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"O absolutismo de uma democracia abstrata é justamente aquilo que a ameaça."
Michel Foucault formulou a sua teoria da “microfísica do poder” a partir da percepção de que as relações humanas são omnipresentemente relações de poder. A teoria, em si, tem os seus aspectos interessantes, mas padece de um erro fatal: pretender analisar a realidade a partir de um aspecto que, ainda que seja onipresente, é parcial. É como se tomássemos uma descrição por uma definição, já que, de certo modo, parafraseando os latinos, “relatio et potestas convertuntur”, “relação e poder se implicam mutuamente”.
Foucault, neste sentido, criou uma espécie não de “microfísica” do poder, mas de “metafísica” do mesmo, no sentido de que percebe que o “poder” corresponde àquilo que Aristóteles e S. Tomás de Aquino chamavam de “os transcendentais do ente”. Obviamente, para mim, o “poder” não é um transcendental das relações no mesmo sentido em que esta palavra tem nos clássicos; estou apenas tentando mostrar a tentativa filosófica de Foucault. Aliás, houve outras tentativas do gênero, como a de Leonardo Polo, que tentou transformar a “liberdade” num transcendental de “pessoa”.
Os transcendentais
Para Aristóteles e S. Tomás, há seis características que decorrem do ser enquanto tal: aliquid (algo), res (coisa), unum (uno), verum (verdadeiro), bonum (bom) e pulchrum (belo). Os “transcendentais do ente” são aspectos da própria realidade de tudo que é.
Neste sentido, os transcendentais chamam-se tais justamente porque, embora sejam aspectos de todos os seres enquanto tais, não se dão neles de maneira total, mas participada; e isso porque o próprio ato de ser que eles exercem é, em si, uma participação limitada criada do, no e pelo Ser divino.
Uma noção transcendental de democracia?
Ora, se Foucault tentou criar uma espécie de “transcendental da relação”, os nossos contemporâneos têm tentado criar uma noção transcendental de democracia. E isso vem desde longe, desde, pelo menos, os tempos da Revolução Francesa.
Não importa se o sujeito está matando, prendendo, invadindo a privacidade, criando crimes inexistentes na lei, atingindo poderes constitucionais, expropriando pessoas de seus bens… uma noção transcendental de “democracia” pode ser suportada por qualquer uma dessas ações.
Isso, em si, não carece de lógica. De fato, como muito bem já foi apontado, a democracia não pode se auto-gerar por meios democráticos, visto que ela teria que existir antes de si mesma. Por isso, os destruidores da democracia sempre levam vantagem sobre os seus criadores, visto que são eles que, de fato, usam de força para fazer prevalecer a vontade de um povo impotente.
O que é democracia?
Contudo, o que é, de fato, uma democracia? Em si, é o regime em que o povo governa por meio dos seus representantes. Não é, portanto, um estado de coisas abstrato, matemático, puro, em si mesmo institucional, mas existe no exato alcance em que essa finalidade é perseguida, ou seja, que se escute e atenta àquilo que é querido pelo povo.
A razão de ser dessas coisas é justamente o que impede que se crie uma noção transcendental de democracia em nome da qual se realize a concentração do poder monocrático. Este só se poderia exercer em função do aumento das liberdades e nunca em detrimento delas; e esse tipo de absolutismo redimido pela transcendência de uma democracia abstrata é justamente aquilo que a ameaça até os seus fundamentos, pois se torna uma arma polivalente, a ser usada contra qualquer um aleatoriamente identificado como inimigo.
Uso totalitário do poder em nome da democracia
Foi o uso totalitário do poder em nome dessa democracia transcendental que propiciou o surgimento de monstruosidades como o “terror de Robespierre”, que matou cerca de 17 mil pessoas em poucos meses, inaugurando o que se passou a chamar de “terrorismo de Estado”.
O mesmo expediente, ainda que não com os mesmos recursos assassinos, foi característico do que se chamou de “macarthismo”, a política de perseguição aos esquerdistas e, inclusive, aos seus amigos (era tratado como criminoso qualquer um que fosse amigo de um socialista).
Sociedade aberta
Agora, por democracia entende-se algo muito diferente do que o “governo do povo”. Há uma noção liberal de democracia que amplia este conceito em termos muito pitorescos. É aquilo que se chama de “sociedade aberta”.
O conceito foi pela primeira vez usado por Henri Bergson, mas partia de uma sua noção de universalismo moral, entendida como uma ética fundamental, válida para todos, que deveria servir como base para uma sociedade pouco controlada politicamente. São Tomás, a este respeito, é bastante mais realista quando fala sobre a necessidade das leis humanas para reprimir os delinquentes.
Essa ideia de Bergon, porém, foi amplamente desenvolvida pelo filósofo liberal Karl Popper, em seu livro “A sociedade aberta e os seus inimigos”. Mais do que um conceito político, Popper entende-o como um conceito cognitivo: partindo da crença de que todo conhecimento humano é provisório e falível, é necessário que se crie uma sociedade da tolerância, na qual todas as opiniões sejam respeitadas.
Paradoxo da tolerância
Contudo, Popper afirma que existe um limite para tal liberdade, este limite está delineado naquilo que ele chama de “paradoxo da tolerância”, ou seja, deve-se tolerar tudo, menos os intolerantes.
No entanto, mesmo para Popper, os “intolerantes” não são aqueles que pensam de maneira diferente dos moldes liberais, mas os que se valem da força institucional e física para impedir os outros de seguirem as suas convicções. Ele acreditava que se deveria levar o diálogo e a argumentação até o limite do possível.
Ainda que com princípios equivocados, Popper não levava tão longe quanto os seus seguidores a intolerância para com os que eles consideram intolerantes. De fato, o grande implementador das ideias do filósofo austríaco é ninguém menos que George Soros, cuja fundação, não por acaso, chama-se “Open Society”.
Diluição social
Nos últimos decênios, várias fundações se uniram em torno de uma tentativa de diluição das estruturas primárias e intermediárias das sociedades, afim de que permaneça apenas a estrutura de mercado, controlada por quem? Por eles mesmos!
Ora, qual é a grande barreira para a diluição dessas estruturas? Justamente são as crenças em torno dos mesmos valores, as quais aglutinam os indivíduos em torno de ideiais comuns. Por isso, qualquer um que, diferentemente dos pressupostos de Popper e Soros, creia que existem verdades objetivas e não provisórias é tachado impiedosamente de fundamentalista.
Inteligências discordantes são invisibilizadas
Aquilo que Popper preconizava, o diálogo racional, é inviabilizado por estes mesmos atores que detém a hegemonia da fala e da produção da cultura. As vozes e inteligências discordantes são simplesmente invisibilizadas, indivíduos são segregados e tornados párias num sistema em que a noção mesma de verdade é excluída como se fosse uma suma ofensa.
Papel da Igreja
Qual espaço a Igreja pode encontrar num mundo assim? Uma religião não feita de verdades pode apenas ser feita de práxis! Ora, esse tipo de religião que substitui a fé pela práxis já existe: chama-se teologia da libertação.
Ela não é uma “evangélica opção pelos pobres”, mas é justamente aquilo que definiu Gustavo Gutierrez, “uma crítica de si mesma e das suas próprias fontes”.
Perseguição sistemática de quem crê na verdade
Quando o paradoxo da tolerância de Popper, ao invés de simplesmente partir da ideia de que o conhecimento é sempre provisório, se une ao desconstrucionismo de Derridas e ao pós-criticismo de Foucault, a tarefa não é simplesmente criar uma comunidade dialógica num ambiente de descrença generalizada na objetividade da verdade, mas passa a ser a perseguição sistemática de quem crê em qualquer verdade, criminalizado como inimigo máximo ao qual se deve suprimir com toda força.
Estamos caminhando para a ditadura total
Não estamos caminhando para uma anarquia total, coisa plausível de se concluir quando os pressupostos da ideia são o ceticismo absoluto; não!, nós estamos caminhando para a ditadura total, na qual qualquer um poderá ser criminalizado por crer numa verdade absoluta e querer ensiná-la a outrem.
A noção de democracia, aqui, é totalmente abstrata, etérea, transcendental. Não se quer dar o governo ao povo, mas se quer moldá-lo para que uma parte deste desapareça e prevaleça apenas a parte que já é suficientemente moldada para não crer em nada, a não ser na economia, no prazer e na vaidade.
Esse tipo de democracia é o ideal de alguns que querem ser obedecidos sem serem conhecidos. O tal universalismo moral de Bergson será o de uma meta-ética do total barbarismo… E quem discordar e quiser ensinar a discordância está fora! Simples assim!
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Pe. José Eduardo de Oliveira, via Facebook
Fonte: https://pt.aleteia.org/
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