar o que você sabe, o que você conhece, o que você tem de
afeto, todos os seus recursos, você ofertar para aquela pessoa poder passar
pelo processo de adoecimento da forma mais bonita, serena, leve possível. Isso
não significa que muitos momentos não vão ser pesados, difíceis e tristes,
horrorosos. Mas quem está ao lado precisa desenvolver essa capacidade de
viabilizar o estado de felicidade apesar da fragilidade.
As religiões em geral podem ajudar as pessoas a viver os momentos
finais da vida, seja da própria, seja de um ente querido? E quem não tem uma
religião ou mesmo fé na existência de Deus, como pode encarar esse momento?
_A religião é um caminho estruturado que viabiliza uma certa sensação de
controle sobre experiência do sutil, sobre a experiência do transcendente. A
experiência do transcendente é muito assustadora para o ser humano. Ela
precisa, muitas vezes, desse caminho estruturado, de uma ritualística, de uma
postura, de um espaço, entre aspas, de segurança para expressar a sua
espiritualidade. Então, a religião é um caminho de expressão da
espiritualidade, ele não é o único. Uma pessoa pode ser muito espiritualizada e
não ter religião nenhuma. Ao mesmo tempo, você pode ter uma pessoa muito
religiosa e ela ter zero de experiência, ela é superfixada no mundo concreto,
na palavra, nas imagens, nas roupas, coisas que podem dar sorte, coisas que
trazem para ela alguma segurança nessa vida, mas com zero experiência de
transcendência, de pertencimento à natureza daquilo que se move, que se
modifica, a nossa natureza de começo, meio e fim. Quando você tem uma pessoa
que é muito religiosa, você pode ter uma experiência muito bonita, muito
favorável de pacificação, de tranquilidade nesse momento da morte, se a pessoa
utiliza a religião como um caminho de amor e de verdade. Não importa a
religião. Tem pessoas de todas as religiões que vão vivenciar o processo de
morte de uma maneira belíssima, tranquila e serena, porque elas vivenciam a
religião nesse caminho de amor e verdade. E você vai ter pessoas que não têm
religião nenhuma e vivenciam mortes belíssimas. Aliás, eu sempre comento que os
ateus essenciais – não os ateus convertidos, porque o ateu convertido é aquele
que brigou com Deus, Deus “não se comportou” e ele se diz ateu –, o ateu
essencial realmente não acredita, ele não tem a percepção de um ser superior
que comanda e organiza tudo, ele não terceiriza a responsabilidade do destino
dele. Então, ele vive a vida como se fosse um presente, como se fosse um
milagre, porque na verdade é. Então ele vivencia isso de maneira muito sagrada.
O ateu essencial, todos os que eu acompanhei até hoje, tiveram mortes
belíssimas, superserenas, com famílias bem estruturadas, claro que com
sofrimentos, pelo rompimento do vínculo, pela saudade, pela dor, pela tristeza
desse momento, sim, porque são seres humanos, mas a percepção da importância da
vida é vivenciada pelo ateu de uma maneira tão verdadeira, potente e bela como
é vivenciada por qualquer super-religioso.
A ciência e as profissões da saúde evoluem a cada dia no
tratamento das doenças. Mas esses profissionais também têm evoluído no trato
com as pessoas, especialmente aquelas que estão para morrer?
_Ainda não. Nós temos muita dificuldade de trazer uma responsabilidade para o
profissional de saúde em relação ao acompanhamento dos seus pacientes até o
último momento. Um exemplo disso: a sociedade americana de oncologia publicou
um guideline em 2017 (guidelines são publicações que fornecem parâmetros das
boas práticas dentro de uma área de atuação do profissional da saúde) que
trouxe a consciência de que todo paciente com câncer que tem doença
metastática, ou seja, a doença não está num ponto único dentro do corpo da
pessoa, a doença se espalhou, deveria receber cuidados paliativos precoces,
porque o tempo e a qualidade de vida dessas pessoas melhoram muito. Mas a
maioria dos oncologistas não pratica isso, porque existe um preconceito de que
se chamar cuidado paliativo significa que desistiu do paciente, jogou a toalha.
E o paciente fica recebendo quimioterapia enquanto está morrendo. É uma atitude
ruim do ponto de vista da qualidade de vida de que você pode privar o paciente.
Para além do preconceito existe a ignorância. Então temos que trabalhar para
levar a formação de cuidados paliativos ao alcance de todos os profissionais de
saúde do país, porque aí todos vão saber reconhecer um paciente que se
beneficia e reconhecer o caminho para que esse paciente receba o melhor cuidado
a que ele tem acesso.
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