Nesta página, Giotto, detalhes dos afrescos da Capela dos Scrovegni, Pádua; acima, A última Ceia | 30Giorni |
Captar o essencial com clareza
Uma reflexão do arcebispo emérito de Florença sobre a encíclica do papa Bento XVI
do cardeal Silvano
Piovanelli
Quando as carmelitas
descalças do mosteiro de Santa Teresa em Florença tiveram notícia do título e
do tema da primeira encíclica do papa Bento XVI, exclamaram quase em coro: “É
ele!”.
Sim, é ele! Papa Bento gosta de captar com clareza o essencial. E captá-lo não
catedraticamente e por meio de discursos difíceis, mas com profundidade e
simplicidade ao mesmo tempo, de modo a ser compreendido por todos.
A maneira de prenunciar a publicação também foi insólita, quase familiar. Ele
falou dela de improviso com os quase dez mil fiéis da audiência geral da quarta-feira,
dando a entender que a redação do texto, a sua elaboração, as traduções
requereram mais tempo do que o previsto (“finalmente, em 25 de janeiro será
publicada a minha primeira encíclica!”), e reconhecendo que o atraso foi
providencial, pois fez coincidir a publicação da encíclica com a festa da
conversão de São Paulo e a conclusão da semana de oração pela unidade dos
cristãos.
É ele! Numa conferência no “Meeting pela Amizade entre os Povos” de 1990, dizia
corajosamente: “Está disseminada hoje, aqui e ali, mesmo em ambientes
eclesiásticos elevados, a idéia de que uma pessoa é tanto mais cristã quanto
mais está empenhada em atividades eclesiais. A pessoa é levada a uma espécie de
terapia eclesiástica da atividade, do ter o que fazer: procura-se assinalar um
comitê para cada um ou, em todo caso, ao menos um grande compromisso dentro da
Igreja. De certa forma, pensa-se, deve haver sempre uma atividade eclesial,
deve-se falar da Igreja, deve-se fazer alguma coisa por ela ou nela. Mas um
espelho que reflete apenas a si mesmo não é mais um espelho. Uma janela que, em
vez de permitir um olhar livre para o horizonte distante, se interpõe como uma
tela entre o observador e o mundo, perdeu o seu sentido. Pode acontecer que
alguém exerça ininterruptamente atividades associativas, eclesiais, e todavia
não seja realmente um cristão. Pode acontecer, em vez disso, que algum outro
viva simplesmente apenas da Palavra e do Sacramento e pratique o amor que
provém da fé, sem nunca ter comparecido a comitês eclesiásticos, sem nunca
ter-se ocupado das novidades da política eclesiástica, sem ter feito parte de
Sínodos e sem ter votado neles, e todavia é um verdadeiro cristão. Não é de uma
Igreja mais humana que precisamos, mas de uma Igreja mais divina; só então ela
será também verdadeiramente humana... Quanto mais aparatos construímos, ainda
que sejam os mais modernos, menos espaço há para o Espírito, menos espaço para
o Senhor, menos liberdade há. Eu penso que deveríamos, deste ponto de vista,
começar na Igreja um exame de consciência em todos os níveis, sem reservas”.
A coisa mais importante para a Igreja, portanto, não é o fazer, mas o ser:
escolher, como Maria de Betânia, a parte melhor, que é sentar-se aos pés do
Amado e beber sua palavra com alegria. Não certamente para viver um intimismo
solitário e dobrado sobre si mesmo, mas para dar um testemunho forte desse
Amor, que por nosso intermédio quer alcançar a todos.
É ele! Ele, que reconhece o seu mestre em Santo Agostinho. O qual, comentando
as cartas do apóstolo João, escrevia: “‘Deus é amor’: uma frase breve, de um só
período, mas que peso de significado ela contém” (In Ep. Io., 1). “O que
podia dizer mais, ó irmãos? Se não houvesse em toda essa Epístola e em todas as
páginas da Escritura nenhum louvor da caridade fora dessa única palavra que
entendemos da boca do Espírito, ou seja, que Deus é caridade, não deveríamos
mais crer” (In Ep. Io., 7, 4).
“Busca saber como é possível ao homem amar a Deus: de modo algum saberás como,
a não ser no fato de que ele nos amou em primeiro lugar. Ele nos deu a si mesmo
como objeto a ser amado, nos deu os recursos para amá-lo. O que ele nos deu com
a finalidade de poder amá-lo, ouve-o de maneira mais explícita do apóstolo
Paulo, que diz: ‘A caridade de Deus está espalhada em nossos corações’. Mas
como? Acaso por obra nossa? Não. Mas então como? ‘Pela ação do Espírito Santo
que nos foi dado’” (Sermo 34, 2).
“Se todos se marcassem com a cruz, se respondessem ‘Amém’ e cantassem todos
‘Aleluia’; se todos recebessem o batismo e entrassem nas igrejas, se fizessem
construir as paredes das basílicas, restaria o fato de que somente a caridade
permite distinguir os filhos de Deus dos filhos do diabo. Os que têm a
caridade nasceram de Deus, os que não a têm não nasceram de Deus. É esse o
grande critério de discernimento. Se tivesses tudo, mas te faltasse essa única
coisa, de nada te aproveitaria o que tens; se não tens as outras coisas, mas
possuis esta, cumpriste a lei” (In Ep. Io., 5, 7).
Numa passagem belíssima, Agostinho esclarece como a caridade não consiste
principalmente e simplesmente num “fazer”, que poderia ser também expressão de
um amor egoísta e soberbo, que deseja ser louvado pelos homens: “Vede as
grandes obras que a soberba realiza: dai bastante atenção a como elas são
semelhantes e quase iguais às da caridade. A caridade oferece alimento a quem
tem fome, mas o faz também a soberba: a caridade faz isso para que o Senhor
seja louvado, a soberba o faz para dar louvor a si mesma. A caridade veste um
nu e o faz também a soberba; a caridade jejua mas o faz também a soberba; a
caridade sepulta os mortos, mas o faz também a soberba... A divina Escritura
nos convida a sair dessa ostentação e a voltar a nós mesmos, a voltar ao nosso
íntimo saindo dessa superficialidade que se ostenta diante dos homens. Volta ao
íntimo de tua consciência, interroga-a. Não olha para o que floresce
exteriormente, mas vê qual é a raiz que está oculta na terra”.
“Deus não te proíbe de amar as criaturas, mas te proíbe de as amar com a
finalidade de obter delas a felicidade” (In Ep. Io., 2, 11).
O lava-pés | 30Giorni |
É ele! Quantas vezes
a palavra amor ou algo correspondente ressoou em seus lábios!
Na homilia da missa de início do ministério petrino, exclamou: “Apascentar
significa amar, e amar quer dizer também estar prontos para sofrer. Amar
significa: dar às ovelhas o verdadeiro bem [...]. Rezai por mim, para que eu
aprenda a amar cada vez mais o seu rebanho [...]. Rezai por mim, para que eu
não fuja, por receio, diante dos lobos”. “Cada um de nós é querido, cada um de
nós é amado, cada um é necessário. Não há nada mais belo do que ser alcançados,
surpreendidos pelo Evangelho, por Cristo. Não há nada mais belo do que
conhecê-Lo e comunicar aos outros a Sua amizade.”
Às crianças da Primeira Comunhão, que recebeu na praça de São Pedro em 15 de
outubro, explicou: “Adorar é dizer: ‘Jesus, eu sou teu e sigo-te na minha vida,
nunca gostaria de perder esta amizade, esta comunhão contigo’. Poderia também
dizer que a adoração na sua essência é um abraço com Jesus, no qual eu digo:
‘Eu sou teu e peço-te que estejas também tu sempre comigo’”.
Na abertura do Congresso da Diocese de Roma sobre a Família, sublinhava: “A
vocação para o amor é aquilo que faz com que o homem seja a autêntica imagem de
Deus: ele torna-se semelhante a Deus na medida em que ama”.
Em Bari, concluindo o Congresso Eucarístico Nacional, o Papa lembrava que
Agostinho inicialmente teve dificuldades para aceitar a perspectiva do
“repasto eucarístico”, que lhe parecia indigna de Deus: nos repastos comuns, de
fato, o homem é o mais forte, na medida em que é ele quem assimila o alimento,
fazendo deste um elemento da sua realidade corpórea. Mas num segundo tempo,
Agostinho entendeu que na Eucaristia as coisas caminhavam no sentido exatamente
contrário: o centro é Cristo, que nos atrai para si, nos faz uma só coisa com
ele e, dessa forma, nos insere também na comunidade dos irmãos... Não podemos
comungar com o Senhor se não comungamos entre nós.
Noli me tangere | 30Giorni |
O mal e o sofrimento, sobretudo o sofrimento dos inocentes, mas também o ódio e a crueldade gratuita de tantas pessoas continuam a ser o escândalo que torna difícil a esperança. Hoje, para muitos, a vida não tem sentido. Saber que Deus tem um amor sem limites por todos nós, homens e mulheres, e por toda a criação, e que entregou seu Filho único para salvar o mundo, dá um sentido à vida.
É ele! Tenho a encíclica em minhas mãos, mas ainda não cortei as páginas. Tudo o que disse até agora me foi sugerido pela expressão certeira de uma comunidade de carmelitas descalças. Lerei com atenção esta primeira encíclica do papa Bento XVI, não esquecendo que - como diz a raposa do Pequeno Príncipe no conto de Saint-Éxupery - “nós só vemos bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos. Os homens esqueceram essa verdade. Você não a deve esquecer”.
Tenho confiança de que todas as pessoas às quais a carta é endereçada - os bispos, os presbíteros, os diáconos, as pessoas consagradas e todos os fiéis leigos -, lendo com o coração as palavras do papa Bento, tornarão programa de sua vida o que o novo Papa declarou solenemente no início de seu serviço petrino: “O meu verdadeiro programa de governo é não fazer a minha vontade, não perseguir idéias minhas, pondo-me contudo à escuta, com a Igreja inteira, da palavra e da vontade do Senhor, e deixando-me guiar por Ele, de forma que seja Ele mesmo quem guia a Igreja nesta hora da nossa história”.
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