Primeira Pregação do Advento 2022/Fr. Cantalamessa | Vatican News |
"Vamos
ao encontro de Cristo que vem, com um ato de fé, que é também uma promessa de
Deus e, portanto, uma profecia: o mundo está nas mãos de Deus e, quando,
abusando da sua liberdade, o homem terá chegado ao fundo, ele intervirá para
salvá-lo. Sim, intervirá para salvá-lo! Para isso, de fato, veio ao mundo, há
dois mil e vinte e dois anos."
Fr. Raniero Card. Cantalamessa,
OFMCap.
A PORTA DA FÉ
Primeira Pregação do Advento de 2022
Santo Padre, Reverendos Padres, irmãos e irmãs da
Cúria Romana, perguntei-me várias vezes sobre qual o sentido e a utilidade
destas pregações no Advento e na Quaresma, que interrompem ou atrasam
compromissos de todo tipo e importância. O que me anima e me tira os escrúpulos
de fazê-los perder tempo, é a convicção de que não se vem a estas pregações
para escutar opiniões ou soluções para problemas eclesiais do momento, mas para
haurir forças das verdades de fé e, assim, encarar todos os problemas com
espírito certo. Para, enfim, banhar-se – ou ao menos refrescar-se – de fé, de
esperança e de caridade.
Assim, pensei em escolher como tema destas três
pregações de Advento justamente as três virtudes teologais. Fé, esperança e
caridade são o ouro, o incenso e a mirra que nós, Magos de hoje, queremos
oferecer como dom a Deus que “vem nos visitar do alto”. Valendo-nos da tradição
antiga – patrística e medieval – sobre as virtudes teologais, tentarei – por
quanto possível fazê-lo em três breves meditações – uma aproximação também
moderna e existencial, que responda aos desafios, aos enriquecimentos e, às
vezes, aos substitutos propostos pelo homem de hoje às virtudes teologais do
cristianismo.
* * *
Na oração cristã, sempre teve grande ressonância o
salmo que – na versão da liturgia – diz:
Ó portas, levantai vossos frontões!
Elevai-vos bem mais alto, antigas portas,
a fim de que o Rei da glória possa entrar.
Dizei-nos: “Quem é este Rei da glória?”
“É o Senhor, o valoroso, o onipotente,
o Senhor, o poderoso nas batalhas!” (Sl
24,7-8).
Na interpretação espiritual dos Padres e da
liturgia, as portas de que se fala no salmo são aquelas do coração humano:
“Feliz aquele a cuja porta Cristo bate”, comentava Santo Ambrósio. “Nossa porta
é a fé... Se quiseres levantar os portais de tua fé, entrará em ti o Rei da
glória”[1].
São João Paulo II fez, das palavras do salmo, o manifesto do seu pontificado.
“Abri, melhor, escancarai as portas a Cristo!”, gritou ao mundo, no dia da
inauguração do seu ministério.
A grande porta que o homem pode abrir, ou fechar, a
Cristo, é apenas uma e se chama liberdade. Ela, porém, se abre segundo três
modalidades diversas, ou segundo três tipos diversos de decisão que podemos
considerar como outras portas: a fé, a esperança e a caridade. Estas são todas
portas especiais: abrem-se por dentro e por fora ao mesmo tempo: com duas
chaves, das quais uma está nas mãos do homem, a outra, nas de Deus. O
homem não pode abri-las sem o concurso de Deus e Deus não
quer abri-las sem o concurso do homem.
Cristo, origem e cumprimento da fé
Iniciemos, portanto, a nossa reflexão com a
primeira das três portas: a fé. Deus – lê-se nos Atos dos Apóstolos – “havia
aberto a porta da fé aos gentios” (At 14,27). Deus abre a porta da fé ao dar a
possibilidade de crer enviando quem prega a boa nova; o homem abre a porta da
fé acolhendo esta possibilidade.
Com a vinda de Cristo, constata-se, a propósito da
fé, um salto de qualidade. Não na natureza dela, mas em
seu conteúdo. Já não se trata mais de uma fé genérica em Deus, mas
da fé em Cristo nascido, morto e ressuscitado por nós. A Carta aos Hebreus faz
um longo elenco de crentes: “Pela fé, Abel... Pela fé, Abraão... Pela fé,
Isaac... Pela fé, Jacó... Pela fé, Moisés...” Mas conclui dizendo: “Todos eles,
se bem que pela fé tenham recebido um bom testemunho, não alcançaram a
realização da promessa” (Hb 11,39). O que faltava? Faltava Jesus, isto é,
aquele que – afirma a mesma Carta – “vai à frente da nossa fé e a leva à
perfeição” (Hb 12,2).
A fé cristã, portanto, não consiste apenas em crer
em Deus; consiste em crer também naquele que Deus enviou. Quando, antes de
realizar um milagre, Jesus pergunta: “Tu crês?” e, após tê-lo realizado,
afirma: “A tua fé te salvou”, não se refere a uma fé genérica em Deus (esta era
presumida em todo israelita); refere-se à fé nele, no poder divino a ele
concedido.
Esta, assim, é a fé que justifica o ímpio, a fé que
faz renascer para a vida nova. Ela se coloca ao término de um processo do qual
São Paulo, no capítulo 10 da Carta aos Romanos, traça as várias fases, quase
visivelmente, desenhando-as no mapa do corpo humano. Tudo começa, diz ele,
pelos ouvidos, a partir do ouvir o anúncio do Evangelho: “A fé vem da
escuta”, fides ex auditu. Dos ouvidos, o movimento passa ao
coração, onde se toma a decisão fundamental: corde creditur, “com
o coração se crê”. Do coração, o movimento se volta à boca: “com a
boca se faz a profissão de fé”: ore fit confessio.
O processo não termina aqui, mas – dos ouvidos, do
coração e da boca – ele passa para as mãos. Sim, porque “a fé age pelo amor”,
diz o Apóstolo (Gl 5,6). São Tiago pode se tranquilizar. Há espaço também para
as “obras”: porém, não antes, mas depois (logicamente, se não cronologicamente)
da fé. “Não se chega à fé – afirma São Gregório Magno – partindo-se das
virtudes, mas às virtudes partindo-se da fé”[2].
Surge, neste ponto, uma pergunta de grande
atualidade. Se a fé que salva é a fé em Cristo, o que pensar de todos aqueles
que não têm nenhuma possibilidade de crer nele? Vivemos em uma sociedade,
também religiosamente, pluralista. A nossas teologias – Oriental e Ocidental,
Católica e Protestante, do mesmo modo – desenvolveram-se em um mundo onde
existia, na prática, apenas o cristianismo. Conhecia-se, certamente, a
existência de outras religiões, mas elas eram consideradas falsas em princípio,
ou não eram consideradas de fato. À parte o diverso modo de entender a Igreja,
todos os cristãos compartilhavam o axioma tradicional: “Fora da Igreja não há
salvação”: Extra Ecclesiam nulla salus.
Hoje não é mais assim. Há algum tempo, está em
curso um diálogo entre as religiões, baseado no respeito recíproco e no
reconhecimento dos valores presentes em cada uma delas. Na Igreja Católica, o
ponto de partida foi a declaração “Nostra aetate” do Concílio Vaticano
II, mas uma orientação análoga é compartilhada por todas as Igrejas históricas
cristãs. Com este reconhecimento, foi-se afirmando a convicção de que também
pessoas fora da Igreja podem ser salvas.
É possível, nesta nova perspectiva, manter o papel
até agora atribuído à fé “explícita” em Cristo? O antigo axioma: “fora da
Igreja não há salvação” não terminaria por sobreviver, neste caso, no axioma:
“fora da fé não há salvação”? Em alguns ambientes cristãos, esta última é, de
fato, a doutrina dominante, e é ela que motiva o empenho missionário. Deste
modo, contudo, a salvação passa a ser limitada, em princípio, a uma exígua
minoria de pessoas.
Isso não só não pode nos deixar tranquilos, mas
primeiramente prejudica Cristo, subtraindo-lhe grande parte da humanidade. Não
se pode crer que Jesus é Deus, e depois limitar a sua relevância de fato a
apenas um setor restrito dela. Jesus é “o Salvador do mundo” (Jo 4,42); o Pai
enviou o seu Filho “para que o mundo seja salvo por meio dele” (Jo 3,17): o
mundo, não alguns poucos no mundo!
Busquemos uma resposta na Escritura. Ela afirma que
quem não reconheceu Cristo, mas age em base à própria consciência (Rm 2,14-15)
e faz o bem ao próximo (Mt 25,31ss) é aceito por Deus. Nos Atos dos Apóstolos,
escutamos, da boca de Pedro, esta solene declaração: “De fato, estou
compreendendo que Deus não faz distinção de pessoas. Pelo contrário, ele aceita
quem o teme e pratica a justiça, qualquer que seja a nação a que pertença” (At
10,34-35).
Também os adeptos de outras religiões creem, em
geral, que “Deus existe e recompensa os que o buscam” (Hb 11,6); realizam, por
isso, o que a Escritura considera o dado fundamental e comum de toda fé. Isto
vale, naturalmente, de maneira toda especial, para os irmãos Hebreus, que creem
no mesmo Deus de Abraão, Isaac e Jacó, no qual cremos nós, cristãos.
O motivo principal do nosso otimismo não se baseia,
contudo, no bem que os adeptos de outras religiões estejam em condição de
fazer, mas na “multiforme graça de Deus” (1Pd 4,10). Às vezes, sinto a
necessidade de oferecer o sacrifício da Missa justamente em nome de todos
aqueles que se salvaram pelos méritos de Cristo, mas não o sabem e não podem
agradecê-lo. A liturgia também nos exorta a fazê-lo. Na Oração Eucarística IV,
à oração pelo Papa, pelo Bispo e pelos fiéis é acrescentada uma oração
"por todos os que vos buscam com coração sincero".
Deus tem muito mais modos de salvar do que podemos
pensar. Ele instituiu “canais” da sua graça, mas não se vinculou a eles. Um
destes meios “extraordinários” de salvação é o sofrimento. Depois que Cristo o
assumiu sobre si e o redimiu, também ele é, à sua maneira, um sacramento
universal de salvação. Aquele que mergulhou nas águas do Jordão,
santificando-as para todo batismo, também mergulhou nas águas da tribulação e
da morte, fazendo delas um potencial instrumento de salvação. Misteriosamente,
todo sofrimento – não apenas o dos fiéis – completa, de algum modo, “o que
falta à paixão de Cristo” (Cl 1,24). A Igreja celebra a festa dos Santos
Inocentes, ainda que nem mesmo eles sabiam que sofriam por Cristo!
Nós cremos que todos aqueles que se salvam,
salvam-se pelos méritos de Cristo: “Em nenhum outro há salvação, pois não
existe debaixo do céu outro nome, dado à humanidade, pelo qual devamos ser
salvos” (At 4,12). Uma coisa, contudo, é afirmar a necessidade universal
de Cristo para a salvação e outra coisa, afirmar a necessidade
universal da fé em Cristo para a salvação.
Supérfluo, então, continuar a proclamar o Evangelho
a toda criatura? Pelo contrário! É o motivo que deve mudar, não o fato. Devemos
continuar a anunciar Cristo; não tanto, porém, por um motivo negativo – porque,
do contrário, o mundo será condenado –, quanto por um motivo positivo: pelo dom
infinito que Jesus representa para cada ser humano. O diálogo inter-religioso
não se opõe à evangelização, mas determina seu estilo. Tal diálogo – escreveu
São João Paulo II na Redemptoris missio – “faz parte da missão
evangelizadora da Igreja”.
O mandato de Cristo: “Ide pelo mundo inteiro e
proclamai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16,15) e “Fazei discípulos todos os
povos” (Mt 28,19) conserva a sua perene validade, mas deve ser compreendido em
seu contexto histórico. São palavras para serem referidas no momento em que
foram escritas, quando “todo o mundo” e “todos os povos” eram um modo para
dizer que a mensagem de Jesus não era destinada apenas a Israel, mas também a
todo o resto do mundo. São sempre válidas para todos, mas, para quem já
pertence a uma religião, é preciso respeito, paciência e amor. Já o tinha
compreendido na prática Francisco de Assis. Ele projetava dois modos de ir
entre “os Sarracenos e outros infiéis”. Escreve na Regra não bulada:
Mas os frades que vão, podem comportar-se
espiritualmente entre eles de dois modos. Um modo é que não façam nem litígios
nem contendas, mas estejam submetidos a toda criatura humana por Deus e
confessem que são cristãos. Outro modo é que, quando virem que agrada ao
Senhor, anunciem a palavra de Deus, para que creiam em Deus onipotente, Pai e
Filho e Espírito Santo, criador de tudo, no Filho redentor e salvador[3].
O desafio da ciência
Com esta abertura de coração, voltemos agora a nos
ocupar da nossa fé cristã. O grande desafio que ela deve encarar em nossa época
não vem tanto da filosofia, como no passado, mas da ciência. É de alguns meses
atrás uma notícia sensacional. Um telescópio lançado ao espaço em 25 de
dezembro de 2021 e posicionado há um milhão e meio de quilômetros da Terra, em
12 de julho deste ano enviou imagens inéditas do universo que extasiaram o
mundo científico.
“O novo telescópio – lia-se nos noticiários –
escancarou uma nova janela sobre o cosmo, em condições de nos catapultar atrás
no tempo, até pouco depois do Big Bang inicial do mundo. É a visão mais
detalhada do universo primordial jamais obtida. Representa a primeira
degustação de uma nova e revolucionária astronomia que nos desvelará o universo
como jamais o tínhamos visto”.
Seríamos tolos e ingratos se não participássemos do
justo orgulho da humanidade por esta, como também por qualquer outra descoberta
científica. Se a fé – além do que da escuta – nasce, como foi dito, do estupor,
estas descobertas científicas não deveriam diminuir a possibilidade de crer,
mas aumentá-la. Se vivesse hoje, o salmista cantaria com maior impulso: “Os
céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras de suas
mãos” (Sl 19,2) e Francesco de Assis: “Louvado sejas, meus Senhor, com
todas as tuas criaturas”.
Deus quis nos dar um sinal tangível da sua infinita
grandeza com a imensidão do universo e um sinal da sua
“inalcançabilidade” com a menor partícula de matéria que, uma vez
alcançada – assegura a física –, mantém a sua “indeterminação”. O cosmo não se fez
sozinho. É a qualidade do ser, não a quantidade que
decide; e a qualidade da criação é ser... criada! Bilhões de galáxias,
distantes bilhões de bilhões de anos-luz, não mudam esta sua qualidade.
Fazemos estas reflexões sobre fé e ciência não para
convencer os cientistas não crentes (nenhum deles está aqui para escutar ou
lerá estas palavras), mas para nos confirmar a nós, crentes na fé, e não nos
deixarmos perturbar pelo clamor das vozes contrárias. É o mesmo objetivo pelo
qual São Lucas afirma ao “caríssimo Teófilo” ter escrito o seu Evangelho: “para
que conheças – diz ele – a solidez dos ensinamentos que recebeste” (Lc 1,4).
Diante do desdobrar-se das dimensões ilimitadas do
universo diante de nossos olhos, o maior ato de fé para nós, cristãos, não é crer
que tudo isso foi criado por Deus, mas crer que “tudo foi criado por meio de
Cristo para ele” (Cl 1,16), que “sem ele nada foi feito de tudo o que foi
feito” (Jo 1,3). O cristão tem uma prova sobre Deus bem mais convincente
daquela dada pelo cosmo: a pessoa e a vida de Jesus Cristo.
Os crentes não são avestruzes. Não escondemos a
cabeça no solo para não ver. Compartilhamos com cada pessoa o desconcerto
diante de tantos mistérios e contradições do universo: da evolução natural, da
história, da própria Bíblia... Contudo, estamos em condições de superar o
desconcerto com uma certeza mais forte do que todas as incertezas: a
credibilidade da pessoa de Cristo, da sua vida e da sua palavra. A certeza
plena e alegre não se tem antes, mas depois de ter acreditado.
O justo, na sua fidelidade, viverá
A fé é o único critério capaz de fazer como que nos
relacionemos de modo justo, não apenas com a ciência, mas também com a
história. Ao falar da fé que justifica, São Paulo cita o famoso oráculo de
Habacuc: “O justo, na sua fidelidade, viverá” (Hab 2,4). O que Deus quer
dizer com aquela palavra profética, a partir do momento que é Deus em pessoa
que a pronuncia?
A mensagem se abre com uma lamentação do profeta,
pela derrota da justiça e porque Deus parece assistir impassível do alto dos
céus a violência e a opressão. Deus responde que tudo isso está prestes a
acabar porque chegará logo um novo flagelo – os Caldeus – que varrerá tudo e
todos. O profeta se rebela contra esta solução. É esta a resposta de Deus? Uma
opressão que substitui a outra?
Mas justamente aqui Deus esperava o profeta. Há uma
solenidade insólita no modo com que o oráculo divino é introduzido: “Escreve
uma visão e grava-a sobre tábuas... Se demora, espera-a... Eis que sucumbe quem
não é reto, mas o justo, na sua fidelidade, viverá” (Hab 2,2-4). Ao
profeta, é pedido o salto da fé. Deus não desvenda o enigma da história, mas
pede que confie nele e na sua justiça, apesar de tudo. A solução não está na
cessação da prova, mas no aumento da fé.
A história é uma contínua luta entre bem e mal,
ímpios que triunfam e justos que sofrem. A vitória estável do bem sobre o mal
não deve ser buscada na própria história, mas além dela. Deixemos para trás
toda forma de milenarismo. Contudo, Deus é de tal forma soberano e está no
controle dos eventos, que faz servir aos seus planos misteriosos até mesmo o
agitar-se dos ímpios. É verdade: Deus escrive certo por linhas tortas! As
situações podem escapar das mãos dos homens, mas não das de Deus.
A mensagem de Habacuc é de uma singular atualidade.
A humanidade viveu nos últimos anos do século passado a libertação do poder
opressor dos sistemas totalitários comunistas. Mas não tivemos o tempo de dar
um respiro de alívio, que outras injustiças e violências surgiram no mundo.
Houve quem, ao final da “guerra fria”, tivesse ingenuamente acreditado que o
triunfo da democracia teria, portanto, encerrado definitivamente o ciclo das
grandes convulsões e que a história teria prosseguido o seu curso sem maiores
agitações. Até sema mais “história”. Uma tal tese foi, bem cedo, piedosamente
desmentida pelos eventos, com o surgimento de outras ditaduras e o deflagrar-se
de outras guerras, a começar pela “do Golfo”, até a desafortunada deste ano na
Ucrânia.
Nesta situação, também para nós se apresenta a
acalorada pergunta do profeta: “Até quando, Senhor? Tu, de olhos tão puros, que
não pode ver o mal! Por que tanta violência, tantos corpos humanos esqueléticos
pela fome, tanta crueldade no mundo, sem que intervenhas?” A resposta de Deus
ainda é a mesma: sucumbe ao pessimismo e se escandaliza quem não tem o coração
reto com Deus, enquanto o justo, na sua fidelidade, viverá, encontrará a
resposta na sua fé. Entenderá o que Jesus queria dizer quando, diante de
Pilatos, disse: “O meu reino não é deste mundo” (Jo 18,36).
Inculquemos isso, porém, e recordemo-lo, conforme a
oportunidade, ao mundo: Deus é justo e santo; não permitirá que o mal tenha a
última palavra e os malfeitores se valham disso. Haverá um juízo na conclusão
da história, “vai um livro ser trazido, no qual tudo está contido, onde o mundo
está julgado”: Liber scriptus proferetur – in quo totum continetur –
unde mundus judicetur”[4].
Um primeiro juízo, no mais – imperfeito, mas sob os
olhos de todos, crentes e não crentes – já está em ato agora, na história. Os
benfeitores da humanidade que trabalharam pelo progresso do seu país e pela paz
no mundo são recordados com honra e bênção de geração em geração; o nome dos
tiranos e dos opressores continua pelos séculos a ser acompanhado de desprezo e
reprovação. Jesus inverteu para sempre os papéis. Vencedor porque vítima: assim
o define Santo Agostinho: Victor quia victima. À luz da eternidade
- e também da história - não são os verdugos os verdadeiros vencedores, mas as
suas vítimas.
O que a Igreja pode fazer, para não assistir
passivamente ao desdobrar-se da história, é colocar-se contra a opressão e a
prepotência, colocar-se sempre, “oportuna e inoportunamente”, do lado dos
pobres, dos fracos, das vítimas, daqueles que carregam o peso maior de todo
infortúnio e de toda guerra.
O que pode também fazer é remover um dos fatores
que sempre tem fomentado os conflitos, isto é, a rivalidade entre as religiões,
as famigeradas “guerras de religião”. Do entendimento e da colaboração leal
entre as grandes religiões, pode vir um impulso moral que imprima na história
aquele novo curso que, em vão, espera-se dos poderes políticos. Neste sentido,
deve ser vista a utilidade de iniciativas como aquelas, iniciadas por São João
Paulo II e aceleradas hoje pelo atual Sumo Pontífice, para um diálogo
construtivo entre as religiões.
A fé é arma da Igreja. Também a Igreja, como o justo
de Habacuc, “na sua fidelidade, viverá”. Roma deixou, há tempos, de ser caput
mundi, mas deve permanecer caput fidei, capital da fé. Não só
da reta fé, isto é, da ortodoxia, mas também da intensidade e da radicalidade
do crer. O que os fiéis captam imediatamente em um sacerdote e em um pastor é
se “crê”, se crê no que diz e no que celebra. Hoje, faz-se muito uso da transmissão
sem fio (WiFi, diz-se em inglês). Também a fé se transmite de preferência
assim: sem fio, sem muitas palavras e raciocínios, mas por uma corrente de
graça que se estabelece entre dois espíritos.
O maior ato de fé que a Igreja pode dar – após ter
rezado e feito o possível para evitar ou fazer cessar os conflitos – é
voltar-se a Deus com um ato de total confiança e sereno abandono, repetindo com
o Apóstolo: “Sei em quem acreditei!”: Scio cui credidi (2Tim
1,12). Deus jamais retrocede para deixar cair no vazio quem se lança em seus
braços.
Vamos ao encontro de Cristo que vem, com um ato de
fé, que é também uma promessa de Deus e, portanto, uma profecia: o mundo está
nas mãos de Deus e, quando, abusando da sua liberdade, o homem terá chegado ao
fundo, ele intervirá para salvá-lo. Sim, intervirá para salvá-lo! Para isso, de
fato, veio ao mundo, há dois mil e vinte e dois anos.
_________________________________
Tradução de fr. Ricardo Farias, ofmcap
[1] Cf. Ambrósio, Comentário sobre
o Salmo 118, XII,14.
[2] Cf. Gregório Magno, Homilias sobre
Ezequiel, II,7 (PL 76,1018).
[3] Regra não bulada, cap. XVI.
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