Concílio de Nicéia | Apologistas Católicos |
Santo Agostinho e a infalibilidade dos Concílios
universais
NELSON SARMENTO
Falar da posição de Santo Agostinho sobre a
infalibilidade dos Concílios universais não é uma tarefa fácil, pois o Santo
Doutor nunca tratou do tema ex professo. O que podemos
concluir com facilidade é que negou a infalibilidade de Concílios regionais,
como se depreende de sua visão sobre o Concílio de Cartago sob São Cipriano
(cf. Carta 93,38 e Tratado sobre o Batismo, livro 6, cap. 2, 3) e do Concílio
de Bagai (cf. Réplica à carta de Parmeniano, livro 3, cap. 6,29 e Carta 23,5).
No entanto, uma busca minuciosa nas obras de Santo Agostinho traz várias considerações importantes do Doutor da Igreja ao tratar de Concílios universais, vejamos:
1) Na sua visão, os Concílios universais são a
última instância de julgamento na Igreja:
“Concedamos que aqueles bispos que julgaram em Roma não eram bons
juízes; ainda os ficava o concílio plenário de toda a Igreja, no qual se
poderia discutir a causa frente a esses mesmos juízes; se fosse demonstrado que
eles julgaram mal, anularia-se sua sentença. Demonstrem os donatistas que eles
executaram ambas as coisas. Eu provo facilmente que não as executaram, com
somente ver que o mundo inteiro não está em comunhão com eles. Se as
executaram, foram novamente vencidos, com sua própria separação demonstra”.
(Carta 43, 19)
“Se ela, salvando a paz, uns creram ainda uma coisa e outros outra sobre
este ponto, enquanto um concílio universal não havia tomado uma determinação
clara e autêntica, cobriria a caridade da unidade o erro da fraqueza humana,
como está escrito: O amor cobre uma multidão de pecados. Vou
referir-me agora ao bem-aventurado mártir Cipriano, em cujos escritos
encontramos preciosos documentos; e o faço precisamente porque estes donatistas
querem apoiar-se carnalmente em sua autoridade quando na realidade é sua
caridade a que os fulmina espiritualmente. (...) Com efeito, naqueles tempos,
antes que a unanimidade de toda a Igreja houvesse confirmar com a sentença do
concílio plenário o que se devia fazer nesta questão, pareceu-lhe, reunido com
cerca de oitenta bispos africanos, que era preciso batizar de novo a todo
aquele que vinha à Igreja tendo recebido o batismo fora da comunhão da Igreja
católica”. (Tratado sobre o batismo, livro 1, cap. XVIII, 27-28)
2) Tacha de cismáticos aqueles que não obedecem a
decisão de um Concílio universal:
“Ainda seguem batizando fora da Igreja; se pudessem, rebatizariam à
própria Igreja. Oferecem seu sacrifício na dissenção e o cisma e saúdam ao povo
em nome da paz, enquanto lhe privam da paz da salvação. Rasgam a unidade de
Cristo, blasfemam contra a herança de Cristo, expulsam o batismo de Cristo”.
(Carta 43,21)
“eles que estão convictos de haver perpetrado uma ruptura cismática da
Unidade Cristo não por trezentos e dez bispos, mas pela autoridade dos do mundo
inteiro”. (Réplica à carta de Parmeniano, livro 3, cap. 6, 29)
3) Diz aos donatistas que, após uma controvérsia
obscura sobre um ponto teológico, um Concílio universal confirma qual é o
“pensamento seguro de salvação”:
“Já é tempo, creio, de não dar a impressão de servir-me de argumentos
humanos. Já nos tempos precedentes da Igreja, antes do cisma de Donato, a
obscuridade desta controvérsia fez que ilustres varões e mesmo bispos animados
de grande caridade, ficando sempre a salvos a paz, discutissem entre si e
flutuassem de tal modo que não coincidiam os variados estatutos dos concílios
em suas diversas regiões, até que, dissipadas todas as dúvidas, confirmou-se em
um concílio plenário de todo o orbe qual era o pensamento seguro de salvação”.
(Tratado sobre o batismo, livro 1, cap. 8, 9)
4) Diz que os Padres conciliares estabeleceram o
termo ‘homousios” no Concílio de Nicéia com a autoridade da verdade e com a
verdade da autoridade:
“Logo o Pai e o Filho são de uma mesma substância. É isto que significa
aquele ‘homousios’, que os Padres católicos estabeleceram com a autoridade da
verdade e com a verdade da autoridade no Concílio de Nicéia contra os hereges
arianos” (Contra Maximino e Ário, II, XIV, 3)
Tudo isso é suficiente para concluir que Santo
Agostinho defendia a infalibilidade dos Concílios universais? Tendo a crer que
sim, e vários teólogos católicos têm argumentado através dessas passagens,
desde São Roberto Bellarmino[1] e Melchor Cano[2] até aos mais modernos[3]. No entanto, é inegável que ainda abre
espaço para um protestante tergiversar, ainda mais lembrando que o
protestantismo tem uma visão eclesiológica bem diferente da nossa.
Há outra forma, no entanto, de evidenciar que para
Santo Agostinho os Concílios universais são infalíveis. Nessa forma de
argumentar recorrerei a um silogismo, demonstrando que as premissas, maior e
menor, encontravam-se, claramente, no pensamento de Santo Agostinho, e que a
conclusão, portanto, é inevitável pela lógica. Provavelmente a genialidade de
Santo Agostinho não se furtaria à conclusão que suas próprias premissas
demandam. O silogismo é uma argumentação dedutiva. Exemplificando: Premissa
maior: Todo homem é um animal racional. Premissa menor: Carlos é um homem.
Conclusão: Carlos é um animal racional. A premissa maior que “1) a Igreja
universal não pode errar” estava presente em Santo Agostinho. A premissa menor que
“2) os Concílios universais são expressões da Igreja universal”, igualmente.
Daí que Santo Agostinho devesse concluir, portanto, que os Concílios universais
não podem errar. Estando esses dois pressupostos referidos abundantemente no
pensamento do Santo Doutor é muito improvável que Santo Agostinho negasse a
infalibilidade dos Concílios universais.
1) A IGREJA UNIVERSAL NÃO PODE ERRAR
Foram várias as passagens encontradas nesse sentido
nas Obras do Doutor de Hipona. Os dizeres são muito fortes e dificilmente
questionáveis.
“Por conseguinte, embora não se apresente nenhum exemplo certo a este
respeito tomado das Escrituras canônicas, mantemos, contudo, neste assunto a
verdade das mesmas Escrituras, ao praticar o que já pareceu bem à Igreja
universal, que recomenda a autoridade das mesmas Escrituras. Assim, como
a santa Escritura não pode enganar, qualquer um que teme ser enganado pela
obscuridade desta questão, deve consultar a mesma Igreja, assinalada
sem ambiguidade pela santa Escritura. Mas se duvidas que a santa Escritura
recomenda a esta Igreja que se estende em número tão abundante por todos os
povos, e se não o duvidasse não estarias ainda no partido de Donato, eu te
abrumarei com testemunhos abundantes e claríssimos, tomados da mesma autoridade,
a fim de que com tuas concessões, supondo que não te aferras à tua obstinação,
façam-te confessar isso. Ainda antes te mostrarei que nada verdadeiro pudeste
responder a minha carta, que trataste de combater”. (Réplica ao gramático
Crescônio, Livro 1, cap. 33, 39)
Contra o donatista Crescônio, Santo Agostinho
refutava o rebatismo de hereges. Santo Agostinho argumenta que, embora não haja
nas Escrituras nenhum exemplo claro a esse respeito, deve-se praticar o que a
Igreja universal admite. E em seguida acrescenta o que é mais importante: como
a Santa Escritura não pode enganar, qualquer um que teme ser enganado por causa
da obscuridade do tema, deveria consultar a própria Igreja, assinalada pela
Santa Escritura. Nada mais claro! Quem consulta a Igreja universal não pode ser
enganado, já que a Bíblia não pode enganar ao recomendar essa mesma Igreja. Ou
seja, Santo Agostinho prova a infalibilidade da Igreja universal através da
autoridade das Escrituras inerrantes.
“Vêm, pois, estes sedutores e perguntam a um homem que não entende as
divinas Escrituras como podem estar no céu os governadores das trevas, para
que, ao não saber responder, seja arrastado por eles ao engano, pois toda alma
ignorante é curiosa. Mas quem conhece bem a fé católica e vive protegido pelos
bons costumes e a verdadeira piedade, embora não conheça sua heresia, sabe como
responder-lhes. Pois ninguém pode enganar ao que conhece o que atém a
fé católica, difundida pelo mundo inteiro, já que ela vive segura, sob o
governo de Deus, frente aos ímpios e pecadores e frente aos próprios católicos
negligentes”. (O combate cristão, cap. IV, 4)
Santo Agostinho nesta passagem é claríssimo que
quem conhece o que atém a fé católica, difundida pelo mundo inteiro, não pode
ser enganado, já que ela vive segura, sob o governo de Deus. Dito em outras
palavras: o fiel que conhece o que crê a Igreja universal não pode ser
enganado, pois essa crença vive segura sob a assistência de Deus
“Como contraponto destes dentes, aparecem os dentes da Igreja, sob
cuja autoridade os crentes se vêem cortados do erro dos gentios e das doutrinas
heterogêneas, e se vêem transvasados a ela que é corpo de Cristo”.
(Salmo 3)
Santo Agostinho está comentando ao verso 7 do Salmo
3. Este verso fala sobre Deus quebrando os dentes dos pecadores. O contraponto
desses dentes dos ímpios são os dentes da Igreja, sob cuja autoridade os
católicos se vêem cortados do erro e das doutrinas heterodoxas. Não é preciso
dizer mais nada.
“É algo evidente, o aceita a fé, o aprova a Igreja, é
verdade”. (Sermão
1)
Em latim a frase é assim: Manifestum est, admittit
fides, approbat Ecclesia catholica, verum est. Repare que ele toma por
verdadeiro algo pelo fato da Igreja católica o aprovar. A Igreja o aprova,
verdadeiro é.
“A Igreja de Deus, cercada por tanta palha e
cizânia, tolera muitas coisas, mas Ela não aprova nem faz
aquilo que é contrário à fé ou à virtude, nem tampouco Ela se cala perante
essas coisas.” (Ep. 55. n 35 al 119)
Mais uma vez a infalibilidade da Igreja universal é
manifesta em Santo Agostinho. A Igreja não aprova nem faz aquilo que é
contrário à fé ou à virtude.
“Vejamos, então, o que me ensina Manes. Examinaremos antes de tudo
aquele livro ao que denominais Carta do Fundamento, no qual se
contém quase tudo o que vocês creem. Quando nos lia naquele tempo de minha
miséria, dizia-nos que éramos iluminados por vocês. Começa assim: “Manes,
apóstolo de Jesus Cristo pela providência de Deus Pai. Estas são as palavras
saudáveis que emanam da fonte perene e viva”. Se os agrada, considera com boa
paciência o que pergunto. Não vejo que o seja apóstolo de Cristo. Suplico-vos
que não se irritem e comeceis a maldizer-me. Sabeis que me propus não crer
temerariamente em nada o que é dito por vocês. Pergunto, então, quem é esse
Manes. Respondeis: O apóstolo de Cristo. Não o creio. Não terás já o que dizer
ou fazer. Prometeste-me a ciência da verdade e agora me obrigar que creia o que
ignoro. Talvez me leias o Evangelho e tente mostrar-me nele quem é Manes. E se
te encontrasses com alguém que ainda não crê no Evangelho, que farias se te
dissesse: Não o creio? Eu, na verdade, não creria no Evangelho se não
me movesse a ele autoridade da Igreja católica”. Portanto, se obedeci aos que
me diziam que cresse no Evangelho, por que não iria obedecer aos que me dizem:
“Não creias nos maniqueus”? Escolhe o que queres. Se diz: “Creia nos
católicos”, eles me admoestam que não os outorgue a mais mínima fé; portanto,
crendo-lhes, não posso crer-te a ti; se dizes: “Não creia nos católicos”, não
agirás retamente ao obrigar-me a crer em Manes em virtude do Evangelho, porque
cri nele pela pregação da Católica. Se, pelo contrário, diz: “Fizeste bem em
crer nos católicos enquanto louvam o Evangelho, mas não fizeste bem em crê-los
quando vituperam a Manes”, crês-me tão néscio como para crer o que tu queres e
não crer o que tu não queres, sem dar razão alguma? Meu comportamento é, então,
muito mais justo e mais cauto ao não passar a ti, dado que ao menos uma vez cri
nos católicos, a não ser que no lugar de mandar-me crer, faça-me saber algo com
toda claridade e evidência. Por consequência, se vai dar-me alguma razão, deixa
de lado o Evangelho. Se te agarras ao Evangelho, eu me agarrei naqueles
por cujo mandato cri no Evangelho, e por cuja ordem em nenhum modo crerei em
ti. Porque se, casualmente, pudesses falar algo claro no Evangelho sobre a
condição de apóstolo de Manes, terás que encerrar peso ante mim à autoridade
dos católicos que me ordenam que não te creia; mas reduzida essa autoridade já
não poderei crer nem no Evangelho, posto que havia crido nele amparando-me na
autoridade deles. E dessa maneira, nenhum valor terá para mim o que
saques dele. Portanto, se no Evangelho não se fala nada claro sobre a condição
de apóstolo de Manes, crerei nos católicos antes que a ti. Se, por
outro lado, lês nele algo claro em favor de Manes, não te crerei e nem neles. A
eles não crerei porque me enganaram a respeito de ti; a ti tampouco porque me
apresentas uma Escritura na qual havia crido graças aqueles que me mentiram.
Mas longe de mim não crer no Evangelho! Crendo nele não acho modo de
poder crer também em ti. Entre os nomes dos apóstolos que ali se lêem não se
acha o de Manes. Nos Atos dos Apóstolos lemos quem ocupou o lugar do
que entregou a Cristo. Se creio no Evangelho, necessariamente crerei nesse
livro porque a autoridade católica me recomenda igualmente um e outro
escrito. No mesmo livro lemos também o relato conhecidíssimo da
vocação e apostolado de Paulo. Lê-me agora, se podes, um texto do Evangelho
onde se nomeie a Manes como apóstolo, ou de qualquer outro livro no que
confesse haver já crido. Vai ler-me, acaso, aquele no que o Senhor prometeu aos
apóstolos o Paráclito? Em relação a esse texto, considera quantas e de quão
grande peso são as razões que me apartam e me impedem crer em Manes”. (Réplica
à carta chamada "do Fundamento", 5)
Essa passagem tem uma frase muito utilizada pela
apologética católica: “Não creria no Evangelho, se não me movesse a ele a
autoridade da Igreja”. Para contextualizarmos, Santo Agostinho replica um livro
que se dizia revelado de Manes, chamado “Carta do Fundamento”. Os maniqueus
queriam incentivar Santo Agostinho a crer na inspiração deste livro. Santo
Agostinho responde, primeiramente, no capítulo imediatamente anterior, por que se
encontra na Igreja católica. Fala dos motivos que lhe sujeitam ao seu seio: o
consenso dos povos, a autoridade incoada com milagres, a sucessão apostólica da
cátedra do Apóstolo São Pedro, até o episcopado de seu tempo, o nome
"católica" que só esta Igreja obteve entre tantas heresias. Santo
Agostinho, após isso, explica porque não pode aceitar a suposta inspiração de
Manes. Ele explica que somente crê no Evangelho por causa do mandato da
autoridade da Igreja Católica, que contém “tantos e tão poderosos laços”.
Explica que essa mesma Igreja Católica ordena que ele não creia nos Maniques.
No caso em que os maniqueus comprovassem pelo Evangelho a existência clara em
favor de Manes, Santo Agostinho disse que já não poderia crer nos católicos.
Acrescenta que, neste caso, não poderia mais crer no Evangelho, pois foi
através daquela autoridade que foi movido a crer no Evangelho. Calvino quis
explicar as palavras de Santo Agostinho no sentido de que um infiel é induzido
a crer no Evangelho por causa da reverência à Igreja, da qual ele aprende sobre
o Evangelho. Mas essa interpretação é uma distorção gritante ao contexto. Santo
Agostinho não está dizendo que crê no Evangelho simplesmente no sentido de que
outros católicos lhe levaram a esse conhecimento. Diz que a autoridade da Igreja
lhe recomenda crer no Evangelho e por isso crê, e se a Igreja errasse sobre
Manes já não poderia crer nem mesmo no Evangelho. Acrescenta depois que crê nos
Atos dos Apóstolos e no Evangelho porque a Igreja recomenda (obriga) um e
outro. Se a Igreja apenas o levasse ao conhecimento da existência do Evangelho,
como quer Calvino, como é que ele diz que já não creria no Evangelho se a
Igreja errasse sobre os Maniqueus? Não faz o menor sentido.
Santo Agostinho faz alusão claríssima a
infalibilidade da Igreja. Não faz sentido crer numa autoridade como inerrante
(as Escrituras), baseado numa autoridade falível (a Igreja, como querem os
protestantes). Além disso, ele é claro que a Igreja não poderia errar sobre o
que diz sobre Manes, pois do contrário já não poderia crer no Evangelho.
“Parece-te que disse algo muito agudo quando interpretas que o nome
de Católica não significa uma comunhão universal, mas a observância de todos os
divinos preceitos e de todos os sacramentos. Embora a Igreja
chama-se Católica porque retém toda a verdade, enquanto que as diversas
heresias retém uma só parte dessa verdade, quem te disse que nos apoiamos nesse
nome de Católica para demonstrar que a Igreja está estendida por todas as
nações, e não na promessa de Deus e nos manifestos oráculos da própria
Verdade? Pelo visto, tudo o que pretendes persuadir-me é, em resume,
que somente há ficado os rogatistas com direito e apelidar como católicos,
porque observais todos os preceitos divinos e todos os sacramentos, e que
unicamente em vós achará a fé o Filho do Homem quando voltar. Perdoa, não o
creio. Talvez tenhas a audácia de afirmar que vós não estais na terra, mas no
céu, para que entre vós possa achar-se a fé, que o Senhor anunciou que não
encontraria na terra. Contudo, o Apóstolo nos impôs tanta cautela, que nos
mandou anatematizar ao anjo do céu se no evangeliza uma coisa distinta da que
temos recebido. Como pelas divinas letras teríamos a confiança de haver
recebido a Cristo manifesto, se não recebemos pelas mesmas fontes a Igreja manifesta?
Por muitos expedientes e subterfúgios que urdais contra a simplicidade da
verdade, por muitas névoas de falsidade astuta que difundes, será anátema quem
pregar que Cristo não padeceu nem ressuscitou ao terceiro dia, posto que isso o
temos recebido pela verdade evangélica: Era necessário que Cristo
padecesse e ressuscitasse dentre os mortos ao terceiro dia. Pois do
mesmo modo será anátema quem pregar uma Igreja fora da comunhão de todas as
nações, posto que temos recebido pela própria verdade o que se diz na
continuação: E que seja pregada em seu nome a penitência e remissão dos
pecados por todos os povos, começando por Jerusalém. Devemos, então,
reter sem vacilar: Quem os pregar algo fora do que haveis recebido,
seja anátema... Temos que dizê-los mais alto o que dizemos a todos os
donatistas. Suponhamos, por um impossível, que alguns achem motivo
bastante justo para separar sua comunhão da comunhão do mundo inteiro.
Suponhamos o que se chama Igreja de Cristo pode haver-se separado justamente da
comunhão de todos os povos. Como sabeis que na sociedade cristã, tão
difundida por toda parte, não houve uma justa e distante separação antes da
vossa? Talvez por ser antiga não pôde chegar até vós a fama de sua justiça. Por
que a Igreja está entre vós, no lugar de que entre aqueles que talvez se
separaram antes? “Veja como, por não saber isso, convertestes em um problema
para vós mesmos”. (Carta 93, 23, 25)
Aqui um donatista explicava que a expressão
“Católica” não se deve entender como uma comunhão universal, mas como a
observância de todos os divinos preceitos e de todos os sacramentos. Santo
Agostinho responde que é justamente este o conceito que os católicos dão ao
termo “Católica”. Acrescenta que não existe Igreja Católica fora da comunhão de
todas as nações. Diz em seguida que é impossível achar um motivo justo para
separar-se da comunhão do mundo inteiro. A Igreja de Cristo nunca seria outra
senão a comunhão de todos os povos. Portanto, para Santo Agostinho a Igreja que
observa todos os divinos preceitos, e que, por isso, chama-se “Católica”, é
justamente esta do mundo inteiro. A infalibilidade, portanto, é inegável, a
partir do termo “Católica”, por onde “retém toda a verdade”.
“Pedes-me que trate com prudência e cautela a questão da Trindade, isto
é, da unidade de divindade e da distinção de pessoas, para que a cordura e
minha doutrina e ingênio, como tu dizes, dissipe a névoa de tua mente e assim
possas ver com teus olhos, iluminados pelo fulgor de minha inteligência, o que
agora não podes pensar. Mas olha, de repente, se esta súplica está conforme com
tua anterior convicção. Ao princípio da mesma carta, na qual me apresentas tua
súplica, afirmas haver-te convencido de que “é necessário averiguar a
verdade por meio da fé, no lugar que por meio da razão. Se a fé da santa
Igreja, diz, houvesse de se aceitar pela razão e disputa e não pela piedade e a
crença, ninguém alcançaria a bem-aventurança senão os filósofos e oradores. Mas
aprouve a Deus escolher o débil deste mundo para confundir o forte, e salvar
aos que creram pela estultícia da pregação. Por isso, não tanto há que buscar a
razão quanto o seguir a autoridade dos santos”. Segundo estas palavras
tuas, máxime neste ponto fundamental em que se apoia toda nossa fé, deverias
pensar em teu dever de seguir a autoridade dos santos sem pretender de mim uma
razão para entender”. (Carta 120, 2)
Neste caso, Santo Agostinho responde um consulente
chamado Consencio, que queria explicações sobre o tema da Trindade. Santo
Agostinho relembra as próprias palavras de Consencio que diziam que é
necessário averiguar a verdade por meio da crença da Igreja universal,
portanto, é mais importante buscar a autoridade dos santos do que a razão.
Santo Agostinho diz que as palavras de Consencio é um ponto fundamental em que
se apoia toda nossa fé. Se devemos seguir a autoridade da Igreja antes de
seguir à razão, não se vê como a falibilidade da Igreja universal pode ser
compatível com esse pensamento de Santo Agostinho. Como crer que a autoridade
dos santos seria um ponto fundamental em que se apoia toda nossa fé se tal
autoridade é falível? Como a verdade seria averiguada por meio da crença da
Igreja universal se esta é falível?
“Por causa do seguro julgamento de todo o mundo não podem ser bons
aqueles cristãos que se separam do resto da terra em qualquer parte que
estejam” (Réplica a carta de Parmeniano, livro 3, 24)
A evidência se encerra na expressão seguro
julgamento ou juízo de todo o mundo (Securus iudicat orbis terrarum). Essa
expressão de Santo Agostinho foi muito importante na conversão de Newman, como
o mesmo relata. Newman disse que tais palavras de Santo Agostinho lhe
impressionaram com um poder que ele nunca tinha sentido antes, comparando ao
"Tolle, lege,—Tolle, lege", da criança que converteu ao próprio Santo
Agostinho[4].
“Assim o afirma a autoridade da madre Igreja, assim consta no cânon bem
fundado da verdade: qualquer um que lance seus aríetes contra esta robustez e
contra este muro inexpugnável, ele mesmo se arrebentará” (Sermão 294, 18)
A autoridade da santa Madre Igreja é uma regra
seguríssima da verdade, qualquer um que tentar derrubar esse muro imbatível,
será abatido. O contexto é sobre a prática universal do batismo infantil, que
Santo Agostinho usava como argumento.
“Esta passagem aplica-se àqueles a quem o Senhor não abandona quando o
procuram. Ele tem sua morada em Sião, o que significa contemplação e é o
portador da imagem da Igreja atual, como Jerusalém é portadora da imagem da
futura Igreja, isto é, da cidade dos santos que já desfrutam da vida dos anjos.
Com efeito, Jerusalém se traduz por visão da paz. Por outro lado, a
contemplação precede à visão, assim como esta Igreja precede aquela cidade
imortal e eterna, objeto de promessas. Mas se trata de uma precedência
temporal, não por razões de dignidade, uma vez que é mais digno de estima o fim
em que nos esforçamos para chegar, do que os meios que usamos para atingir esse
objetivo. De fato, praticamos a contemplação para chegar à visão. Mas
mesmo uma contemplação, por mais minuciosa que fosse, levaria ao erro se o
Senhor não residisse formalmente na Igreja atual. E a esta Igreja foi
dita: o templo de Deus é santo, e esse templo sois vós. E em outra
passagem: no homem interior, Cristo vive pela fé em seus corações.
Nos é ordenado, então, cantar ao Senhor que reside em Sião, para louvar em
unidade de coração ao Senhor que habita na Igreja. Narre suas ações entre os
povos. Já foi feito e nunca vai deixar fazer-se ". (Salmo 9, 12)
Santo Agostinho explica que a palavra Sião significa contemplação e é imagem da Igreja atual. Explica que a Igreja atual pratica a contemplação para chegar a visão do bem do século vindouro. E o que é mais importante: esta contemplação, por muito minuciosa que fosse, cairia ao erro se o Senhor não residisse na Igreja atual. Ora, segundo Hebreus, “a fé é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos” (11,1). Com uma fé falsa é impossível fazer uma verdadeira contemplação. Segue-se que a Igreja é infalível.
2) OS CONCÍLIOS UNIVERSAIS SÃO EXPRESSÕES DA IGREJA
UNIVERSAL
Há várias passagens de Santo Agostinho onde se
refere aos “Concílios plenários do mundo inteiro” e que a Igreja universal, por
vezes, se manifesta por meio dos Concílios plenários. Vejamos:
“Já é tempo, creio, de não dar a impressão de servir-me de argumentos
humanos. Já nos tempos precedentes da Igreja, antes do cisma de Donato, a
obscuridade desta controvérsia fez que ilustres varões e mesmo bispos animados
de grande caridade, ficando sempre a salvos a paz, discutissem entre si e
flutuassem de tal modo que não coincidiam os variados estatutos dos concílios
em suas diversas regiões, até que, dissipadas todas as dúvidas, confirmou-se
em um concílio plenário de todo o orbe qual era o pensamento seguro de
salvação”. (Tratado sobre o batismo, livro 1, cap. 8, 9)
“Com efeito, naqueles tempos, antes que a unanimidade de
toda a Igreja houvesse confirmar com a sentença do concílio plenário o
que se devia fazer nesta questão, pareceu-lhe, reunido com cerca de oitenta
bispos africanos, que era preciso batizar de novo a todo aquele que vinha à
Igreja tendo recebido o batismo fora da comunhão da Igreja católica”. (Tratado
sobre o batismo, livro 1, cap. 18, 28)
“Na África somente condenaram alguns. Mas estes foram respaldados logo
pelo juízo favorável do mundo inteiro”. (Réplica à carta de
Parmeniano, livro 1, cap. 3, 4)
“eles que estão convictos de haver perpetrado uma ruptura cismática da
Unidade Cristo não por trezentos e dez bispos, mas pela autoridade dos
do mundo inteiro”. (Réplica à carta de Parmeniano, livro 3, cap. 6, 29)
A lógica de Santo Agostinho é simples. Como cada
Bispo administra a pessoa de sua igreja, vez que a igreja está no bispo, como
ensina São Cipriano (cf. Epistola 66,8.3), a reunião de muitos deles numa
assembléia conciliar pode chegar ao ponto de ser representativa de todo o mundo
católico.
Os especialistas[5] discutem se nessas passagens Santo Agostinho se referia ao Concílio de Nicéia (325), ecumênico, ou ao Concílio de Arles (314). Por isso optamos no artigo em falar de infalibilidade de Concílios universais de modo genérico e não simplesmente de Concílios ecumênicos. Se um Concílio não ecumênico pode ser veículo de manifestação da Igreja universal por causa da sua representatividade, com muita mais razão o será um Concílio ecumênico. Eusébio mesmo chama o Concílio de Nicéia com 318 bispos de reunião do mundo inteiro (de vita Constantini, lib. 3).
A conclusão, portanto, é imperiosa. Essa forma de argumentar em favor da infalibilidade dos Concílios universais sempre foi usada pela apologética católica. Parece-me absurdo pretender que Santo Agostinho se esquivasse da conclusão contida em seus princípios.
Para terminar, é importante resolver três objeções comumente lançadas por protestantes contra a tese, a partir de três passagens de Santo Agostinho.
Objeção 1: Santo Agostinho negou a infalibilidade
dos Concílios universais, pois diz que os concílios plenários mais antigos “são
frequentemente corrigidos por aqueles que os seguem”. (Tratado sobre o batismo,
livro 2, cap. 3, 4). Se são corrigidos é porque admite-se que contêm erros.
Resposta: Santo Agostinho falava ou de questões de
fatos não dogmáticos ou de questões disciplinares. Explico melhor: A Igreja
Católica nunca negou que os Concílios universais podem errar em fatos não
dogmáticos ou serem corrigidos em questões disciplinares. Os fatos não
dogmáticos não dizem respeito à doutrina, mas à matéria profana. Por exemplo,
se os bispos de Nicéia recebessem fraudulentos escritos de “Fulano de Tal” e
por esta razão resolvessem condená-lo no Concílio Ecumênico sem conhecer da
falsidade dos documentos apresentados, não haveria erro doutrinal, mas erro de
fato. Assim, alguns teólogos argumentam com relação à condenação de Honório por
alguns Concílios, eis que, explicam, as cartas apresentadas foram falsificações
de orientais, e por isso os bispos enganados o condenaram. Outro exemplo, se um
Concílio ecumênico diz que a capital do Rio Grande do Sul é Bagé o erro seria
de fato. Os católicos defendem que os Concílios universais são infalíveis em
questões de fé e moral e não de fato não dogmático. É possível que Santo
Agostinho esteja falando em questões desse tipo, pois a questão particular dos
católicos com os donatistas era sobre Ceciliano, se este devia ou não entregar
os livros sagrados aos inimigos de fé. Por outra parte, as questões
disciplinares de costumes podem ser corrigidas, mas não dogmas. Os preceitos são
alterados de acordo com a mudança de tempos, lugares e pessoas, e essas
mudanças podem ser chamadas de correções, não por causa de ser ruim no momento
em que foi estabelecido, mas porque passou a ser ruim com a mudança de
circunstâncias. As duas respostas podem ser confirmadas pela continuação das
palavras de Santo Agostinho, pois fala de Concílios que são corrigidos quando o
que foi fechado é aberto por algum experimento. A experiência tem como campo os
fatos positivos, as questões de fato ou de costumes, não os assuntos de direito
universal ou de fé.
Outra possibilidade é que Santo Agostinho esteja usando o termo “emendari” no sentido de “melhorados”, na ótica de um desenvolvimento homogêneo de doutrina, e não de correção de erros. Robert B. Eno considera possível que a melhor definição seja esta no contexto, eis que põe entre parênteses a palavra “improved” com uma interrogação, representando uma pergunta retórica em seu artigo já citado Doctrinal authority in Saint Augustine, p. 163. Em nota de rodapé este autor também cita: “Sieben, op.cit.92. Para E.Benz, "emendari" significa "melhorar" ao invés de "corrigir”, Veja-se E.Benz, Augustins Lehre von der Kirche (Mainz,1954) 35”. Se Santo Agostinho quer falar de melhora nada disso é contrário à doutrina católica sobre os Concílios universais. De fato, só com essa melhora ou progresso poderia o Concílio de Trento definir uma verdade que o de Viena havia apresentado com a nota de provável (Denz. 483 e 800). Outro exemplo: O Concílio de Laodicéia rechaça certos livros canônicos, pois não havia certeza de sua canonicidade naquele tempo. O Concílio de Cartago III, com uma análise mais apurada do tema, pôde admitir tais livros.
Objeção 2: Santo Agostinho diz que os concílios
posteriores são os preferidos “entre as gerações posteriores aos [concílios] de
data anterior, e o todo é sempre, com razão, visto como superior às partes”
(Tratado sobre o batismo, livro 2, cap. 9, 14). Logo, os concílios são
falíveis.
Resposta: Santo Agostinho estava contrapondo o Concílio de Cartago sob Cipriano a um Concílio universal (de Arles ou Nicéia). É claro que um Concílio regional pode ser corrigido e preterido a um Concílio universal. Sto. Agostinho explica que para se conservar a unidade de todo o corpo deve-se aceitar o que diz um Concílio universal. Santo Agostinho diz que esse seria o procedimento do próprio São Cipriano se naquele tempo a unanimidade da Igreja, através de um concílio universal, tivesse resolvido a questão sobre o rebatismo.
Objeção 3: Santo Agostinho diz que não dever arguir
o Concílio de Nicéia, nem seu adversário o Concílio de Rímini, mas ambos a
autoridade da Sagrada Escritura (cf. Contra Maximino e Ário, II, XIV, 3). Logo,
não considerou o Concílio de Nicéia infalível.
Resposta: Não se segue. Santo Agostinho apenas estava dizendo que por conta de Maximino não estar preso à autoridade do Concílio de Nicéia nessa disputa, e por Santo Agostinho não estar em relação ao Concílio de Rímini, seria uma perda de tempo que um e outro citassem um Concílio que um ou outro não considerava legítimo. Daí que devessem usar uma fonte que ambos concordassem para argumentar. Santo Tomás de Aquino tem um trecho bastante similar com relação a outras fontes: “os maometanos e pagãos, não convém conosco em admitir a autoridade de alguma parte da Sagrada Escritura, pela que pudessem ser convencidos, assim como contra os judeus podemos disputar pelo Velho Testamento, e contra os hereges pelo Novo. Mas esses não admitem nenhum dos dois. Temos que recorrer, então, a razão natural, que todos se vêem obrigados a aceitar, mesmo quando não tenha muita força nas coisas divinas”. (Suma contra os gentios, livro 1, cap. 2)
[1] On Councils, their nature and
authority, St. Robert Bellarmine, SJ. Translated by Ryan Grant, Mediatrix
Press. Kindle.
[2] De Locis Theologicis: http://www.documentacatholicaomnia.eu/03d/1509-1560,_Cano_Melchior,_De_Locis_Theologicis,_LT.pdf
[3] Dictionnaire de Théologie Catholique,
verbete AUGUSTIN (Saint) . III. Doctrine: http://jesusmarie.free.fr/dictionnaire_de_theologie_catholique_lettre_A.html;
Constancio Palomo, SAN AGUSTIN Y LA AUTORIDAD DE LOS CONCILIOS, Salmanticensis.
1961, volume 8, #3. Pages 581-602., este cita vários outros autores.
[4] http://www.newmanreader.org/works/apologia/part5.html
[5] Robert B. Eno, Augustinian Studies
12:133-172 (1981), Doctrinal authority in Saint Augustine, p. 162; Dictionnaire
de Théologie Catholique, verbete AUGUSTIN (Saint) . III. Doctrine: http://jesusmarie.free.fr/dictionnaire_de_theologie_catholique_lettre_A.html.
PARA CITAR
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