A Transfiguração, mosaico da primeira metade do século XI do mosteiro de Hosios Loukas, Chaidari, Atenas | 30Giorni |
REFLEXÕES SOBRE O MISTÉRIO E A VIDA DA IGREJA
A percepção da Igreja como “luz refletida” que une os Padres do primeiro milênio e o Concílio Vaticano II.
O último Concílio reconhece que o ponto de origem da Igreja não é a própria Igreja, mas a presença viva de Cristo, que edifica pessoalmente a Igreja. A luz que é Cristo se reflete, como num espelho, na Igreja
pelo cardeal Georges Cottier, O.P.
Cardeal Georges Cottier | 30Giorni |
No já próximo 2012
vão se completar os cinquenta anos do início do Concílio Vaticano II. Meio
século depois, esse que foi um acontecimento maior na vida da Igreja continua a
suscitar debates – que provavelmente se intensificarão nos próximos meses – a
respeito de qual é a interpretação mais adequada daquela assembleia conciliar.
As disputas de
caráter hermenêutico, embora certamente importantes, correm o risco de se
tornar controvérsias para especialistas. Ao passo que pode interessar a todos,
sobretudo no momento presente, descobrir qual foi a fonte inspiradora que
animou o Concílio Vaticano II.
A resposta mais comum
reconhece que aquele evento era movido pelo desejo de renovar a vida interior
da Igreja e também adaptar sua disciplina às novas exigências, para voltar a
propor com novo vigor sua missão no mundo atual, atenta, na fé, aos “sinais dos
tempos”. Mas, para ir mais a fundo, é preciso perceber qual era o rosto mais
íntimo da Igreja que o Concílio se propunha a reconhecer e a representar para o
mundo, em seu intento de atualização.
O título e as
primeiras linhas da constituição dogmática conciliar Lumen gentium,
dedicada à Igreja, são iluminadores, nesse sentido, em sua clareza e
simplicidade: “Sendo Cristo a luz dos povos, este Sacrossanto Sínodo, congregado
no Espírito Santo, deseja ardentemente anunciar o Evangelho a toda criatura e
iluminar todos os homens com a claridade de Cristo que resplandece na face da
Igreja”. No incipit de seu documento mais importante, o último
Concílio reconhece que o ponto de origem da Igreja não é a própria Igreja, mas
a presença viva de Cristo, que edifica pessoalmente a Igreja. A luz que é
Cristo se reflete, como num espelho, na Igreja.
A consciência desse
dado elementar (a Igreja é, no mundo, o reflexo da presença e da ação de
Cristo) esclarece tudo o que o último Concílio disse sobre a Igreja. O teólogo
belga Gérard Philips, que foi o principal redator da constituição Lumen
gentium, evidencia justamente esse dado no início de seu monumental
comentário ao texto conciliar. Segundo ele, “a Constituição sobre a Igreja
adota desde o início a perspectiva cristocêntrica, perspectiva que se afirmará
com insistência ao longo de toda a exposição. A Igreja está profundamente
convencida disto: a luz dos povos se irradia não dela, mas de seu divino
Fundador; ao mesmo tempo, a Igreja sabe muito bem que, refletindo-se em seu
rosto, essa irradiação alcança a humanidade inteira” (La Chiesa e il suo
mistero nel Concilio Vaticano II: storia, testo e commento della costituzione Lumen
gentium. Milano: Jaca Book, 1975, v. I, p. 69). Uma perspectiva que Philips
retoma até as últimas linhas de seu comentário, em que repete que “não nos cabe
profetizar sobre o futuro da Igreja, sobre seus insucessos e desenvolvimentos.
O futuro desta Igreja, que Deus quis fazer o reflexo de Cristo, Luz dos Povos,
está em Suas mãos” (ibid., v. II, p. 314).
A percepção da Igreja
como reflexo da luz de Cristo aproxima o Concílio Vaticano dos Padres da
Igreja, que desde os primeiros séculos recorriam à imagem do mysterium
lunae, o mistério da lua, para sugerir qual era a natureza da Igreja e a
ação que lhe convém. Como a lua, “a Igreja resplandece não por luz própria, mas
pela luz de Cristo” (“fulget Ecclesia non suo sed Christi lumine”), diz
Santo Ambrósio. Para Cirilo de Alexandria, “a Igreja é iluminada pela luz
divina de Cristo, que é a única luz no reino das almas. Há, portanto, uma só
luz: nessa única luz resplende todavia também a Igreja, que não é porém o
próprio Cristo”.
Nesse sentido, merece
atenção a opinião dada recentemente pelo historiador Enrico Morini, num artigo
publicado no site www.chiesa.espressonline.it, de Sandro Magister.
Segundo Morini – que
é professor de História do Cristianismo e das Igrejas na Universidade de
Bolonha –, o Concílio Vaticano II pôs-se “na perspectiva da mais absoluta
continuidade com a tradição do primeiro milênio, segundo uma periodização não
puramente matemática, mas essencial, uma vez que o primeiro milênio de história
da Igreja foi o da Igreja de sete concílios, ainda indivisa [...]. Promovendo a
renovação da Igreja, o Concílio não pretendeu introduzir algo novo – como
desejam e temem, respectivamente, progressistas e conservadores –, mas retornar
ao que se havia perdido”.
A observação pode
gerar equívocos, se for confundida com o mito historiográfico segundo o qual o
itinerário histórico da Igreja é uma progressiva decadência e um distanciamento
crescente de Cristo e do Evangelho. Também não é possível dar crédito a
contraposições artificiosas, segundo as quais o desenvolvimento dogmático do
segundo milênio não seria conforme à Tradição compartilhada durante o primeiro
milênio da Igreja indivisa. Como evidenciou o cardeal Charles Journet,
apoiando-se também no beato John Henry Newman e em seu ensaio sobre o
desenvolvimento do dogma, o depositum que recebemos não é um
depósito morto, mas vivo. E tudo o que é vivo se mantém vivo desenvolvendo-se.
Ao mesmo tempo,
devemos perceber como um dado objetivo a correspondência entre a percepção da
Igreja expressa na Lumen gentium e a já compartilhada nos
primeiros séculos do cristianismo. Em outras palavras, a Igreja não deve
ser pressuposta como um sujeito fechado em si mesmo, preestabelecido.
A Igreja se atém ao dado de que a sua presença no mundo floresce e permanece
como reconhecimento da presença e da ação de Cristo.
Às vezes, também em
nossa mais recente atualidade eclesial, essa percepção do ponto de origem da
Igreja parece para muitos cristãos ofuscar-se, e parece acontecer uma espécie
de reviravolta: de reflexo da presença de Cristo (que com o dom de Seu Espírito
edifica a Igreja), passa-se a perceber a Igreja como uma realidade material e
idealmente empenhada em atestar e realizar por si mesma sua
presença na história.
Desse segundo modelo
de percepção da natureza da Igreja, que não é conforme à fé, derivam
consequências concretas.
Se a Igreja
percebe-se no mundo como reflexo da presença de Cristo, como deve ser, o
anúncio do Evangelho só pode acontecer no diálogo e de modo livre, renunciando
a qualquer meio de coerção, quer material, quer espiritual. É o caminho
indicado por Paulo VI em sua primeira encíclica, Ecclesiam Suam,
publicada em 1964, que expressa perfeitamente o olhar para a Igreja que é
próprio do Concílio. O modo como o Concílio encarou as divisões entre os
cristãos e, depois, entre os fiéis de outras religiões reflete a mesma
percepção da Igreja. Assim, o pedido de perdão pelas culpas dos cristãos, que
surpreendeu e gerou discussões no corpo eclesial quando foi apresentado por
João Paulo II, também é perfeitamente consoante com a consciência de Igreja que
até aqui descrevi. A Igreja pede perdão não por seguir lógicas de etiqueta
mundanas, mas porque reconhece que os pecados de seus filhos ofuscam a luz de Cristo,
que ela é chamada a refletir em seu rosto. Todos os seus filhos são pecadores
chamados pela ação da graça à santidade. Uma santificação que é sempre dom da
misericórdia de Deus, que deseja que nenhum pecador – por mais horrível que
seja o seu pecado – seja acorrentado pelo maligno na via da perdição. Assim,
podemos compreender a fórmula do cardeal Journet: a Igreja é sem pecado, mas
não sem pecadores.
Nenhum comentário:
Postar um comentário