A missão da Igreja | pnscjm |
A missão de Cristo é a missão da Igreja
Entrevista com o cardeal John Njue, arcebispo de Nairóbi, sobre a Igreja africana, que nasceu da caridade dos missionários, num continente à mercê da vontade dos países desenvolvidos.
Entrevista com o cardeal John Njue de Davide Malacaria
Ele também estava na
Basílica de São Pedro em 24 de novembro. Ele também recebeu o barrete vermelho
do papa Bento XVI. O novo purpurado John Njue, do Quênia, é um dos dois
prelados africanos criados cardeais no último consistório. Nascido em 1944, e
batizado em 1948, mudou-se para Roma, depois de estudar no seminário de Nkubu,
onde estudou Filosofia na Pontifícia Universidade Urbaniana, diplomando-se em
1969. Em 1974, obteve também o diploma de Teologia na Pontifícia Universidade
Lateranense. Em Roma, foi ordenado por Paulo VI, em 6 de janeiro de 1973, no
350º aniversário da instituição da Congregação para a Evangelização dos Povos.
Em 1986, foi ordenado bispo da diocese de Embu, onde ficou até 2002, quando foi
promovido a arcebispo coadjutor de Nyeri. Em 6 de outubro de 2007, foi nomeado
arcebispo de Nairóbi. Ocupou vários cargos na Conferência Episcopal Queniana,
até se tornar seu presidente. Coube a ele estar à frente do vicariato
apostólico de Isiolo, na qualidade de administrador apostólico, depois do
assassinato do bispo Luigi Locati, que chocou toda a Igreja Católica em 14 de
julho de 2005. Um episódio que o prelado nem gosta de comentar, à espera de que
a justiça siga seu curso. Encontramos o purpurado em Roma,logo após o
Consistório, no mesmo dia em que morreu o arcebispo de Nyeri, dom Nicodemus
Kirima, ao qual o cardeal Njue estava muito ligado afetivamente. Ele menciona o
fato quase de leve, como quando alguém fala de uma coisa que deixa nas mãos de
Deus.
O cardeal John Njue | 30Dias |
O senhor acha que sua
nomeação é também um gesto de solicitude do Santo Padre perante o continente
africano?
JOHN NJUE: Recebi esta nomeação como um relâmpago num céu sereno, uma surpresa:
em setembro, me informaram que seria transferido de Nyeri, onde eu era
arcebispo coadjutor, para Nairóbi, e mais tarde, em 17 de outubro, recebi a
nomeação a cardeal. Foi uma coisa difícil de aceitar, humanamente falando, pois
não me agradava deixar meu confrade, o arcebispo de Nyeri. Era uma coisa que me
custava, mas a obediência acabou por vencer em mim, pois, desde o dia em que me
tornei diácono, depois sacerdote, e, depois ainda, no momento de minha
ordenação episcopal, sempre tive no coração a atitude de ser aberto à vontade
de Deus. Em particular à vontade de Deus que nos é revelada por intermédio da
Igreja, e que a Igreja nos comunica por intermédio do Papa. Assim, aceitei com
esse espírito de obediência, cheio de esperança no Senhor, que continua próximo
de nós quando nos dá uma responsabilidade. Vejo essa nomeação como uma
homenagem não apenas a mim, mas também à Igreja do Quênia, à Igreja da África
e, também, à Igreja universal, pois, quando alguém é nomeado cardeal, torna-se
quase um consultor do Santo Padre, cada um com sua responsabilidade, que recebe
para o bem da Igreja. Foi por isso que aceitei. E que seja feita a vontade de
Deus. Nesse sentido, eu me lembro de que, quando encontramos o Santo Padre,
durante a recente visita ad limina dos bispos do Quênia, e
depois, de novo, quando o encontramos como novos cardeais, ele insistiu muito
nisto: devemos ser instrumentos nas mãos de Deus, para que a Igreja cresça,
como quis o Senhor desde o início.
Nessa visita ad limina, de 19 de novembro passado, o Papa disse:
“A comunidade [cristã] deveria estar aberta à acolhida de todos os que se
arrependem de ter participado do grave pecado do aborto, e deveria guiá-los com
caridade pastoral a aceitarem a graça do perdão, a necessidade da penitência e
a alegria de poderem entrar mais uma vez na vida de Cristo”. Essas palavras
chamaram a atenção da mídia.
NJUE: Um pecado continua a ser um pecado. Segundo o Direito, esse pecado tem
como conseqüência uma excomunhão. Mas o que se condena é o ato, enquanto a
pessoa continua a ser uma pessoa. Sobre a questão do aborto, a posição da
Igreja me parece muito clara. Como também me parece evidente que nós, bispos,
devemos estar próximos das pessoas que vivem nessa dificuldade, encorajando-as
a deixar que o Senhor retome seu lugar em sua vida. É uma expressão da
misericórdia de Deus. Não acho que as palavras do Papa sejam uma maneira de
dizer que o aborto é um pecado soft , mas, ao contrário,
acredito que foi um convite a uma pastoral da misericórdia, que reconheça como
ponto central o amor de Deus por todos, sejam quais forem as situações
individuais. Para que esse amor seja correspondido, é preciso que haja a
conversão e, portanto, é preciso que a pessoa deixe Deus retomar seu lugar,
segundo a aliança feita no dia do batismo.
Quais são, na sua opinião, as prioridades da Igreja africana, num continente
atormentado pela fome e pela guerra?
NJUE: No meu modo de ver, as Igrejas na África têm uma gênese comum, tendo como
origem a obra de nossos missionários. Pois, se a Igreja existe hoje na África,
é graças à dedicação e à generosidade de nossos missionários e, por extensão,
das Igrejas mais antigas. Agora que o número de missionários vem diminuindo em
quase todos os países, parece-me que uma de nossas primeiras responsabilidades
é ajudar nosso povo a tomar consciência de que é Igreja, promover sua
auto-suficiência do ponto de vista da evangelização, de forma que a
evangelização fique a cargo de africanos, sejam eles leigos, sejam religiosos.
Que nosso povo sinta, com isso, que ele é a paróquia, que ele é a diocese e,
enfim, que ele é a Igreja. Tivemos experiências muito bonitas nesse sentido: em
lugares em que o povo antes vivia sempre pedindo, hoje ele é quem dá. Acho que
devemos trabalhar nessa direção. Para que isso aconteça, outra prioridade é a
catequese. A Igreja vive num mundo mergulhado na globalização, um fenômeno que
não deixa ninguém de fora: mesmo quem não sabe inglês é influenciado por ele.
Para ficarmos firmes na fé que recebemos, acho que devemos focalizar nossa obra
na catequese. Outra prioridade que devemos repensar fortemente é o chamado a
viver com espírito de generosidade. A África é atormentada por guerras, por
catástrofes, é verdade. Mas não devemos esperar sempre que a ajuda venha de fora.
Creio que somos chamados a viver um espírito de generosidade, tanto de um ponto
de vista humano quanto cristão. Outra coisa muito importante a meu ver é a
independência política: infelizmente, muitos de nossos países têm governos
ligados, por diferentes razões, a poderes externos, que condicionam sua ação.
No Quênia, nos últimos cinco anos, tivemos uma experiência positiva; o último
governo buscou o bem-estar do povo, o que é testemunhado pelo tipo de
financiamento da despesa pública: mais de 93% das despesas de nosso governo
foram possíveis graças aos impostos pagos pelo povo. Isso a meu ver é uma coisa
muito interessante, pois, limitando o financiamento externo, o governo evitou
que os financiadores pudessem ditar suas condições. A questão da independência
política das nações africanas é uma coisa muito importante: infelizmente, no
chamado “primeiro mundo” nem todos dão possibilidade aos países em via de
desenvolvimento de viverem sua identidade e dignidade. Existem compromissos
demais, que impedem uma verdadeira libertação dos povos africanos. ra
poder caminhar bem, creio que esse caminho para a independência política deva
começar em cada país, o qual, depois, poderá compartilhar com os outros essa
experiência.
Bento XVI impõe o barrete cardinalício a John Njue, a 24 de novembro de 2007 |
Em 27 de dezembro
serão realizadas as eleições políticas no Quênia. A Igreja teve alguma
influência nesse processo?
NJUE: A história do Quênia começa quando o país se torna independente da
Inglaterra, em 1964. Depois da independência, não era tão fácil assim construir
um Estado, ter visões concretas sobre como agir. Foi um caminho. E, por mais de
quarenta anos, tivemos governos que, em vez de velar pelo bem-estar do povo,
usaram o poder político para interesses próprios. Com o passar do tempo, foi
ficando cada vez mais difícil para o povo aceitar isso, pois, nesse meio tempo,
cresceu a exigência de um Estado realmente democrático. No meu modo de ver, foi
dada uma resposta a essa exigência em 2002, com o governo instalado naquele
ano. É claro que esse governo também tinha limites, mas, olhando para trás,
constatamos que as coisas estão melhor do que antes. Foram lançadas as raízes,
agora é preciso seguir em frente. Nestes anos tivemos dificuldades, houve um
grande debate sobre o referendo para a mudança da Constituição, essa mudança
foi rejeitada pelo povo, e isso porque, na minha opinião, a discussão, mais que
sobre a mudança da Constituição, se desviava para questões políticas. Teremos
eleições em 27 de dezembro, e nós, como bispos, temos a responsabilidade de
educar o povo. Assim, publicamos uma carta pastoral pedindo ao povo que
assumisse essa responsabilidade com seriedade, pois essas eleições não são uma
coisa facultativa, mas uma responsabilidade, ou melhor, podemos até dizer, uma
obrigação. Para que elas possam se realizar de maneira límpida, pedimos que se
evite qualquer violência e que seja banida a compra e venda de votos. Além
disso, pedimos aos jovens que não se deixem instrumentalizar pelos políticos.
Fizemos esse apelo a todos, católicos e não católicos, exercendo o que
acreditamos ser nossa responsabilidade.
Como é a relação com o islã em seu país?
NJUE: O Quênia é um país leigo, que respeita todas as religiões. Os islâmicos
em nosso país constituem menos de 10% da população. Mas existem. E, para viver
bem com eles, é preciso que haja um diálogo. Em nosso país, esse diálogo é uma
realidade graças também ao trabalho de uma comissão interna da Conferência
Episcopal que promove o diálogo com o islã e com as outras religiões. Quem
causa problemas são os políticos, pois há quem queira atrair os votos dos
muçulmanos com promessas perigosas. Durante a recente visita ad limina,
enquanto estávamos em Roma, quisemos alertar para este perigo: ninguém deve
basear sua campanha eleitoral em promessas que podem criar dificuldades para o
país. Sobre questões que tocam o interesse nacional, o povo deve ser
consultado.
Bem perto do Quênia, vem acontecendo o drama da Somália...
NJUE: É uma questão muito complicada. Infelizmente, o governo fechou as portas
aos refugiados da Somália. Não sabemos por quê. Provavelmente possuem
informações que não tornaram públicas. Pedimos explicações. Nesse meio tempo,
ajudar os refugiados é difícil: só podemos ajudar, e temos ajudado, aqueles que
já estão em nosso país. Nossa Cáritas procura ajudar aos muitos que ainda
continuam dentro da Somália por meio dos canais humanitários que outras entidades
também utilizam.
Em 24 de agosto de 2000, era encontrado morto o padre John Anthony Kaiser,
religioso da Sociedade Missionária de São José de Mill Hill. Entre outras
coisas, esse homicídio foi o centro de um clamor insistente por justiça da
parte da Igreja do Quênia. Depois de vários expedientes utilizados
principalmente para fazer crer que a morte teria sido suicídio, em agosto o
tribunal competente estabeleceu que foi mesmo um homicídio.
NJUE: Esse homicídio testemunha o tormento em que estava mergulhado o Quênia
antes de 2002. Padre Kaiser denunciou diversas injustiças, e acreditamos que
tenha sido esse o motivo de seu assassinato. Em agosto, a corte estabeleceu que
não foi suicídio, como se queria fazer crer anteriormente. Antes de ir a Roma,
estive na procuradoria-geral, pois queremos saber exatamente o que aconteceu: o
caso não está encerrado. É um clamor por justiça que repetimos mais uma vez,
por ocasião do aniversário de sua morte.
Fiéis visitam o túmulo do padre John Anthony Kaiser |
NJUE: O que a Igreja pode fazer, em primeiro lugar, é ser Igreja. E ser Igreja significa viver o que o próprio Senhor indicou no início de sua missão na sinagoga de Nazaré: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção para anunciar a Boa-nova aos pobres” (Lc 4, 18). Acredito que, com essas palavras, o Senhor quisesse dizer que essa é a missão. E a missão de Cristo é a missão da Igreja. Se a Igreja não tem missionariedade, parece-me que não é mais Igreja. Está morta, é uma mera associação. Tanto a Igreja na África quanto a dos países desenvolvidos deveriam recuperar essa realidade de missão. Por isso, mesmo onde existem sacerdotes africanos, creio que seja necessário continuar a haver uma presença de missionários, pois sua missão não se esgotou de modo algum. Sua presença, mesmo mínima, deve continuar, pois representa um ponto de referência que lembra à Igreja africana de onde ela vem. Por outro lado, nós, africanos, também devemos nos tornar missionários, não apenas contribuindo para a Jornada Missionária, mas promovendo a geração de uma comunhão entre a Igreja dos países desenvolvidos e a que provém das terras de missão. Assim, daremos testemunho de uma Igreja como verdadeiro corpo de Cristo.
O senhor foi ordenado sacerdote por Paulo VI, autor da célebre frase: “A África aos africanos” ...
NJUE: Paulo VI disse essas palavras em Campala, em 1969, querendo dizer que os africanos já eram missionários de si mesmos. A meu ver, era um desafio, uma maneira de dizer: vocês já se devem ver como amadurecidos, capazes de levar adiante a obra missionária. Quando Bento XVI nos deu o barrete e o anel, foi uma experiência muito tocante, que, entre outras coisas, me fez reviver o momento de minha ordenação sacerdotal, que se deu bem aqui, em São Pedro, naquele distante 6 de janeiro de 1973. Na época, havia uma crise de vocações, mas Paulo VI nos encorajou a permanecermos unidos ao Senhor, pois dessa forma levaríamos adiante a missão que nos havia sido dada...
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