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A grande prova da nova humanidade que vivemos é a capacidade de comunicar a beleza do amor a todos e em tudo que fazemos.
Deus realmente age na história? A vida dos cristãos é diferente daquela dos outros seres humanos? Nós mesmos muitas vezes nos fazemos essas perguntas, principalmente em momentos de grande dor ou de flagrantes injustiças. J. Ratzinger, futuro Bento XVI, no livro Introdução ao Cristianismo (São Paulo: Loyola, 2017), com argúcia lembra que momentos de dúvida são algo que crentes e não-crentes têm em comum. O crente, em alguns momentos, duvida que Deus exista; o não-crente, pergunta se é verdade que Deus existe.
O encontro com Cristo
Numa carta ao jornalista italiano Eugenio Scalfari, datada de 4 de setembro de 2013, o Papa Francisco evoca uma passagem da Deus caritas est (DCE 1), escrevendo: “a fé, para mim, nasceu do encontro com Jesus: um encontro pessoal, que tocou o meu coração e deu uma direção e um sentido novo à minha existência”. Quem não fez esse encontro pessoal com Cristo não tem uma fé verdadeira – pode até professar os valores cristãos por uma questão de tradição, mas será uma confissão abstrata, mais próxima de uma “filosofia de vida” do que de uma experiência religiosa. Não se trata de julgar aqui a vida dos outros, alguns realmente nunca receberam o anúncio cristão, outros o receberam de uma forma adulterada e por isso não fizeram o encontro, outros ainda, quando conheceram a Cristo, não empenharam sua liberdade em conhecê-Lo.
Muitas vezes, porém, mesmo nós que temos plena consciência de termos feito esse encontro que mudou nossa vida, quando queremos testemunhar nossa fé, nos deparamos com essa questão: como explicar aos demais que Ele realmente atuou em nossa vida e na vida dos outros cristãos? Como dizer que Ele é eficaz quando existe tanto mal e tanto sofrimento no mundo?
Onde reside a eficácia de Deus
Esse tema surgiu numa reunião de minha pequena comunidade e tomo aqui “emprestada” a resposta dada por meu amigo Olívio Pereira de Oliveira Júnior: Deus se mostra eficaz na história quando faz com que transpareça, em nossa vida, uma humanidade nova – um modo diferente, mais condizente com nossos anseios mais profundos, de nos relacionarmos com os outros, com as coisas e até mesmo com nós mesmos, com nossas alegrias e dores, êxitos e fracassos.
Essa resposta inclui muitas coisas, mas devemos superar dois reducionismos igualmente fatais: o do moralismo esquemático e o da fantasia otimista.
É verdade que, nesse caminho de mudança de vida trazida pelo encontro com Cristo, tendemos a ser moralmente melhores, tanto por compreendermos mais do que é a bondade no mundo quanto por nos esforçarmos para corresponder à graça recebida. Contudo, isso é diferente de um esquema moral incapaz de aceitar os outros, de olhar com misericórdia para os próprios erros e para os erros do outro. Somos todos incoerentes, em maior ou menor grau, e nossa coerência é importante, mas não é a prova definitiva de que Deus agiu em nossa vida. Nesse sentido, a grande prova da nova humanidade que vivemos é a capacidade de comunicar a beleza do amor a todos e em tudo que fazemos. Nesse testemunho, nossa incoerência é realmente uma dificuldade, mas não dá a última palavra, pois até mesmo em nossos erros é o amor e a misericórdia de Deus que se evidenciam.
A fantasia otimista é a ilusão de que para os cristãos nada vai dar errado, como se entre nós não houvesse também aqueles que morrem precocemente por causa de doenças, acidentes ou vitimados pela violência, como se não fracassássemos em negócios ou perdêssemos combates e guerras, como se não tivéssemos mais que sofrer o cancelamento cultural ou mesmo o martírio de sangue. Deus é “nosso escudo”, como dizem vários Salmos, mas não nos termos da concepção humana. Ele reservou o martírio para seu próprio Filho Unigênito, não poupará a nós dos sofrimentos. Porém, a humanidade nova permite viver até mesmo o sofrimento de um outro modo. Sempre me marcou a experiência de um casal de amigos que, no enterro da própria filha, consolava os demais. Evidentemente sofriam uma grande dor, mas sua humanidade renovada por Cristo lhes dava uma esperança e um conforto que lhes permitia ser sinal do amor de Deus para os demais.
A liberdade ineficiente
Surpreendentemente, a nossos olhos, Deus nunca deixa de ser eficaz, de fazer sua graça agir na vida dos seres humanos e no mundo; mas, de certa forma, escolheu por não ser eficiente.
Aqui vale uma explicação técnica, do uso dos termos pelos estudiosos do funcionamento de processos e operações. Ser eficaz significa atingir um objetivo almejado, superar a dificuldade que se apresenta. Ser eficiente significa fazer isso com o mínimo de esforço, com o menor gasto de recursos. Se devemos ir de São Paulo ao Rio de Janeiro, nos perdemos no caminho e passamos primeiro por Belo Horizonte, não deixamos de ser eficazes, mas não fomos eficientes.
Deus é eficaz, garantiu que possamos ser salvos, conforme seu desígnio de amor, mas, também por amor, deu-nos o livre-arbítrio, a possibilidade de renegarmos Sua graça, de sermos incoerentes, de termos a necessidade de construir um mundo que pode ser melhor ou pior em função de nossas opções. Poucos mistérios de Deus são tão incompreensíveis para nós, seres humanos, como o do livre-arbítrio. É fato que a obra de Deus no mundo, a nossos olhos, ao menos, parece ser menos eficiente por causa dele – mas Deus parece valorizar muito a nossa liberdade, a ponto de se conter, de ser “menos eficiente”, para respeitá-la.
Fonte: https://pt.aleteia.org/
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