Arquivo de 30Dias – 04/2009
A antiga história de Nabot se repete cotidianamente
Assim inicia Santo Ambrósio a sua obra De Nabuthae, que toma o nome do mísero que contrariou o então potente do trono.
de Lorenzo Cappelletti
A herança de Cristo
Mas “o pobre e glorioso Nabot”, como o chama o artigo de L’Osservatore
Romano citado acima, é também alguma outra coisa, ou melhor, é também
alguma outra coisa. Nabot não é apenas a imagem do pobre de Israel. Na sua
recusa de ceder a vinha (“O Senhor me livre de ceder-te a herança dos meus
pais”), Nabot é também a imagem do guardião do depositum fidei.
Durante a batalha que o opôs aos arianos, Ambrósio lembrava Nabot a respeito
deste propósito: “O santo Nabot defendeu as suas vinhas mesmo com o preço do
seu sangue. Se ele não cedeu/traiu (non tradidit) a sua vinha, nós
cederemos a Igreja de Cristo? [...] Se ele não cedeu a herança dos pais, eu
cederei a herança de Cristo? Longe de mim ceder a herança dos pais, ou seja de
Dionísio que morreu no exílio por causa da fé, a herança de Eustórgio, a
herança de Mirocle, e de todos os santos bispos precedentes. A minha resposta
foi a de um bispo; o imperador que faça o que está em poder de um imperador.
Poderia me tirar a vida antes que a fé” (Lettera 75a, ou seja Contra
Auxentium de Basilicis do ano 386).
Dois sucessores de Ambrósio, que depois subiram ao trono de Pedro, quiseram
imitar o santo bispo de Milão na guarda da vinha do Senhor, que é juntamente a
guarda do pobre e do depositum fidei: Pio XI (Achille Ambrogio
Damiano Ratti) e Paulo VI (Giovanni Battista Montini). Ambos, como Ambrósio,
homens de vasta cultura, ambos provenientes de ricas famílias, ambos levantando
a voz como pobres e para os pobres, ambos com condições de fazer política sem
objetivo político. Ambos lembraram Santo Ambrósio em seu magistério social. Pio
XI – que, na Quadragesimo anno, relevou com os tons proféticos do
santo doutor que “à liberdade do mercado subentrou a hegemonia econômica, à
avidez do lucro seguiu-se a desenfreada ambição de predomínio e toda a economia
se tornou horrendamente dura, cruel, atroz”; e que única era a fonte donde
jorrava” de um lado o nacionalismo ou o imperialismo econômico; do outro não
menos funesto e execrável o internacionalismo bancário ou imperialismo
internacional do dinheiro, cuja pátria é lá onde está o lucro” – abria esta
encíclica “seguindo a advertência de Santo Ambrósio que dizia ‘não haver algum
dever maior do que o de agradecer’”. Segundo aquele convite constante à oração
(não tinha dito Santo Ambrósio “rezeis, vós que possuís apenas isso, coisa que
é mais preciosa do que o ouro e a prata”?) que não é o último motivo de tocante
consolação quando se lêem os outros seus documentos sociais: a pequena e
comovente Impendent Charitas, que implora, na Festa dos Anjos da
Guarda de 1931, de vir ao encontro dos sofrimentos dos menores ao aproximar-se
de um inverno de fome; a não muito mais extensa Charitate Christi
compulsi, de maio do ano seguinte, encíclica social toda dedicada à oração
e às obras de penitência: “E qual objeto poderia ser mais digno da nossa oração
e mais correspondente à pessoa adorável d’Aquele que é o único ‘Mediador entre
Deus e o homem, o homem Jesus Cristo’, do que implorar a conservação na terra
da fé no único Deus vivo e verdadeiro?”.
Paulo VI, que se possível era ainda mais conforme ao grácil e culto Ambrósio,
quis se referir precisamente ao seu De Nabuthae no número 23
da Populorum progressio: “Sabe-se com qual firmeza os Padres da
Igreja esclareceram qual deveria ser o comportamento daqueles que possuem para
com aqueles que são necessitados: ‘Não é dos teus bens’, diz Santo Ambrósio,
‘que fazes dons ao pobre; tu não fazes que devolver aquilo que os pertence.
Pois te aproprias daquilo que é dado em comum para o uso de todos. A terra é
dada a todos, e não apenas aos ricos’. É como dizer que a propriedade privada
não constitui para ninguém um direito incondicionado e absoluto. Ninguém está
autorizado a reservar para seu uso exclusivo aquilo que supera a sua
necessidade, quando aos outros faltam o necessário. Numa palavra, ‘o direito de
propriedade não deve jamais ser exercitado em detrimento da utilidade comum,
segundo a doutrina tradicional dos Padres da Igreja e dos grandes teólogos’.
Onde houver um conflito ‘entre direitos privados adquiridos e exigências
comunitárias primordiais’, deve o poder público ‘preocupar-se em resolvê-lo,
com a participação ativa das pessoas e dos grupos sociais’”.
Havia uma vez homens pobres e gloriosos...
Fonte: http://www.30giorni.it/
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