A passagem do Mar Vermelho | Cléofas |
A passagem do Mar Vermelho e do Rio Jordão
1. A Travessia do Mar Vermelho (Êx 14,
5-31)
O texto sagrado refere que, após a
décima praga, Faraó, aterrorizado, não somente permitiu, mas ordenou que
deixassem os israelitas o Egito. Estes, pois, levando mulheres, crianças, gado
e demais haveres, se retiraram em caravana na direção do Oriente. Chegando,
porém, às margens do mar Vermelho, viram-se em graves apuros, que lhes teriam
acarretado a morte, não fora uma intervenção extraordinária de Deus.
Com efeito, após as primeiras etapas
dos emigrantes, Faraó, arrependido da concessão, resolveu ir-lhes ao encalço.
Alcançou-os perto do Mar, de sorte que a multidão israelita se viu comprimida
entre as águas, de um lado, e as tropas inimigas, do outro.
Como escaparia ao perigo iminente?
O Senhor fez com que a coluna de
nuvem que antecedia Israel se colocasse entre este e o exército egípcio,
causando opacidade entre os dois acampamentos. A seguir, Moisés, a mandado de
Javé, estendeu a mão sobre o mar; um vento impetuoso de leste pôs-se a soprar
durante uma noite inteira, de modo a formar no meio das águas um corredor. Era
a oportuna válvula de salvação…; sem demora, os israelitas por ele enveredaram,
passando o mar a pé totalmente enxuto! Quando os soldados de Faraó perceberam
que os fugitivos se haviam lançado na direção do mar, seguiram-lhes as pegadas,
entrando no corredor aberto. Eis, porém, que, ao despontar o dia, Moisés, por
nova ordem do Senhor, mais uma vez estendeu a mão sobre as águas, que então se
fecharam sobre a tropa de egípcios, fazendo perecer os perseguidores.
Como se há de entender esta narrativa?
Do texto sagrado se poderia inferir
que o Senhor, dividindo o Mar Vermelho, realizou um prodígio totalmente
insólito ou alheio à natureza dos elementos.
Pergunta-se, porém, se o texto
bíblico insinua de fato tão extraordinária intervenção da Onipotência Divina.
A isto respondem competentes estudiosos
que não somente o livro sagrado, mas também os vestígios de arqueologia
recém-descobertos levam a concluir que a divisão do Mar Vermelho se deve a uma
concatenação de causas naturais, só tendo de extraordinário as circunstâncias
(hora, duração…) em que se verificou. Eis como se explicam tais autores:
Nos tempos pré-históricos comunicavam
entre si os mares Mediterrâneo e Vermelho, os quais só aos poucos foram sendo
separados pelo istmo de Suez. Na época de Moisés (ca. 1240 a.C.), julga-se que
o Mar Vermelho se prolongava ainda até os Lagos Amargos e talvez o Lago de
Timsah (situados hoje no referido istmo); o porto de Colzum, donde na Idade
Média partiam as naves para a Índia, é hoje um acervo de ruínas situadas a dez
quilômetros do litoral. Nesta sua extremidade setentrional o mar, que tendia a
recuar, não devia ser muito profundo. Há decênios, Bourdon, oficial de marinha
francês encarregado durante muitos anos do serviço do canal de Suez, descobriu
vestígios de uma estrada que, passando pelo Egito, desembocava num vau ainda
hoje existente na parte meridional dos Lagos Amargos, e se prolongava do outro
lado das águas; em território egípcio, ou seja, ao pé do Djebel (monte) Abu
Hasa, o mesmo explorador encontrou as ruínas de um edifício que, conforme as
inscrições, era simultaneamente templo religioso e fortim militar; esta
construção, situada nas proximidades da estrada e do vau referidos, devia
servir para proteger a fronteira, impedindo que entrassem na terra do Faraó
invasores indesejáveis, e reabastecer as caravanas que do Egito se dirigiam às
minas do Monte Sinai.
Tais descobertas levam a admitir que,
nos tempos de Moisés, havia uma passagem através das águas que então
constituíam o Mar Vermelho, passagem cuja utilização dependia das circunstâncias
de ventos, marés etc. Ora o texto bíblico insinua que o êxodo dos israelitas se
fez por um vau. Sim, o fato de que os egípcios se precipitaram águas adentro
supõe que não tinham a travessia na conta de coisa impossível; deviam julgar
que a passagem se tornara praticável naquela ocasião; e com razão, visto o
vento impetuoso que, de leste soprando sobre as águas, era bem capaz de nelas
abrir um corredor.13 O que os egípcios ignoravam – incorrendo por isto num erro
fatal – era o modo maravilhoso como se tornara transitável o vau: o vento fora
suscitado por Deus no momento favorável a Israel, e deixaria de soprar logo que
o povo eleito o pudesse dispensar (sabe-se, aliás, que o sirocco da Arábia, o
vento qadim, começa de imprevisto e cessa também repentinamente).
A seguinte observação parece do seu
modo insinuar que a travessia se fez pela parte setentrional do mar, parte que
atualmente já não existe: o texto bíblico fala de passagem do “Mar dos Juncos”,
não do “Mar Vermelho”, em trechos como Js 2, 10; S1 105, 7.9.22; 135, 13. Ora
às margens do Mar Vermelho nas se encontra o arbusto do junco; disto se poderá
deduzir que se desenvolvia outrora junto às águas que prolongavam o hodierno
Mar Vermelho e deviam constituir propriamente o Mar dos Juncos.
Não se creia que no desastre hajam
perecido todo o exército do Egito e o Faraó. O texto de Êx 14, 7 refere ter-se
feito uma seleção de armas e guerreiros para constituírem a tropa perseguidora;
talvez pouco mais de mil carros armados hajam sido tragados pelas águas. Quanto
ao monarca, é possível que tenha tomado parte na expedição; o texto bíblico,
porém, não o diz (cf. Êx 14, 23.26.28; 15,4).
Um ou outro exegeta tenta de certo modo
ilustrar a passagem, recordando o seguinte episódio da história profana:
Nas famosas guerras púnicas entre
Roma e Cartago (264-146 a.C.), o chefe romano Cipião dito “o Africano”
conseguiu entrar em Cartago por um lado da cidade contíguo a uma laguna; já que
as águas pareciam constituir obstáculo natural aos invasores, os cartagineses
não se preocuparam com a defesa dessa zona. Ora aconteceu que um vento
inesperado removeu as águas e permitiu que quinhentos soldados romanos tivessem
acesso a Cartago (cf. Tito Lívio, Historiar. 1.26, 46; Políbio 10, 4s).
O episódio é significativo; contudo
não se lhe pode atribuir grande peso na exegese do Êxodo, se se têm em vista os
termos muito sóbrios com que os historiadores greco-romanos se referem ao
assunto.
2. A passagem do Rio Jordão (Js 3,
7-17)
A Moisés sucedeu Josué no governo do
povo de Deus. O novo chefe devia consumar a obra do antecessor, que morrera
deixando Israel à entrada da terra de Canaã. Ora, para penetrar na Palestina,
era mister atravessar o Jordão. Isto se fez, como narra o hagiógrafo, a pé
enxuto, paralelamente ao que se deu na travessia do Mar Vermelho.
A semelhança dos dois fenômenos é de
certo modo explicada pelo texto sagrado: conforme Js 3, 7; 4, l4.23, o Senhor,
no início da missão de Josué, quis reproduzir o portento realizado no princípio
da obra de Moisés, a fim de mostrar a Israel que Deus dirigia o novo guia como
sempre orientara o anterior.
E como se deu a intervenção divina?
A caravana israelita estacionou à
margem esquerda do Jordão, diante da cidade de Jericó, situada no além-rio; a
torrente tem aí a largura de 80 m aproximadamente, mas é pouco profunda. Corria
então a época da messe (março-abril), época em que o sol da primavera faz
derreter as neves do monte Hermon, ocasionando a cheia brusca e impetuosa do
rio (cf. Eclo 24, 26 e 1Cr 12, 15). Não se via como a multidão de Israel
poderia atravessar. Então o Senhor mandou que dois sacerdotes, carregando a
arca da aliança, entrassem no rio; logo que isto se deu, a caudal interrompeu o
seu curso, detendo-se perto da cidade de Adom (hoie El-Damieh, a 25 km ao Norte
de Jericó); assim o leito da corrente apareceu seco, e os filhos de Israel o
transpuseram facilmente; os sacerdotes detentores da arca permaneceram imóveis
por todo o tempo da travessia; terminada esta, retiraram-se e o rio continuou o
curso normal.
Que interpretação se há de dar ao texto
bíblico?
Nada se pode objetar a quem julgue
que as águas do Jordão, contrariamente às leis da natureza, constituíram
repentinamente um muro imóvel em Adom.
Não é necessário, porém, admitir tão
estupenda intervenção do Criador no episódio. Com efeito, na região de Adom
(El- Damieh) as águas do Jordão correm entre bancos de argila, cuja altura
atinge 13m, e que facilmente desmoronam; ainda em 1927, por ação de um
terremoto, desabaram sobre o leito do rio, obstruindo o fluxo das águas pelo
espaço de 21 horas. Além disto, sabe-se que em 1267 o sultão do Egito
Melik-Daher-Bibars II desejava mandar construir uma ponte sobre o Jordão na
região de El-Damieh; o ímpeto das águas, porém, dificultava grandemente o
lançamento das pilastras de base; a corrente chegou a derrubar e arrastar
algumas destas depois de implantadas; nessas circunstâncias a própria natureza
veio em auxílio aos operários: à meia noite de 7 para 8 de dezembro,
verificaram que o Jordão deixara de correr; então, à luz de tochas,
apressaram-se em consolidar os fundamentos da ponte. Contudo, a fim de se
certificar da futura estabilidade da obra, quiseram investigar, a causa do
fenômeno: enviaram rio acima exploradores a cavalo, os quais averiguaram que
enorme bloco de terra da margem ocidental se havia precipitado no rio,
constituindo uma barreira artificial; as águas, em consequência, se espalhavam
pelo vale ao Norte do dique; somente pelas dez horas da manhã, após haver
vencido o obstáculo, pôde a torrente retomar o seu curso normal.
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