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sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

“A fé também pede”

A cura da hemorroíssa, catacumbas dos Santos 
Pedro e Marcelino, Roma
Por Revista 30Dias

“A fé também pede”

É o que diz Santo Agostinho – “... et fides orat” – numa passagem do Enchiridion de fide, spe et caritate (2, 7). Publicamos aqui uma meditação feita por padre Giacomo Tantardini nos exercícios espirituais dos sacerdotes da diocese suburbicária de Porto-Santa Rufina, Roma, em novembro de 2006.

por padre Giacomo Tantardini

Esta tarde, eu gostaria de falar da oração. Depois de rezarmos a Hora Média, foi um conforto para mim o fato de Sua Excelência ter entoado a Ave Maria, que cantamos juntos e bem, pois o que pretendo dizer hoje pode se resumir na frase “rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amém”. A essa invocação de Nossa Senhora, à invocação “rogai por nós” se resume no fundo toda a nossa participação, toda a participação da nossa liberdade no mistério da graça. “Rogai por nós.” A oração é a maneira como participamos do mistério da eleição de Deus.
Antes ainda da premissa, perdoem-me uma breve observação. Tenho grande afeição por este livrinho, Quem reza se salva. Ele nasceu na década de 1980, quando muitos jovens que encontravam o cristianismo, vindo sobretudo de experiências extraparlamentares de esquerda, nas décadas de 1970-1980, ao começar a freqüentar a vida cristã perguntavam como deveriam se confessar, pois muitos deles, depois da primeira comunhão, nunca mais tinham se confessado. Muitos nem tinham recebido o sacramento da crisma, como hoje em dia também é comum. Assim, preparamos este livrinho em Roma simplesmente para ajudar pessoas que não tinham nenhum conhecimento da doutrina cristã, ou dos dez mandamentos, para que se confessassem bem. Foi assim que o livrinho nasceu. Nele estão reunidas as orações mais simples, algumas verdades fundamentais da vida cristã, os dez mandamentos, os pecados contra o Espírito Santo, os pecados que bradam ao céu e pedem a Deus vingança e a maneira de se fazer uma boa confissão. Usamos o Catecismo de São Pio X, não por uma opção dialética ou passadista, mas porque algumas respostas do Catecismo de São Pio X nos pareciam mais simples para ajudar a quem não tinha tido nenhum contato com a prática cristã. Foi assim, então, que nasceu este livrinho. Depois, nós o enriquecemos, acrescentamos outras orações: as orações da missa, do rosário, as ladainhas... Em janeiro-fevereiro de 2005, 30Dias queria editá-lo novamente, e espontaneamente eu quis pedir ao cardeal Ratzinger que escrevesse o prefácio. Era como submeter à autoridade da Igreja (o cardeal Ratzinger era o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé) este livrinho em que eu havia reunido o catecismo que tinha aprendido quando criança. Enviamos o livrinho ao cardeal. Como, depois de quinze dias, ainda não havíamos recebido nenhuma resposta, um jornalista de 30Dias ligou para o secretário, que nos tranqüilizou, dizendo: “O cardeal está preparando a introdução; aliás, o livrinho Quem reza se salva está em sua escrivania na Congregação para a Doutrina da Fé”. Assim, em 18 de fevereiro de 2005, o cardeal Ratzinger enviou uma introdução simples e bela. Ela começa assim: “Desde que o homem é homem, reza”. Pois a oração, ou seja, o pedido, é a própria estrutura do coração do homem. “Sempre e em toda parte o homem se deu conta de que não está sozinho no mundo, de que existe alguém que o escuta. Sempre se deu conta de que precisa de um Outro maior do que ele e de que deve tender a Ele para que sua vida seja o que deve ser. Mas o rosto de Deus sempre foi velado...”. Desde que o homem é homem, reza... mas o rosto desse Outro maior sempre foi velado.
Tomo como premissa essas duas observações do cardeal Ratzinger. Primeira observação: o coração humano foi criado como pedido e, mesmo depois do pecado, a imagem de Deus permanece nele1. O homem, mesmo depois do pecado, é capax Dei. Mesmo depois do pecado original, o coração do homem, aquilo mesmo de que o ser humano é feito, é pedido. Santo Agostinho diz que toda criatura foi criada pela Sabedoria, mas que a criatura razoável (os anjos e o homem) foi criada pela Sabedoria de maneira tal que seu destino fosse a própria Sabedoria2. O homem não apenas foi criado pelo Verbo, mas criado para o Verbo eterno. Foi criado não apenas por Deus, mas ad Deumad Te. Assim é o coração do homem. Santo Agostinho, com muita força, falando contra a heresia pelagiana, sublinha também o pecado original, a ferida do pecado original, diz que não existe pecado algum (não apenas o pecado original, mas pecado algum que o homem possa cometer) que destrua esse limen naturae, esse limiar da natureza3, essa abertura ao Mistério. A imagem de Deus, ferida, continua presente como abertura ao Mistério. Do contrário, o pobre pecador não poderia encontrar o Senhor quando este gratuitamente se deixa encontrar por ele. Se o coração, como possibilidade, não continuasse aberto ao encontro, não O poderia encontrar. Essa é a primeira observação. A segunda (pois não seria realista, e portanto não seria verdadeiro, se disséssemos apenas isso): esse pedido, esse coração, está ferido. Esse pedido, esse coração, está toldado. O rosto do Mistério está velado. Há uma oração da antiga liturgia ambrosiana de que gosto muito, pois descreve esse pedido natural do homem em sua condição histórica: “... oratio captiva peccatis / ... o pedido prisioneiro dos pecados / quae inimico impediente fuscatur / que pelo inimigo [pelo diabo] é impedido e ofuscado...”4. O pedido do coração, escravo do diabo, é impedido e ofuscado. Essa é a condição do coração do homem. Agostinho (como citei hoje de manhã) usa para dizer isso uma imagem que não se esquece: “Fugitivus cordis sui / O homem vive fugindo, vive longe de seu coração”5. Hoje de manhã lemos o comentário de Agostinho ao milagre dos dois cegos. Se o Senhor não tivesse passado, os cegos não teriam gritado. “Clausi sunt oculi cordis: / Os olhos do coração estão fechados: / transit Iesus / Jesus passa / ut clamemus / para que nós possamos pedir”6.
Quero ler para vocês, para meu conforto e seu, o trecho do Credo do povo de Deus do papa Paulo VI sobre o pecado original. Quando não levamos em conta o pecado original, nós nos tornamos primeiro idealistas, e em seguida cínicos. Quando não levamos em conta a condição concreta, conseqüência do pecado original, não lançamos um olhar realista, um olhar de fé, à nossa condição, à condição do homem, à condição do mundo. O trecho a respeito do pecado original, ao lado do trecho a respeito da presença real do Senhor na Eucaristia, é o mais amplo do Credo do povo de Deus, pois essas eram as duas verdades de fé mais discutidas naquela época, mas não apenas naquela época. “Cremos que todos pecaram em Adão; isso significa que a culpa original, cometida por ele, fez que a natureza humana, comum a todos os homens, caísse num estado no qual padece as conseqüências dessa culpa. Tal estado já tação, e se acha em cada um como próprio. Cremos que Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo sacrifício da Cruz, nos remiu do pecado original e de todos os pecados pessoais, cometidos por cada um de nós; de sorte que se impõe como verdadeira a sentença do Apóstolo: ‘Onde abundou o delito, superabundou a graça’”.
O que eu disse até aqui pretendia ser uma espécie de grande premissa. Ou seja, que o pedido, a oração, é o coração do homem, mas esse coração, esse pedido é ofuscado, esse coração, esse pedido é impedido, esse coração, esse pedido é prisioneiro. E por isso o homem, na prática, se resigna e, a longo prazo, não pede mais. Ele se resigna ao pouco ou muito que consegue possuir. Essa é a condição do homem.
Se essa é a condição do coração, para falar da oração (não abstratamente, poderíamos dizer) é preciso ver como foi que Jesus veio ao encontro dessa condição do homem escravo em conseqüência dos pecados (“já não és escravo, mas filho”, Gl 4, 7), como foi que Jesus veio ao encontro desse coração que O espera, mas está impedido de pedir. Esse coração que O espera como criatura, que, como criatura, espera o encontro com Ele. Mas essa espera do coração é impedida, essa espera do coração é ofuscada. Tão ofuscada, que a oração da antiga liturgia ambrosiana termina pedindo: “... vultus tui candore purgetur / que [o pedido] seja purificado pelo esplendor de teu rosto”. De que forma o rosto de Deus refulge sobre nós (cf. 2Cor 4, 6), a ponto de o pedido poder brotar do coração? Como é que Jesus vem ao encontro de nosso pobre coração?

Orante, catacumbas de Priscila, Roma

A primeira observação que eu gostaria de sugerir é que esse encontro tem como sua fonte o mistério da eleição de Deus. Portanto, esse encontro, por si só, não é um prêmio para o pedido do homem. Esse encontro é pura graça. É o mistério da graça da eleição. Pois Zaqueu talvez até vivesse uma espera boa, certamente uma curiosidade (cf. Lc 19, 1-10), mas Mateus, quando Jesus o chamou, não esperava nada. O publicano Mateus não esperava nada (cf. Mt 9, 9). No quadro de Caravaggio, na igreja de São Luís dos Franceses, em Roma, essa gratuidade absoluta, essa eleição absolutamente gratuita é evidenciada de maneira fantástica. Esta é a primeira observação. Existe um porquê do encontro que está no mistério de Deus, que está no mistério da eleição de Deus.
Segunda observação: esse encontro é dar-se conta de uma presença. É, para usar a expressão latina, confessio / reconhecimento. E esse reconhecimento, em seu íntimo, já é pedido. O reconhecimento da fé já é, em seu coração, um pedido. A oração já começa no próprio reconhecimento de fé. A expressão que se usava sempre na liturgia latina em todas as missas, antes do Sanctus, indica o proprium do ato de fé: “...supplici confessione / ... com reconhecimento suplicante”. O reconhecimento da fé é sempre, em seu coração, um reconhecimento / confessio / que pede / supplex. Quando a criança diz “mamãe”, não demonstra a existência da mãe. Ela reconhece sua presença, pedindo ser amada, pedindo que a mãe fique perto dela. Esse é o proprium do reconhecimento da fé. O reconhecimento da fé é sempre supplex confessioConfessio: um reconhecimento da inteligência. Agostinho usa uma expressão definitiva para dizer isso: “Fides si non cogitetur nulla est / A fé, se não é pensamento [inteligência que reconhece], não é nada”7. A fé é a inteligência que reconhece e adere. E o reconhecimento da inteligência, justamente enquanto reconhecimento de uma Presença que atrai, é, em seu íntimo, reconhecimento que pede. Fico comovido quando lembro o primeiro encontro de Jesus com João e André, os dois discípulos de João Batista que seguiram Jesus depois que o Batista o indicou como o Cordeiro de Deus. Jesus se volta e lhes pergunta: “O que estais procurando?” (Jo 1, 38), e eles não respondem, ou melhor, respondem perguntando: “Mestre, onde moras?” (Jo 1, 38). Eles tinham o que buscavam bem diante de seus olhos. Não respondem com uma definição, respondem com uma pergunta: “Mestre, onde é que ficas?”, que significa também: “Onde, como podemos ficar contigo?”. Eles tinham o que buscavam bem diante de seus olhos e, por isso, ao reconhecê-lo, pediram para ficar com Ele. O reconhecimento da fé já é oração, a fé já é pedido. Como diz Agostinho: “... et fides orat / a fé também pede”8. O Credo é uma oração. Como é belo o fato de o rezarmos na santa missa! A fé é um reconhecimento da inteligência despertado pela graça, despertado por Sua atração, despertado por Sua presença, por Ele, que passa perto de nós, por Seu gesto. É um ato da inteligência que reconhece e da liberdade que adere. O Concílio Ecumênico Vaticano I, ao definir que “a fé é uma virtude sobrenatural impossível sem a iluminação e a inspiração do Espírito Santo”, acrescenta uma expressão muito bonita: “Qui dat omnibus suavitatem in consentiendo et credendo veritati / O Espírito Santo doa a todos a doçura no reconhecimento e na adesão à verdade”9. Como é bela a palavra suavitas! Só se reconhece e adere a uma presença se não porque é doce e atraente reconhecê-la e a ela aderir. A Verdade, para que pudesse ser reconhecida, fez-se presença humana, o Verbo se fez homem (cf. Jo 1, 14). Não é um teorema que deve ser demonstrado. O que eu gostaria de observar é que o cerne do reconhecimento da fé já é oração.
Uma terceira observação. Depois do encontro, quando foi à casa de Zaqueu, Jesus lhe disse: “Hoje a salvação entrou nesta casa” (Lc 19, 9). O encontro com Jesus salva realmente o homem. O reconhecimento de Jesus é o início da salvação. O batismo realmente nos doa a salvação. “Desde já somos filhos de Deus” (1Jo 3, 2). É o que diz João em sua primeira carta. Mas como desde já somos filhos de Deus? Como desde já estamos salvos? Como desde já somos felizes? O reflexo da salvação (vide Zaqueu, Lc 19, 6), o segundo fruto do Espírito Santo (cf. Gl 5, 22) é a alegria. A salvação tem esse reflexo humano que é a alegria. Se é assim, como é que desde já estamos contentes? O apóstolo Paulo e toda a Tradição dizem que desde já estamos salvos, estamos contentes “in spe / na esperança” (Rm 8, 24). O cardeal Ratzinger, numa entrevista também publicada por 30Dias10, sublinhava intensamente o quanto a esperança é dimensão permanente da vida cristã. Evidentemente, nossa espera não é como a espera do Antigo Testamento. De fato, o Senhor já veio e por graça nós O encontramos. Mas a esperança continua presente na vida cristã, pois nós também, graças justamente à suavitas / doçura da amizade com Ele, O esperamos (“enquanto esperamos a tua vinda”) e porque o encontro com Ele, a fé, a salvação, não é posse nossa. Nossa salvação não é posse nossa. A cada momento, ela é dom.
Assim, eu gostaria de ler para vocês os cânones antigos sobre a graça, pois são de uma clareza simples e luminosa. Em primeiro lugar, dois cânones do Concílio de Cartago de 418, que, aprovado depois de algumas hesitações pelo papa Zózimo, é, digamos assim, o documento dogmático sobre a graça que foi referência para todos os Concílios, em particular o Concílio de Trento. Em seguida, uma frase do Indiculus. O Indiculus é um pequeno catecismo no qual a Igreja de Roma, depois da polêmica de Pelágio, resumiu a doutrina da fé sobre a graça. Leio esses documentos da Tradição porque eles evidenciam que a salvação é real, mas não é posse nossa. É real e ao mesmo tempo, segundo uma expressão tão cara a Péguy, precária11. De modo que a relação do cristão com a salvação é sempre uma relação de pedido, é sempre uma relação de oração, não de posse.
Diz o terceiro cânon do Concílio de Cartago: “Aprouve aos bispos estabelecer que quem quer que diga que a graça de Deus, pela qual o homem é justificado por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo, vale unicamente para a remissão dos pecados já cometidos, mas não também como ajuda para que novos pecados não sejam cometidos, seja excomungado”12. A graça é necessária não apenas para o perdão dos pecados cometidos, mas como ajuda para não cometê-los no futuro. Pois a salvação, a graça, não é uma posse nossa. A salvação, a graça, é precária. Era cheio de certeza o maravilhamento de João e André naquele dia: “Era por volta das quatro da tarde” (Jo 1, 39). Mas, apesar de cheio de certeza, não era posse deles. Aquele seu pedido era cheio de certeza, mas não era posse deles. A certeza do cristão, segundo uma imagem de Dom Giussani que me parece definitiva em sua simplicidade, é o abandono da criança. Quando a criança se abandona (como diz o Salmo 130, que lemos na missa de ontem), adormece cheia de certeza nos braços de sua mãe. Essa certeza não é uma posse sua. A certeza cristã é um abandono como esse, é o abandono da criança.
Quinto cânon do Concílio de Cartago: “Assim aprouve aos bispos estabelecer que quem quer que diga que a graça da justificação nos é dada para este fim, o de que mediante a graça possamos cumprir mais facilmente o que nos é ordenado fazer mediante o livre-arbítrio, como se dissesse que, mesmo que a graça não nos fosse dada, poderíamos cumprir sem ela, embora com dificuldades, os mandamentos de Deus, seja excomungado”13. Se alguém diz que mesmo sem a graça podemos realizar, talvez não facilmente, talvez com dificuldade, os mandamentos de Deus, seja excomungado. Depois, a observação conclusiva é muito bonita: “De fato, o Senhor, referindo-se justamente ao fruto dos mandamentos [ou seja, pôr em prática o que os dez mandamentos indicam], não disse: ‘Sem mim mais dificilmente podeis fazer’, mas: ‘Sem mim, nada podeis fazer’ (Jo 15, 5)”14. Essa expressão é muito bonita. Jesus não disse: “Sem mim, dificilmente podeis fazer”. Não, ele disse: “Sem mim, nada podeis fazer”. Essa simplicidade evangélica é um conforto, e é libertadora. Libertadora para nós e para nossos fiéis.
Terceiro capítulo do Indiculus. Aqui é citado o papa Inocêncio (401-417). Papa Inocêncio, predecessor do papa Zózimo, havia aceito as primeiras condenações dos concílios africanos contra a heresia de Pelágio, de maneira imediata e cordial. Diz o Indiculus: “Ninguém, ainda que renovado pela graça do batismo, é capaz de superar as insídias do diabo e de vencer a concupiscência da carne, a não ser com a ajuda cotidiana de Deus”15. O Concílio de Trento também declarará que com a graça é possível observar os mandamentos de Deus e que é uma afirmação temerária e condenada por todos os Padres a de que com a graça não é possível observar os mandamentos16. Mas acrescentará que, mesmo que alguém esteja na graça de Deus, não continuará nela sem uma ajuda especial da própria graça17. Para permanecer na graça, é preciso uma ajuda especial da própria graça. Continua o Indiculus: “Confirma-o o ensinamento do mesmo pontífice [Inocêncio]: ‘Deus, de fato, ainda que tenha remido o homem dos pecados passados, sabendo, todavia, que podia voltar a pecar, muniu-se de muitos modos de erguê-lo novamente – mesmo depois de recair no pecado –, concedendo-lhe auxílios cotidianos [graças cotidianas]. Se não nos apoiarmos com força e confiança nesses auxílios, não poderemos de modo algum vencer os erros humanos. É inevitável que, tal como vencemos com o Seu auxílio [como vencemos com o Seu auxílio no batismo, com o Seu auxílio no sacramento da confissão], da mesma forma, por outro lado, sem a renovação de Seu auxílio, sejamos vencidos”18. Tal como vencemos com Seu auxílio, da mesma forma “eo iterum non adiuvante / se Ele de novo não nos auxiliar / vincamur / seremos vencidos”. Li esses dogmas antigos para dizer que a oração, o pedido, é a maneira de viver dos cristãos. É a maneira de viver de quem por graça encontrou a salvação. De quem foi salvo na esperança. De quem encontrou resposta gratuita à espera de seu coração na amizade com Jesus. A maneira de viver essa amizade, a maneira de viver essa graça, a maneira de viver essa felicidade inicial é a oração.

A Virgem com o Menino e o profeta Balaam, catacumbas de Priscila,
Roma

Assim, eu gostaria de observar como Santo Tomás de Aquino fala da esperança, pois Santo Tomás chega a fazer a esperança coincidir com a oração. Em meados da década de 1980, participei, em Collevalenza, de exercícios espirituais pregados pelo cardeal Ratzinger. Uma coisa daqueles exercícios eu nunca mais esqueci; foi quando, na meditação sobre a esperança, Ratzinger citou Santo Tomás, que diz: “A oração é a interpretação da esperança / Petitio est interpretativa spei”19. A oração é a voz da esperança, é a expressão da esperança, é a forma com a qual a esperança se exprime. Ser salvos na esperança significa rezar. Ser felizes na esperança significa pedir. Pedir que aquele maravilhamento, aquele início real e precário de felicidade, se renove. Nós não o podemos possuir. Se o Senhor não o renova, não permanecemos na Sua graça (cf. Jo 15, 5).
Santo Tomás, no Compendium theologiae20, obra inacabada que termina bem no início da segunda parte, dedicada à esperança, para afirmar que a esperança coincide com a oração – tanto assim que Jesus, para nos fazer viver na esperança, nos doa a oração do Pai Nosso –, dá os seguintes passos.
Primeiro: “Spes desiderium praesupponit / A esperança pressupõe o desejo”21. Como isso é bonito! O pressuposto da esperança é sermos atraídos por aquilo que esperamos. Se o que esperamos não nos atrai, não podemos esperar. O pressuposto da esperança é a atração da graça, a atração Jesus. O fato de nos atrair significa que temos experiência dele, ainda que inicial. Isso, a meu ver, é fundamental. Para desejar a vida eterna, para desejar o Paraíso, é preciso ter dela já uma experiência inicial. Não se pode desejar uma coisa de cuja atração não se tenha uma experiência inicial. O final do discurso sobre a oração de Santo Agostinho que lemos no breviário há algumas semanas diz isso usando os termos mais simples: “O Espírito de Deus, portanto, leva os santos a rezarem com gemidos inexprimíveis, inspirando-lhes o desejo [vejam que o desejo nasce da atração da graça] de uma coisa tão grande [a felicidade do Paraíso], mas ainda desconhecida, que nós esperamos mediante a esperança. [...] Na realidade, se fosse de todo desconhecida, não seria objeto de desejo, e se, por outro lado, a víssemos, como realidade já possuída, não seria desejada e pedida com gemidos”22. Se essa felicidade, se essa vida eterna fosse totalmente desconhecida, não poderíamos nem desejá-la, e, se fosse posse nossa, não seria pedida. “Spes desiderium praesupponit”. O primeiro pressuposto é que o que esperamos seja desejado, que a felicidade para todo o sempre seja desejada. Para desejá-la, é preciso que nos atraia. O desejo não nasce de nós. O desejo é do nosso coração, mas é uma atração que o desperta. Uma atração da qual temos experiência inicial.
Segundo: é preciso que o que desejamos “seja reconhecido como possível de ser conseguido / possibile esse aestimetur ad consequendum”23. Isso também é bonito! Possível, pois se a felicidade desejada não fosse reconhecida como possível, seria uma ilusão, um sonho, não seria esperança. Portanto, uma felicidade reconhecida possível. Como é bonito esse “aestimetur”, ou seja, “reconhecido razoavelmente” possível. Escreve Agostinho nas Confissões: “Merito mihi spes valida in illo est / Com razão n’Ele coloco toda a minha firme esperança”24.
Terceiro: que o que se espera “sit aliquid arduum / seja uma coisa árdua”25. Árduo é traduzido por difícil. Mas, na minha opinião, é mais simples dizer que se trata de uma realidade que nós não podemos construir, que nós não podemos possuir. Árduo significa que não podemos pre-tender, que não podemos com-preender. Nós não podemos alcançar e nós não podemos agarrar. “Si comprehendis non est Deus / se compreendes, não é Deus”26. Agostinho diz isso de uma maneira ainda mais bela. “Si comprehendere potuisti / se pudeste compreender / aliud pro Deo comprehendisti / compreendeste uma coisa diferente de Deus”27. Santo Agostinho falou da alienação antes de Marx e Nietzsche. Se você compreende aquilo a que chama Deus, é uma coisa diferente de Deus, ou seja, você é alienado. Deus não pode ser pretendido nem compreendido. Paulo, na Carta aos Filipenses, que lemos na santa missa, escreve que o Filho de Deus “não considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente” (Fl 2, 6). Não considerou como algo a se apegar ciosamente o ser igual a Deus, não considerou uma usurpação [ou seja, uma conquista sua], diz o texto latino, a seu ser igual a Deus. É um dom perene do Pai no gozo do Espírito Santo. Portanto, a esperança pressupõe uma realidade que seja desejada, que seja possível, mas que nós não podemos pretender e nem compreender. Nesse sentido, é árdua.
Aqui, abrem-se dois caminhos: o primeiro é o do homem que se esforça por obter esse bem desejado, possível, árduo, e o segundo é o do homem que o pede, e essa é a maneira pela qual a virtude da esperança se expressa. Assim, conclui Tomás com uma frase fantástica: “Sic igitur ea quae Dominus / Assim, portanto, as coisas que o Senhor / in sua oratione petenda esse docuit / em sua oração [o Pai Nosso] ensinou que devem ser pedidas / ostenduntur homini esse consideranda possibilia / se mostram tais a ponto de terem de ser consideradas possíveis pelo homem / et tamen ardua / e todavia árduas / ut ad ea non humana virtute sed divino auxilio perveniatur / de forma tal que a elas se chega não por capacidade humana, mas por graça de Deus”28. Isso é tudo o que eu queria dizer. Ou seja, que a oração pertence ao coração da fé cristã, que a oração pertence ao coração da vida cristã. Ao coração da fé, pois o reconhecimento da fé já é um pedido a essa presença: supplex confessio. De forma tal que na fé a unidade da inteligência e do coração é afirmada. A oração pertence ao coração da vida cristã, pois a salvação que a fé doa é real e ao mesmo tempo precária. “Pois já fomos salvos, mas na esperança” (Rm 8, 24). É real o início da felicidade, tanto assim que se a pessoa não tivesse experiência inicial disso não a poderia nem desejar. É real, mas não é posse nossa. Agostinho, num trecho que lemos no breviário no último dia do ano litúrgico, antes do início do Advento, diz: “Quotidie petitores, quotidie debitores / Todos os dias devemos pedir, todos os dias somos pobres pecadores”29. Todos os dias devemos dizer o Pai Nosso. Todos os dias petitores / pessoas que pedem. Todos os dias debitores / pessoas que pedem perdão.

Adoração dos Magos, catacumbas de Priscila, Roma

Agora, faço apenas algumas breves observações como comentário à maneira como o Compêndio do Catecismo define a oração30.
Primeira observação. O Compêndio define a oração em conformidade com as duas definições tradicionais: “Elevatio mentis in Deum / Elevação da alma a Deus” ou “petitio decentium a Deo / pedido a Deus de bens conformes à Sua vontade”31. E acrescenta uma coisa belíssima. “Ela é sempre dom de Deus”32. Essa frase do Compêndio resume o que tentei dizer. A oração é sempre dom de Deus. A oração dos filhos (cf. Gl 4 ,6) nasce sempre da aproximação d’Ele, do fato de que Ele vem ao nosso encontro, de que passa. “Transit Iesus ut clamemus”33. “Ela é sempre dom de Deus, que vem ao encontro do homem”. É o que diz o Compêndio. Essa breve resposta do catecismo usa a palavra encontro. A oração é sempre dom de Deus, que vem ao nosso encontro. Se não vem ao nosso encontro, o coração não pede. “Clausi sunt oculi cordis”34. O coração persegue ilusões suas. Pois o coração, ou seja, a interioridade, está doente, a interioridade está cega, a interioridade está surda, a interioridade está morta35.
Segunda observação. A oração, portanto, é elevatio mentis in Deum. Para compreender o que significa esse “elevar a alma a Deus”, menciono um trecho de Santo Agostinho no De civitate Dei36. Agostinho cita a expressão sursum corda / corações ao alto. Também em sua época, como hoje, era assim que começava a oração eucarística. Escreve Agostinho: “Bonum est sursum habere cor, / É uma coisa boa ter o coração ao alto, / non tamen ad se ipsum / mas não voltado para si mesmo [como isso é importante! A oração não é uma introspecção. É uma coisa boa ter o coração ao alto, mas não voltado para si mesmo], / quod est superbiae / coisa que é própria da soberba, / sed ad Dominum / e sim voltado para o Senhor, / quod est oboedientiae / coisa que é própria da obediência / [e aqui está a observação mais bonita] quae nisi humilium non potest esse. / [obediência] que só pode ser dos humildes. / Est igitur aliquid humilitatis / De fato, há algo na humildade / miro modo quod sursum faciat cor / que de modo admirável leva o coração ao alto [elevatio mentis in Deum] / et est aliquid elationis / e há algo da tentativa de se elevar / quod deorsum faciat cor. / que leva o coração para baixo. / Hoc quidem quasi contrarium videtur, / Assim, parece quase o contrário [do que nós também instintivamente pensamos]: / ut elatio sit deorsum / a tentativa de se elevar leva para baixo / et humilitas sursum / e a humildade, para o alto”. Agostinho, nesse trecho, diz simplesmente o que Jesus disse: “Quem se eleva será humilhado e quem se humilha será elevado” (Lc 14, 11). Quantas vezes nós também confundimos a elevatio mentis in Deum (que é o olhar – ou, mais simplesmente, as lágrimas – da criança que pede que a peguem no colo) com a elatio (que é a tentativa do homem de alcançar por si mesmo a Deus). É um fato admirável (“miro modo”) que seja a humildade que eleva a Deus, pois Deus é quem eleva. Como era para o publicano, que “nem se atrevia a levantar os olhos para o céu” (Lc 18, 13).
Terceira observação. A definição de oração “petitio decentium a Deo / pedido a Deus de bens [de coisas boas]” sugere que a oração está ligada à vida bem vivida. A oração está ligada à obediência aos mandamentos. Somos pobres pecadores, mas não podemos rezar em compromisso com o pecado. Não é possível desejar duas coisas contrárias ao mesmo tempo. Um instante depois de ter cedido à tentação, por graça é possível pedir. Mas o coração “é mentiroso” (1Jo 2, 4), se ao mesmo tempo “diz” (1Jo 2, 4) desejar duas coisas contrárias.
Quarta observação. As palavras elevatio e petitio com que o Compêndio define a oração sugerem que ela é “sempre e ao mesmo tempo” (como disse o papa Bento XVI em Colônia no ano passado37) um olhar e um pedir, um maravilhamento e uma espera, “uma doçura e um desejo”38, um júbilo inicial no gemido39. Graças justamente ao maravilhamento do encontro, João e André pediram (cf. Jo 1, 38). E, sendo sempre dom de Deus que vem ao nosso encontro, a oração é possível, mesmo no gemido, sempre graças a um último maravilhamento.

Adoração dos Magos, catacumbas de Priscila, Roma

Assim, o homem caminha “proficiens / crescendo”, diz Santo Agostinho falando de Pedro: “Non praeveniendo sicut Petrus praesumens / Não querendo pre-venir [não querendo ir além] como Pedro, quando presumia / sed sequendo et orando / mas seguindo e pedindo [maravilhamento e pedido] / sicut Petrus proficiens / como Pedro quando caminhava crescendo”40. É assim que nos tornamos bons. Como disse o papa Bento XVI no encontro com as crianças da primeira comunhão em 15 de outubro de 2005: “Ficando com Jesus, a vida se torna boa e caminhamos bem”.
Quinta observação. Para aprender a rezar, é preciso rezar. Sendo sempre o dom de Deus que vem ao nosso encontro, o que nos é pedido é simplesmente que repitamos. Re-petir, ou seja, re-pedir. Repetir as fórmulas mais simples da oração. É o Senhor que vem ao nosso encontro. “Dá a sua graça aos humildes” (Pr 3, 34; 1Pd 5, 5).
Não somos nós que, com palavras que nós mesmos inventamos, alcançamos o Senhor. Tomemos, por exemplo, o caso do santo rosário. Aquelas palavras crescem com o crescimento da experiência da fé. Como para as crianças. No início, as palavras podem ser apenas o som da voz. Repetindo aquelas palavras, a realidade que elas indicam se mostra gratuitamente em sua beleza tão cara: “Cara beleza”. Leiam, de preferência diante da Eucaristia, o capítulo 11, versículos 1-13, e o capítulo 18, versículos 1-14, do Evangelho de Lucas.
Concluo com uma frase de Santo Agostinho do De civitate Dei: “A atividade máxima e totalizante da Igreja aqui na terra, nesta condição mortal, é pôr a esperança em rezar”41.
Essa expressão de Agostinho é belíssima! “Atividade totalizante e máxima” sugere que a oração é a dimensão de qualquer gesto. “Pôr a esperança em pedir” sugere, por exemplo, que, quando celebramos a santa missa, a esperança está na oração de Jesus, não em nós.

Notas
1 Cf. Agostinho. De Trinitate XIV, 8, 11.
2 Cf. Agostinho. De vera religione 44, 82.
3 Cf. Agostinho. De civitate Dei XIX, 12, 2.
Antico Breviario Ambrosiano, Sabbato ad Vesperas, oratio secunda.
5 Agostinho. Enarrationes in psalmos 57, 1.
6 Agostinho. Sermones 88, 10, 9.
7 Agostinho. De praedestinatione sanctorum 2, 5.
8 Agostinho.

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF