Abertura do Concílio - 11 outubro de 1962 (Archivio Fotografico Vatican Media) |
O CONCÍLIO VATICANO II
Cardeal
Orani João Tempesta
Arcebispo do Rio de Janeiro (RJ)
Na
terça-feira, 11 de outubro de 2022, memória de São João XXIII, o Papa Francisco
presidiu na Basílica de São Pedro a Santa Missa pelo 60° aniversário do
Concílio Vaticano II. Em sua homilia, entre outros, convidou a redescobrirmos o
Concílio, “para devolver a primazia a Deus, ao essencial”, recordando que o
pedido do Senhor a Pedro para apascentar as suas ovelhas, referia-se não só a
algumas, mas a todas, “porque ama a todas; a todas designa, afetuosamente, como
«minhas». O bom Pastor vê e quer o seu rebanho unido, sob a guia dos Pastores
que lhe deu. (Vatican News). No dia 8 de dezembro último, solenidade da
Imaculada Conceição de Maria Santíssima, comemoramos os 57 anos do encerramento
do Concílio Vaticano II (1962-1965). Estamos vivendo um momento especial em que
é necessário aprofundarmos a beleza desse Concílio Ecumênico. Em nosso “curso
para os Bispos” durante alguns anos aprofundamos os vários documentos
conciliares escutando as conferências de especialistas e autoridades dos
dicastérios. Também, como lembrança do final deste ano entreguei para cada
seminarista de nossa Arquidiocese o livro do grande teólogo D. Cirilo Folch
Gomes, OSB com o resumo do Concílio Vaticano comemorando este tempo importante
da história, numa edição própria do nosso Regional Leste 1. Nestes tempos
de tanta confusão é muito importante nos recolocarmos diante das moções do
Espírito Santo que moveu a igreja nessa direção na caminhada conciliar.
Esse
foi o maior evento da vida da Igreja no século XX e que, por isso, merece nossa
atenção serena e objetiva à luz de importantes declarações dos Papas que o
vivenciaram de dentro: São João XXIII, o iniciador, São Paulo VI, o concluinte,
o Beato João Paulo I, bispo de Vittorio Veneto (Itália), São João Paulo II,
arcebispo de Cracóvia (Polônia) e Bento XVI, jovem sacerdote e teólogo, na
condição de perito no Vaticano II. E agora atualizadas com as reflexões do Papa
Francisco.
São
João XXIII, no Natal de 1961, observando os grandes problemas da humanidade em
nível geopolítico e também a pobreza religiosa das pessoas, decidiu, ouvido o
parecer de seus irmãos no episcopado, convocar, por meio da constituição
apostólica Humanae salutis (HS), o Concílio Vaticano
II. São suas palavras: “Desde quando subimos ao supremo pontificado, não
obstante nossa indignidade e por um desígnio da Providência, sentimos logo o
urgente dever de conclamar os nossos filhos para dar à Igreja a possibilidade
de contribuir mais eficazmente na solução dos problemas da idade moderna. Por
este motivo, acolhendo como vinda do alto uma voz íntima de nosso espírito,
julgamos estar maduro o tempo para oferecermos à Igreja católica e ao mundo o
dom de um novo concílio ecumênico, em acréscimo e continuação à série dos vinte
grandes concílios, realizados ao longo dos séculos, como uma verdadeira
providência celestial para incremento da graça na alma dos fiéis e para o
progresso cristão” (HS, 6). Faz-se importante notar que a reta intenção
do Papa santo era a de oferecer à Igreja, por graça de Deus, o 21º Concílio
Ecumênico, ou seja, uma assembleia de bispos do mundo todo (= ecumênico) a fim
de, em continuidade com toda Tradição de 20 séculos, apresentar, como um grande
meio de avanço espiritual, aos homens e mulheres do nosso tempo uma palavra do
Magistério vivo da Igreja.
E o
mesmo Pontífice, no documento já citado, convoca, então, o Concílio: “Depois de
ouvir o parecer de nossos irmãos os cardeais da santa Igreja romana, com a
autoridade de nosso Senhor Jesus Cristo, dos santos apóstolos Pedro e Paulo e
com a nossa, anunciamos, indicamos e convocamos para o próximo ano de 1962, o
ecumênico e geral concílio, que se celebrará na Basílica Vaticana, nos dias que
serão fixados segundo a oportunidade que a boa Providência quiser nos oferecer”
(HS, 18). É, portanto, aquela assembleia conciliar válida e lícita, pois
os padres conciliares agiram cum Petro et sub Petro, isto é, junto
com Pedro e sob a direção de Pedro, o Papa, a quem Nosso Senhor confiou as
chaves da Igreja, prometeu assistência infalível (cf. Mt 16,18-19) – assim como
a prometeu, depois, aos 11 reunidos junto com Pedro (cf. Mt 18,18) – e mandou
confirmar seus irmãos na fé (cf. Lc 22,39-40). E o Concílio foi aberto, se
realizou e concluiu-se por outro santo, São Paulo VI, em 7/8 de dezembro de
1965.
Em
seu Discurso conclusivo da magna assembleia conciliar, o Papa
São Paulo VI assegurou que o Concílio deixou não só a imagem de uma Igreja viva
e unida, “mas também o patrimônio da sua doutrina e dos seus mandamentos, isto
é, o depósito que Cristo lhe confiou; depósito que no decurso dos tempos os
homens sempre meditaram, transformaram, por assim dizer, no próprio sangue e
exprimiram de algum modo no seu viver; depósito que agora, aclarado em muitos
pontos, foi estabelecido e ordenado na sua integridade. Este depósito, vivo pela
divina virtude da verdade e da força que o constituem, deve ser considerado
apto para vivificar todo o homem que o acate piedosamente e dele alimente a sua
própria vida”. E continua a dizer que o Vaticano II, mesmo se voltando aos
problemas candentes do século XX e de uma análise da Igreja em si mesma, não
deve ser, no campo religioso, acusado de relativista. Ao contrário, é a fé
católica que lhe dá a tônica: “Os documentos conciliares, principalmente os que
tratam da Revelação divina, da liturgia, da Igreja, dos sacerdotes, dos
religiosos, dos leigos, permitem ver diretamente esta primordial intenção
religiosa e demonstram quão límpida, fresca e rica é a veia espiritual que o
vivo contato com Deus vivo faz brotar no seio da Igreja e correr sobre as
áridas glebas da nossa terra”.
E
mais: o Concílio, assumindo uma postura otimista, se opôs aos erros sem, no
entanto, atacar o errante: “Precisamos de reconhecer que este nosso Concílio se
deteve mais nos aspectos felizes do homem que nos desditosos. Nisto ele tomou
uma atitude claramente otimista. Uma corrente de interesse e de admiração saiu
do Concílio sobre o mundo atual. Rejeitaram-se os erros, como a própria
caridade e verdade exigiam, mas os homens, salvaguardado sempre o preceito do
respeito e do amor, foram apenas advertidos do erro. Assim se fez, para que em
vez de diagnósticos desalentadores, se dessem remédios cheios de esperança;
para que o Concílio falasse ao mundo atual não com presságios funestos, mas com
mensagens de esperança e palavras de confiança. Não só respeitou, mas também
honrou os valores humanos, apoiou todas as suas iniciativas, e depois de os
purificar, aprovou todos os seus esforços”. Temos aqui a máxima de Santo
Agostinho de Hipona († 430) que convida a amar o homem errante, mas a rejeitar
os seus vícios: “Cum dilectione hominum et odio vitiorum” (Carta 211).
Ainda
que mais pastoral que doutrinal, o Concílio Vaticano II merece acatamento: “O
magistério da Igreja, embora não tenha querido pronunciar-se com sentenças
dogmáticas extraordinárias sobre nenhum capítulo doutrinal, propôs, todavia, o
seu ensinamento autorizado acerca de muitas questões que hoje comprometem a
consciência e a atividade do homem. Por assim dizer, a Igreja baixou a dialogar
com o homem; e conservando sempre a sua autoridade e a sua virtude, adotou a
maneira de falar acessível e amiga que é própria da caridade pastoral. Quis ser
ouvida e entendida pelos homens. Por isso, não se preocupou só com falar à
inteligência do homem, mas exprimiu-se no modo hoje usado na conversação
corrente, em que o recurso à experiência da vida e o emprego dos sentimentos
cordiais dão mais força para atrair e para convencer. Isto é, a Igreja falou
aos homens de hoje, tais quais eles são”. O grande protagonista do Concílio,
não obstante as falhas de cada ser humano presente, foi, nas palavras do Beato
Albino Luciani, Papa João Paulo I: “‘O Espírito Santo! Está presente nos
trabalhos com sua assistência para evitar erros e desvios doutrinais’. Uma
assistência que irá aos membros do Concílio coletivamente como ‘líderes da
Igreja, não como homens individuais’ que ‘permanecerão homens com seu
temperamento’” (Andrea Tornielli. O Concílio de Albino Luciani.
Vaticannews, 26/08/2020). Exato! Deus não abandona a Sua Igreja, mas, ao
contrário, a assiste, de modo ininterrupto, até o fim dos tempos (cf. Mt
28,20).
Importa
ainda, neste breve percurso sobre alguns pontos do Concílio, ouvir também o
Papa São João Paulo II ao dizer, em 27 de fevereiro de 2000, que a grande
assembleia conciliar só pode ser bem entendida na perspectiva da fé e requer
aprofundamento a fim de não ser parcializado ou, quiçá, instrumentalizado.
Afirma o Papa: “Sem dúvida, ele [o Concílio] exige um conhecimento cada vez
mais profundo. Todavia, no interior desta dinâmica é necessário que não se
perca de vista a intenção genuína dos Padres conciliares; pelo contrário, esta
deve ser recuperada superando as interpretações desconfiadas e parciais que
impediram de exprimir da melhor forma a novidade do Magistério conciliar. A
Igreja conhece desde sempre as regras para uma reta hermenêutica dos
conteúdos do dogma. Trata-se de regras que se colocam no interior do tecido
da fé e não fora dele. Interpretar o Concílio pensando que ele comporta uma
ruptura com o passado, enquanto na realidade ele se põe na linha da fé de
sempre, é decididamente desviar-se do caminho. Aquilo que foi acreditado
por ‘todos, sempre e em cada lugar’ é a autêntica novidade que permite a cada
época sentir-se iluminada pela palavra da Revelação de Deus em Jesus Cristo”
(ver também: São Vicente de Lérin. Commonitorium, XXIII).
Importa
notar, em São João Paulo II, o que também, com muita propriedade, o Papa Bento
XVI, hoje emérito, afirma: o Concílio Ecumênico Vaticano II é o 21º da história
da Igreja e está em plena conformidade com a doutrina bimilenar da Igreja,
doutrina que ele não rejeita, mas, de um modo novo e próprio, reforça. Eis as
firmes palavras de Bento XVI em 22 de dezembro de 2005: “Por que a recepção do
Concílio, em grandes partes da Igreja, até agora teve lugar de modo tão
difícil? Pois bem, tudo depende da justa interpretação do Concílio ou, como
diríamos hoje, da sua correta hermenêutica, da justa chave de leitura e de
aplicação. Os problemas da recepção derivaram do fato de que duas hermenêuticas
contrárias se embateram e disputaram entre si. Uma causou confusão, a outra,
silenciosamente, mas de modo cada vez mais visível, produziu e produz frutos.
Por um lado, existe uma interpretação que gostaria de definir como hermenêutica
da descontinuidade e da ruptura; não raro, ela pôde valer-se da simpatia
dos mass media e também de uma parte da teologia moderna. Por
outro lado, há a hermenêutica da reforma, da renovação na
continuidade do único sujeito-Igreja, que o Senhor nos concedeu; é um sujeito
que cresce no tempo e se desenvolve, permanecendo, porém, sempre o mesmo, único
sujeito do Povo de Deus a caminho. A hermenêutica da descontinuidade corre o
risco de terminar numa ruptura entre a Igreja pré-conciliar e a Igreja
pós-conciliar. Ela afirma que os textos do Concílio como tais ainda não seriam
a verdadeira expressão do espírito do Concílio”.
E
segue: “À hermenêutica da descontinuidade opõe-se a hermenêutica da reforma,
como antes as apresentou o Papa João XXIII, no seu discurso de abertura do
Concílio, em 11 de outubro de 1962, e, posteriormente o Papa Paulo VI, no
discurso de encerramento, a 7 de dezembro de 1965. […] Neste processo de
novidade na continuidade, devíamos aprender a compreender mais concretamente do
que antes que as decisões da Igreja em relação às coisas contingentes, por
exemplo, certas formas concretas de liberalismo ou de interpretação liberal da
Bíblia deviam necessariamente ser elas mesmas acidentais, justamente porque
referidas a uma determinada realidade em si mesma mutável. Era preciso aprender
a reconhecer que, em tais decisões, somente os princípios exprimem o aspecto
duradouro, permanecendo subjacente e motivando a decisão a partir de dentro.
Não são, por sua vez, igualmente permanentes as formas concretas, que dependem
da situação histórica e podem, portanto, ser submetidas a mutações. Assim, as
decisões de fundo podem permanecer válidas, enquanto as formas da sua aplicação
a estes novos podem mudar. Assim, por exemplo, se a liberdade religiosa for
considerada como expressão da incapacidade do homem para encontrar a verdade e,
consequentemente, se torna canonização do relativismo, por conseguinte, ela,
por necessidade social, foi elevada de modo impróprio a nível metafísico e está
privada do seu verdadeiro sentido, com a consequência de não poder ser aceita
por quem crê que o homem é capaz de conhecer a verdade de Deus e, com base na
dignidade interior da verdade, está ligado a tal conhecimento. Uma coisa
completamente diversa é, porém, considerar a liberdade de religião como uma
necessidade derivante da convivência humana, aliás, como uma consequência
intrínseca da verdade que não pode ser imposta do exterior, mas deve ser feita
pelo próprio homem somente mediante o processo do convencimento”.
O
Papa Francisco, ao comemorar 60 anos da abertura do Concílio Vaticano II, assim
concluiu sua homilia (Basílica de São Pedro, terça-feira, 11 de outubro de
2022, Memória de São João XXIII, Papa): “Nós Vos damos graças, Senhor,
pelo dom do Concílio. Vós que nos amais, livrai-nos da presunção da autossuficiência
e do espírito da crítica mundana. Livrai-nos da autoexclusão da unidade. Vós,
que nos apascentais com ternura, fazei-nos sair dos recintos da
autorreferencialidade. Vós que nos quereis rebanho unido, livrai-nos do
artifício diabólico das polarizações, dos «ismos». E nós, vossa Igreja, com
Pedro e como Pedro Vos dizemos: «Senhor, Vós sabeis tudo; bem sabeis que Vos
amamos» (cf. Jo 21, 17).
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