Abnegação e paciência | Alcindo Almeida |
Abnegação e paciência
RAÍZES ILUMINADAS
Há alguns anos, chegou-me às mãos
um recorte de jornal que me sensibilizou profundamente. A autora do artigo, uma
professora de uns trinta e poucos anos, evocava a memória de seus pais, já
falecidos, que tinham sido em tempos idos meus conhecidos. O artigo foi escrito
por ocasião da Beatificação do Fundador do Opus Dei e continha uma dupla
homenagem: a São Josemaria Escrivá (então Bem-aventurado Josmaria Escrivá) e
aos pais da autora, que tinham sabido encarnar na vida do lar a espiritualidade
aprendida de São Josemaria.
Vale a pena reproduzir aqui
algumas citações desse artigo.
Maria Antônia – assim se chama a
professora – conta aí a redescoberta que fez da “alma” de seus pais quando,
depois de ambos terem falecido, remexia com carinho filial nos seus escritos,
cartas e apontamentos, e especialmente na correspondência que o pai tinha
mantido com Mons. Escrivá.
“Até que ambos tornaram a
reunir-se na vida eterna, havia muitos aspectos da vida interior deles que eu
só podia intuir – escreve a filha -. Captava-se a força do exemplo, a força da
vocação dos dois, mas, como é lógico, perdiam-se muitos matizes, que ficavam só
na intimidade deles. Através de alguns excertos da correspondência encontrada,
aprendi algumas coisas que agora tento transmitir”.
Olhando para trás, Maria Antônia
evoca a progressiva descoberta que foi fazendo de muitas coisas maravilhosas
que teciam, por assim dizer, o ambiente de seu lar, e que hoje percebia que não
estavam lá por acaso nem por geração espontânea, mas como fruto do espírito cristão,
generosamente vivido e cultivado pelos pais, num dia a dia amoroso, abnegado,
paciente.
“Meus pais já eram do Opus Dei
naqueles duros anos 50 de Barcelona, quando eu ainda não tinha nascido. À
medida que fui tendo uso de razão e tornando-me mais consciente do que me
rodeava, julguei sempre que o ambiente reinante na minha família, a educação
que estávamos recebendo, e que tantas vezes tenho agradecido a Deus, fosse
coisa normal em todas as famílias. Com o decorrer dos anos, fui percebendo que
nem de longe era tão normal. Os princípios dessa educação eram bem claros: uma
grande liberdade, baseada no senso de responsabilidade inculcado desde
crianças; otimismo e alegria fundamentados claramente na fé, pois não faltaram
dificuldades e obstáculos em todo o caminho terreno de meus pais; uma sólida
formação na doutrina cristã, unida a um modo positivo de nos sugerir, sem
impor, detalhes de vida de oração, e uma profunda e arraigada devoção a Nossa
Senhora, a quem todos considerávamos e continuamos a considerar a especial
intercessora para os assuntos familiares. Ficou-me muito claro que um dos
pilares básicos para que esse ambiente familiar se mantivesse era o fato de
que, em todos os momentos, o exemplo de meus pais, os seus atos, iam na frente
das palavras. Passados os anos, percebi, sem que eles nada me dissessem, que
aquilo era o espírito do Opus Dei”…
A filha relembra comovida as
dificuldades financeiras por que a família numerosa passou, e os equilíbrios
que o pai era obrigado a fazer para conjugar aulas na Faculdade, onde era
professor, práticas de laboratório, trabalho em uma fábrica, preparação de um
concurso e ainda aulas particulares. E relata a emoção que sentiu quando,
folheando a correspondência paterna, descobriu que Mons. Escrivá tinha transcrito,
no ponto 986 do livro Sulco, palavras de uma carta de seu pai: “Não irá rir,
Padre, se lhe disser que – faz uns dias – me surpreendi oferecendo ao Senhor,
de uma maneira espontânea, o sacrifício de tempo que supunha para eu ter de
consertar um brinquedo estragado de um dos meus filhos? – Não sorrio, fico
feliz! Porque, com esse mesmo amor, Deus se ocupa de recompor os nossos
estragos”. “Tenho – comenta a filha – recordações muito vivas dessas cenas: as
bonecas descabeçadas ou sem pernas, a peça que precisava ser colada…, tudo isso
nós sabíamos que, deixando-o na mesa do escritório de papai, tornaria a
adquirir rapidamente a sua forma original. Que pouco valorizávamos, naquela
altura, o ato heróico que podia significar para ele o fato de gastar dez ou quinze
minutos! Mas como o valorizava aquela alma a quem Deus, através do espírito do
Opus Dei, lhe saía ao encontro nesses pormenores minúsculos, mas grandiosos,
por estarem cheios de amor”.
“Mais de uma vez – acrescenta a
filha – tenho esclarecido em público que eu não seria o que hoje sou, se não
tivesse recebido a educação que meus pais me deram, se não tivesse tido o seu
exemplo em face de tantas contrariedades e situações difíceis – entre elas a
morte de dois filhos – por que Deus permitiu que passassem” (Maria Antônia
Virgili, Jornal El Norte de Castilla, Valladolid, 16.05.1992).
Essa perspectiva de tantos anos
de entrega constante e amorosa dos pais iluminou, aos olhos dessa mulher, as
suas próprias raízes. Entendeu-se melhor a si mesma, projetando as suas
lembranças sobre o fundo luminoso da dedicação paciente, contínua, calada,
carinhosa de seus pais cristãos.
OS FRUTOS DOURADOS DA PACIÊNCIA
Ao captar mais lucidamente a
riqueza do exemplo dos pais, Maria Antônia pôde compreender também uma dimensão
preciosa da virtude da paciência: a da abnegação, praticada com fidelidade
persistente: uma fidelidade que é feita de amor generoso e constante; uma
paciência que não se cansa do sacrifício, que não tem pressa em cobrar
resultados, que não desanima quando os esforços parecem baldados e os frutos
ainda não se vêem. Esta era a paciência que brilhava, com seu halo doce e
envolvente, na recordação dos pais.
Todos nós temos experiência de
quanto custa persistir nos esforços ou atitudes que exigem sacrifícios continuados
e não trazem compensações imediatas. Não é fácil lutar, manter-se firme no
empenho, e ver que tudo demora a realizar-se, a concluir-se, a chegar.
A nossa paciência é testada
sempre que temos de aguardar, esperar, voltar, tentar uma e outra vez: desde a
interminável espera num consultório dentário até o desgosto do casal de
namorados que precisa adiar de novo a data do casamento, porque não têm
condições de financiar o apartamento. Com razão diz Hildebrand que “a
impaciência se relaciona sempre com o tempo” (Dietrich von Hildebrand, A nossa
transformação em Cristo, Aster, Lisboa, 1960, pág. 204).
Mas todo aquele que quiser
conseguir alguma coisa de real valor na vida, não terá outro remédio senão
armar-se de paciência e esperar. Demora-se, necessariamente, a ser um
profissional experiente; demora-se a amadurecer por dentro até corrigir pelo
menos alguns dos defeitos pessoais; demora-se a suavizar arestas no casamento
e, aos poucos, ir-se ajustando à base de mútuos perdões e sorridentes
renúncias; demora-se a criar um bom ambiente familiar; demora a vida inteira a
autêntica formação dos filhos.
“Aprendi a esperar – dizia São
Josemaria Escrivá -; não é pouca ciência”. Mas é importante termos muito
presente que esse “esperar” não significa “aguardar” passivamente. Consiste,
como estamos vendo, em persistir fiel e confiadamente no cumprimento da nossa
missão, do nosso dever – do dever religioso, moral, familiar, profissional… -,
durante todo o tempo que for preciso, com aquela convicção que animava Santa
Teresa: “A paciência tudo alcança”.
A essa paciente espera se refere
o Apóstolo São Tiago, quando nos põe diante dos olhos a imagem do lavrador:
Tende, pois, paciência, meus irmãos […]. Vede o lavrador: ele aguarda o
precioso fruto da terra e tem paciência até receber a chuva do outono e a da
primavera. Tende também vós paciência e fortalecei os vossos corações (Ti 5,
7-8).
Não é verdade que estas palavras
nos lembram muitas coisas pessoais? Os frutos dourados da vida só se conseguem
com uma luta constante, unida a uma paciência fiel. Mas quanto custa seguir o
conselho do Apóstolo! Muitas vezes já fomos como aquela criança a quem a mãe
tinha oferecido uma planta que, com o tempo, iria dar flores. “Mas, quando os
botões surgiram, não sabíamos esperar que abrissem. Colaborávamos no seu
desabrochar triturando-as, separando talvez as pétalas, para que a floração
fosse mais rápida. Nódoas escuras apareciam então, e as flores estiolavam,
murchavam…”(Romano Guardini, O Deus vivo, Aster, Lisboa, s/d, pág. 71).
Quantas coisas, na vida, não
murcham por cansaços impacientes que nos levam a desistir! Na vida familiar, os
exemplos são gritantes. Talvez hoje seja mais necessário do que nunca recordar
aos casais que a felicidade que procuram, sem saber bem como achá-la, nunca a conseguirão
como fruto do egoísmo defendido de qualquer incômodo, mas como fruto do amor
fielmente paciente, do amor cristão. E da mesma coisa deveriam lembrar-se todos
os que começaram alguma vez, movidos por um alegre impulso da graça, a
esforçar-se decididamente por viver o ideal e as virtudes cristãs. A maior
ameaça contra esse bom propósito, mais do que nas fraquezas e nas reincidências
no erro, encontra-se no cansaço, na sensação de que “não adianta continuar”, ou
de que “custa demais conseguir”, ou seja, na falta de paciência para ir
avançando aos poucos, à força de começar e recomeçar.
Nós gostamos de que as coisas nos
sejam dadas logo. Deus sabe que as almas e as coisas precisam ter as suas
estações. Temos que aprender, por isso, a ser bons semeadores, que esperam a
colheita sem pressas inquietas e perseveram sem desânimos exaustos.
Semear é duro. É enterrar o grão
e nada ver. Isso exige fé e desprendimento. Eu dou a semente do meu esforço, do
meu empenho, do meu sacrifício, da minha oração, e espero, vigilante, até que
dê o seu fruto, enquanto continuo, solícito, a zelar pelo campo: rego, limpo,
podo, adubo, protejo… Só com essa paciência ativa é que um dia virá o fruto: o
fruto da fé, amadurecida a partir da persistência na oração, nos sacramentos, na
formação; o fruto dos valores cristãos finalmente arraigados nos filhos; o
fruto das virtudes pessoais que desabrocham e se firmam; os frutos do
apostolado.
Todos nós já exclamamos mais de
uma vez: “Que paciência!”, ao admirarmos obras humanas magníficas, que só se
explicam por uma longa aplicação, por um trabalho meticuloso, prolongado e
imensamente paciente. É assim que louvamos, por exemplo, os bordados
delicadíssimos e artísticos de uma enorme toalha de mesa feita à mão. É assim
também que admiramos o trabalho da vida inteira de um pesquisador, que foi
coligindo, exaustivamente, um incrível acervo de dados sobre uma matéria até
então ainda não estudada. – “Que paciência!”, dizemos. Pois bem, uma paciência
igual, pelo menos, e um esmero e uma tenacidade análogos, são os que Deus nos
pede para cultivarmos em nós e à nossa volta a vida e as virtudes cristãs.
(Adaptação de um trecho do livro de F.Faus: A paciência)
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