O falso drama dos pseudoescrupulosos | Presbíteros |
O falso drama dos
pseudoescrupulosos
Por Pe. José Eduardo Oliveira e
Silva
DISPENSANDO-SE
DA PRUDÊNCIA
Segundo São Tomás, a prudência é
a condutora das virtudes morais e ele mesmo a define
como a “recta ractio agibilium”,
“a reta razão no agir”.
Um dos motivos que me levou a
escrever essa breve série sobre os pseudoescrupulosos foi a compreensão para
com vários irmãos sacerdotes que ultimamente se têm queixado justamente desse
problema.
Um dia desses, um me dizia: “o
que eu faço?, um rapaz me mandou um áudio de meia-hora pelo WhatsApp,
angustiado por conta de uma questão moral insignificante”, outro colega me
reclamou: “passei quarenta e cinco minutos ao telefone, resolvendo a dúvida
moral de uma pessoa, sendo que o caso era de simples solução, mas, quanto mais
eu explicava, mais ela complicava”. As reclamações são muitas, desde pessoas
que mandam contínuas e longas mensagens pelas redes sociais até aquelas que
procuram desesperadamente o padre várias vezes no mesmo dia, sempre com
“urgência”.
Um dos agravantes para a situação
é que frequentemente encontram pessoas que, ao contrário de as ajudarem a sair
desse estado mental, ajudam-nas a aprofundar o problema, alegando que o fulano
é de uma sutileza impressionante ou que é de uma capacidade de penetração
agudíssima. Por fim, respaldadas por tais orientadores, as criaturas vão se
sentindo importantes, especiais, inteligentes, a vaidade se vai inflando e a
pessoa vai enlouquecendo, não sem antes enlouquecer meia dúzia de pessoas,
incluído aí o pobre confessor.
Essas pessoas acabam por
substituir a prudência pela consulta contínua acerca dos temas mais banais,
elevados sempre à categoria de princípios. Dispensam-se de ser prudentes e
criam uma dependência ansiosa, perdendo completamente a chance de formar a sua
própria razão prática.
São Tomás dizia que a prudência é
a “reta razão no agir”. Para mim, este é o primeiro problema. As pessoas não
entendem que a moral é uma ciência prática, com uma metodologia prática.
Não adianta estudar moral e não
desenvolver a inteligência prática. Dou um exemplo ilustrativo: de pouco
adianta você estudar livros de culinária de todos os países e nunca passar um
dia na cozinha; no final, você saberá tudo sobre culinária, mas, diante de uma
multidão de ingredientes, de um fogão de cinco bocas, de sete panelas, forno,
água, micro-ondas e oito convidados cheios de fome você se sentirá perdido e
desorientado, vai queimar a comida e colocar tudo a perder, por fim, irão todos
para o self-service do shopping.
É isso que acontece com boa parte
dos “orientadores” morais e desses falsos escrupulosos. Muitas vezes, por um
defeito mental, esses sujeitos são muito teóricos: sabem lidar com livros, mas
não com pessoas; tentam formar seres humanos como quem escreve sobre um papel,
sem perceberem que o homem não foi criado para se encaixar numa tese, ele
precisa praticar o bem entendendo-o profundamente para conseguir perceber que o
bem é bom mesmo.
Isso se percebe na própria arquitetura
com que São Tomás escreveu a Suma Teológica. As duas partes centrais dessa obra
são relativas à moral fundamental (primeira seção da segunda parte) e à moral
especial (segunda seção da segunda parte).
Na primeira seção, São Tomás
recomeça metodologicamente o seu raciocínio. Partindo da consideração do fim
último do homem, ele mostra como para o homem, criatura racional, “é necessário
chegar à bem-aventurança por alguns atos”, então, estuda “os atos humanos, afim
de que saibamos com que atos se chega à bem-aventurança ou quais impedem o
caminho para ela”. Daí parte para a consideração dos princípios destes atos,
“primeiro, os princípios intrínsecos; segundo, os princípios extrínsecos. Os
princípios intrínsecos são a potência e o hábito”, sendo que os hábitos bons
são as virtudes e os maus são os vícios, que lhes são opostos; em seguida,
considera “os princípios exteriores dos atos. O princípio exterior que inclina
exteriormente ao mal é o diabo. Já o princípio exterior que move exteriormente
ao bem é Deus, que nos instrui pela lei e ajuda pela graça”. Aí está toda a
arquitetura da primeira seção da segunda parte. A segunda seção tratará de cada
uma das virtudes e dos vícios.
Em outras palavras, São Tomás não
explica a Teologia Moral através da consideração teórica das leis morais, ele
vai à raiz das nossas próprias potências operativas e as enxerga a partir da
razão prática, extraindo delas a sua própria orientação racional para o seu bem
equivalente, que são as virtudes. Por isso, a prudência é a “reta razão no
agir” e não na consideração teórica, pois, para isso, existe a razão
especulativa.
Às vezes, vejo alguém especulando
sobre a moralidade de uma ação de modo tão teórico que me parece quase
irrealizável na prática. A ação só pode ser considerada desse modo a
posteriori, fotograficamente, com quem analisa a cena de um filme, a não ser
que o agente seja um moralista muito bem treinado. De fato, isso vai muito bem
para os confessores, mas não vai bem para praticar ao longo da vida. Ensiná-lo
desse modo a calouros não é ajudá-los, mas apenas aumentar a sua insegurança e
perplexidade.
Do mesmo modo, treinar as pessoas
para raciocinarem a partir das leis, abstratamente, não é formar a sua
prudência, mas, de certo modo, impedi-la. Por isso, essas pessoas ficam
perplexas e desesperadas, porque não estão aprendendo a ser virtuosas, mas
apenas a cumprirem preceitos abstratamente apreendidos.
Por isso, a exposição de São
Tomás é a partir das virtudes, porque, diante desse objetivo, fica muito mais
claro o fim prático da conduta humana.
Quando se raciocina abstratamente
a partir da lei, a mente fica como que em suspense, carente de entender o
fundamento racional dessa lei. Por exemplo, quando se raciocina a partir do
dever de “honrar os pais” e daí se extraem as obrigações concretas decorrentes,
o intelecto se pergunta implicitamente o porquê de “honrar os pais”, buscando o
verdadeiro princípio racional que está por trás desse mandamento. A resposta
para essa pergunta só pode ser entendida a partir da “razão de virtude” que lhe
dá suporte: nós temos para com os nossos pais deveres de justiça que são
impagáveis e, por isso, devemos-lhes certa veneração; ora, a formulação
positiva desta é o mandamento de honrá-los, a lei.
Notem que São Tomás extrai a lei
das virtudes, e não o contrário. Em outras palavras, na medida em que o homem
aprende a praticar o bem percebe que este é verdadeiramente bom, ou seja, que é
racional, que é lógico, que é lei.
O homem virtuoso não é aquele que
simplesmente pratica o bem porque é lícito e evita o mal porque é ilícito, ele
realmente é prudente, ele sabe que o bem é bom e o ama.
Quando descreve as partes que
integram a prudência (cf. I-II, q. 49), que são como os elementos a partir dos
quais ela está construída, São Tomás mostra como ela requer um verdadeiro
exercício prático-intelectual: é necessário desenvolver a memória (1) de
experiências morais muito bem vividas, sobre as quais a inteligência (2) se
aplica para apreender sua lógica profunda, de modo que pela docilidade (3) a pessoa
se vá ajustando à realidade e aprenda a ter sagacidade (4), isto é, certa
perspicácia moral, e raciocine (5) concretamente sobre suas ações, exercendo
previsão (6) sobre as suas consequências, circunspecção (7) para analisar a sua
conveniência moral relativamente às circunstâncias e cautela (8) quanto aos
possíveis males eventualmente decorrentes de sua ação.
Os pseudoescrupulosos, ao
contrário, não querem pôr a sua cabeça para funcionar, querem um “manual do
escoteiro mirim”, querem um guru que esteja sempre à sua disposição, querem
todas as respostas prontas em um livro. O melhor dos mundos para eles seria um
aplicativo em que simplesmente perguntariam e obteriam a resposta, sem
perceberem que, assim, estariam apenas atrofiando a sua capacidade de ser prudentes.
Os escrupulosos verdadeiros são
pessoas incapazes de prudência, e o reconhecem com humildade e docilmente,
esses pseudoescrupulosos, ao contrário, são preguiçosos, inconvenientes,
infantis e arrogantes.
Aconselho aos irmãos no
sacerdócio que não alimentem nada disso: não atendam a telefonemas
intermináveis e não respondam a mensagens inoportunas, não ouçam áudios
insuportavelmente gigantes e não leiam mensagens desproporcionalmente longas,
atendam no dia marcado, com tempo determinado e não sejam complacentes com este
tipo de pessoa. Tratem-nos com firmeza, pois é isso que precisam. No
atendimento, não deem a resposta que
eles facilmente querem, respondam
com outras perguntas, façam-nos pensar, mesmo que seja no tranco, e eles
começarão a desenvolver a prudência. Caso contrário, não formaremos adultos
virtuosos, mas pessoas psicologicamente frágeis, que não conseguem ter
desenvoltura moral, mas apenas aquela honestidade formal, de quem cumpre uma
regra e que não sabe responder a uma simples pergunta: “por que você está
fazendo isso”?
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