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terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Dai ao pobre o que lhe pertence

Uma trabalhadora rural brasileira no Estado de Pernambuco | 
30Giorni
Arquivo 30Dias - 01/2007

Os quarenta anos da encíclica Populorum progressio

Dai ao pobre o que lhe pertence

Entrevista com o cardeal Oscar Andrés Rodríguez Maradiaga, arcebispo de Tegucigalpa, em Honduras: a atualidade da encíclica de Paulo VI, que, em vez de dividir o mundo entre Leste e Oeste, o dividiu entre povos da opulência e povos da fome.

Entrevista com o cardeal Oscar Andrés Rodríguez Maradiaga de Gianni Cardinale

“Eu gostaria de acrescentar que, logo depois do Concílio, o servo de Deus Paulo VI, há exatos quarenta anos, mais precisamente no dia 26 de março de 1967, dedicou ao desenvolvimento dos povos a encíclica Populorum progressio.” Essas palavras, pronunciadas por Bento XVI durante a homilia proferida por ocasião da solene liturgia da Epifania, em 6 de janeiro passado, lembraram a toda a Igreja o aniversário de um dos mais importantes, e por certos aspectos mais discutidos, documentos promulgados pelo papa Montini. Sobre esse aniversário, e a atualidade da Populorum progressio30Dias falou com o cardeal Oscar Andrés Rodríguez Maradiaga, arcebispo de Tegucigalpa e, entre outras coisas, membro do mesmo Pontifício Conselho de Justiça e Paz que Paulo VI citava, no início de sua encíclica, como organismo criado propositalmente para responder ao desejo de “voltar de forma concreta a contribuição da Santa Sé para essa grande causa dos povos em via de desenvolvimento”. Encontramos o purpurado salesiano durante uma passagem sua pela Itália, onde participou de uma reunião plenária da Pontifícia Comissão para a América Latina e recebeu um diploma honoris causa da Universidade de Urbino.
“Fico muito contente com o fato de o Papa, num de seus primeiríssimos discursos deste ano, ter lembrado, entre os aniversários mais significativos de 2007, o quadragésimo ano da Populorum progressio”, nos diz o cardeal, que no passado foi também presidente do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam).
Eminência, que lembranças o senhor tem da saída da encíclica de Paulo VI?
OSCAR ANDRÉS RODRÍGUEZ MARADIAGA: Quando saiu a Populorum progressio, eu era um jovem estudante de teologia. A primeira coisa que me impressionou foi que o Papa quis assiná-la em 26 de março, data que em 1967 correspondia à “solenidade da ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo”. Não foi uma data escolhida por acaso, pois – são palavras da encíclica –, “fiel ao ensinamento e ao exemplo de seu divino Fundador, que punha ‘o anúncio da boa nova aos pobres’ (cf. Lc 7, 22) como sinal de sua missão, a Igreja nunca se descuidou de promover a elevação humana dos povos aos quais levava a fé em Cristo”. A Populorum progressio foi ainda, para os sacerdotes e seminaristas daquele período, um grande impulso ao nosso compromisso social. Eram tempos de grande fervor pós-conciliar. Eram tempos de grande impulso da pastoral social e, em geral, de toda a atividade social da Igreja. Eram tempos muito bonitos para a Igreja latino-americana. O otimismo que havia caracterizado a “aliança para o progresso” lançada pelo presidente Kennedy estava superado, mas continuava-se a dizer que a América Latina era o continente da esperança.

Paulo VI assina a Populorum progressio, em
26 de março de 1967, domingo de Páscoa
30Giorni

A encíclica suscitou esperanças, mas também críticas...
RODRÍGUEZ MARADIAGA: Na época, a encíclica foi acusada de ser “marxismo reaquecido”. De certa forma, todo o compromisso social da Igreja era etiquetado como marxismo. O próprio documento final da Conferência Geral do Celam, celebrada em Medellín em 1968, sobre o qual a Populorum progressio teve uma grandíssima influência, também foi visto como um texto subversivo.
Como se explica esse tipo de crítica?
RODRÍGUEZ MARADIAGA: Essas acusações surgiram porque o documento do papa Montini, de maneira clara e corajosa para a época, dizia pela primeira vez que a justiça social era necessária para um autêntico desenvolvimento. E, quando a Igreja fala em favor dos pobres, há sempre alguém que a repreenda por querer fazer política e entrar num campo que não é seu. Sobre a acusação de que o documento era marxista, digo que ela era e continua a ser ridícula. A encíclica retomava esta célebre frase de Santo Ambrósio: “Não é o que tu tens que doas ao pobre. Nada mais fazes senão dar-lhe o que a ele mesmo pertence. Pois aquilo que tomas entre teus bens é na verdade o que é dado em comum para o uso de todos. A terra é dada a todos, não somente aos ricos”. E acrescentava: “Ninguém está autorizado a reservar para seu uso exclusivo o que supera a sua necessidade, quando aos outros falta o necessário”. Isso não me parece marxismo. Santo Ambrósio escreveu essas coisas alguns séculos antes de Marx...
No entanto, afirmava-se na encíclica que em determinadas situações o bem comum exige “a expropriação de certas posses”...
RODRÍGUEZ MARADIAGA: Era um conceito retomado da constituição conciliar Gaudium et spes, portanto nada de revolucionário. Da mesma forma como não era de forma alguma revolucionária a advertência contra o risco de que o lucro fosse considerado o “motor essencial do progresso econômico” e de que a concorrência fosse venerada como “lei suprema da economia”. Paulo VI, nesse sentido, falava de “liberalismo desenfreado”. Também neste caso, não parece realmente que se tenham passado quarenta anos, ainda que hoje não falemos mais em “liberalismo desenfreado”, mas de economia neoliberal.
A encíclica dedicava também um capítulo à insurreição revolucionária...
RODRÍGUEZ MARADIAGA: Mas para dizer que ela só era lícita “no caso de uma tirania evidente e prolongada que atente gravemente contra os direitos fundamentais da pessoa e traga perigosos danos ao bem comum do país”. Do contrário – explicava a encíclica –, essa insurreição revolucionária “é fonte de injustiças, introduz novos desequilíbrios e provoca novas ruínas. Não se pode combater um mal real ao preço de um mal maior”. É verdade que, na época, houve quem interpretasse a seu modo esse ponto da encíclica, quase como se fosse a aprovação de uma espécie de teologia da revolução. Nada mais errado. Tanto assim que Paulo VI, em seguida, reafirmou peremptoriamente que “a violência não é evangélica e não é cristã”.

Na encíclica afirma-se que “entre as civilizações, como entre as pessoas, um diálogo sincero cria efetivamente a fraternidade”. Uma afirmação que talvez compreendamos melhor hoje do que há quarenta anos. Um motivo a mais para recordar e difundir essa encíclica mesmo entre aqueles que infelizmente profetizam e, às vezes, até desejam e provocam “conflitos de civilizações” dos quais a humanidade não sente absolutamente necessidade.

Qual é a atualidade da Populorum progressio?
RODRÍGUEZ MARADIAGA: Hoje os tempos mudaram, não existe mais o conflito que existia na época entre marxismo e capitalismo. Vivemos a atmosfera da chamada globalização dos mercados. Globalização que, porém, traz consigo um grande componente de injustiça, com a marginalização daqueles que não conseguem entrar nesse novo tipo de mercado. Há uma redução da concepção do desenvolvimento a um nível puramente econômico. O aspecto social é completamente negligenciado. Cuida-se das cifras da macroeconomia mas não se consideram os homens concretos. Mas é o homem, como explica com força a Populorum progressio, o sujeito principal do desenvolvimento. Por isso, a encíclica não perdeu muito de sua atualidade. Suas palavras sobre a justiça social, sobre o que se deve entender por desenvolvimento, sobre a paz, conservam todo o seu valor.
Portanto, ainda é atual o conceito de que “o desenvolvimento é o novo nome da paz”...
RODRÍGUEZ MARADIAGA: É um conceito profético, mas que não foi ouvido. Passaram-se quarenta anos e é cada vez mais verdadeiro: se não há desenvolvimento, se os povos não têm como progredir no bem-estar também material, então a paz é uma miragem cada vez mais inalcançável. E aqui eu me refiro não apenas à paz entre os Estados, entre os povos, mas também à paz dentro dos países, dentro de cada sociedade. Penso na América Latina, mas não só nela. Nossos jovens, se não têm a possibilidade de possuir um trabalho honesto, têm dois caminhos pela frente: migrar ou entrar para o terrível mundo do narcotráfico.
Sobre o fenômeno da migração, a encíclica lembra o dever de acolher benignamente “os trabalhadores imigrantes que vivem em condições muitas vezes desumanas, obrigados a espremer seu salário para aliviar um pouco as famílias que ficaram na miséria em sua terra natal”...
RODRÍGUEZ MARADIAGA: É uma advertência de extrema atualidade. Como pastor da Igreja latino-americana, faço votos de que essas palavras sejam ouvidas também por nossos irmãos mais ricos do Norte. E não me refiro à Igreja norte-americana, que sempre esteve e está muito próxima de nós. Mas aos responsáveis políticos. O presidente Bush e o Congresso não deveriam fazer leis contra os imigrantes. Não convém a eles. Essas leis os tornam antipáticos aos nossos povos. Os Estados Unidos são uma grande nação, mas devem fazer mais para apoiar o desenvolvimento da América Latina. Do contrário, esse vazio de iniciativa política é preenchido por outras potências emergentes, como a China, ou discutidas, como o Irã. E então não se pode lamentar muito quando isso acontece.
O senhor antes mencionava a influência que a Populorum progressio teve sobre a segunda Conferência Geral do Celam, celebrada em Medellín, na Colômbia, em 1968...
RODRÍGUEZ MARADIAGA: Foi um impacto realmente notável. A sua influência se manifestou nas numerosas citações, mas sobretudo na ênfase que a Igreja pôs sobre o tema dos pobres depois da Conferência.

Paulo VI com os campesinos colombianos; Bogotá,
23 de agosto de 1968 | 30Giorni

Em maio será celebrada em Aparecida, no Brasil, a quinta Conferência Geral do Celam. O senhor acha que a Populorum progressio será lembrada nessa ocasião?
RODRÍGUEZ MARADIAGA: Espero mesmo que a próxima Conferência de Aparecida lembre adequadamente a encíclica. Até porque não existe hoje o clima de 1968 e, portanto, não existe o perigo daquelas instrumentalizações que na época foram quase inevitáveis.
Hoje, na América Latina, se registra também uma guinada política para a esquerda, em alguns casos com fortes traços populistas...
RODRÍGUEZ MARADIAGA: Sem sombra de dúvida, aqui e ali traços populistas vêm aparecendo. O que traz problemas para a manutenção da democracia. Mas a pergunta que os ricos, os países ricos e também as instituições financeiras internacionais devem-se fazer é esta: o que foi feito para impedir esses resultados eleitorais que eles agora desaprovam? Como nos lembra justamente a Populorum progressio, “o supérfluo dos países ricos deve servir aos países pobres [...]. De resto, os ricos serão os primeiros a tirarem vantagem disso. Do contrário, obstinando-se em sua avareza, só poderão suscitar o juízo de Deus e a cólera dos pobres, com conseqüências imprevisíveis”. Ora, os poderosos deste mundo podem não crer e portanto não temer o juízo de Deus. Mas, da cólera dos pobres, que se pode expressar também por determinados resultados eleitorais imprevisíveis e desagradáveis, deveriam ao menos ter um certo temor. Mas não me parece que seja assim.
Eminência, uma última pergunta. Na encíclica afirma-se que “entre as civilizações, como entre as pessoas, um diálogo sincero cria efetivamente a fraternidade”...
RODRÍGUEZ MARADIAGA: Essa também é uma afirmação profética! Que talvez compreendamos melhor hoje do que há quarenta anos. Um motivo a mais para recordar e difundir essa encíclica mesmo entre aqueles que infelizmente profetizam e, às vezes, até desejam e provocam “conflitos de civilizações” dos quais a humanidade não sente absolutamente necessidade.
O cardeal salesiano de Honduras

O cardeal Oscar Andrés Rodríguez Maradiaga durante
um encontro com os jovens de Tegucigalpa | 30Giorni
O cardeal Oscar Andrés Rodríguez Maradiaga, salesiano, 64 anos completados no final de dezembro, bispo desde 1978, é arcebispo de Tegucigalpa desde 1993. João Paulo II conferiu a ele o barrete cardinalício no consistório de 21 de fevereiro de 2001. Por vinte anos, desenvolveu sua missão também no Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam), até ser eleito seu presidente para o quadriênio 1995-1999. Desde 2003, é presidente da Divisão de Justiça e Solidariedade do Celam. Na Cúria Romana, é membro da Congregação para o Clero, do Pontifício Conselho de Justiça e Paz, do Pontifício Conselho das Comunicações Sociais e da Pontifícia Comissão para a América Latina.

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF