Papa Bento XVI (ANSA) |
A
produção teológica de J. Ratzinger a respeito da liturgia é marcada
principalmente por duas obras: A Festa da Fé (1981) e O Espírito da Liturgia:
uma introdução (2000).
Dom Antonio Luiz Catelan Ferreira - bispo auxiliar
do Rio de Janeiro
A liturgia é um dos temas mais caros ao Papa Bento
XVI. Ele dedicou-lhe muita atenção e reflexão, tanto em sua produção teológica
pessoal, como em seu Magistério Pontifício.
A produção teológica de J. Ratzinger a respeito da
liturgia é marcada principalmente por duas obras: A Festa da Fé (1981)
e O Espírito da Liturgia: uma introdução (2000). Na coleção
que reúne sua produção teológica, o volume 11 recolhe diversos artigos,
conferências, apresentações e homilias sobre o tema. Na língua original soma
757 páginas (Herder, 2008), na tradução brasileira (Ed. CNBB, 2ª edição
revisada, 2019) soma 751).
O texto em que ele desenvolve seu pensamento de
modo mais sistemático e completo é do ano 2000. O título da obra se assemelha
muito ao do livro de um de seus autores favoritos, Romano Guardini, O
Espírito da Liturgia, publicado em 1918. Com isso ele indica que pretende
retomar aspectos de uma corrente do Movimento Litúrgico que não receberam a
mesma atenção no caminho da liturgia ao longo do Século XX. A história da
liturgia e de seus principais elementos é apresentada na perspectiva da
continuidade fundamental e o que se assemelha a rupturas ele demonstra serem
evoluções necessárias do fundamento posto por Deus desde o ato criador do
cosmos. Essa perspectiva se manifesta já na relação entre o Antigo e o Novo
Testamento.
Nesse libro, o estudo dos fundamentos bíblicos da
liturgia recebe atenção primorosa. Dialoga com os autores das principais
pesquisas e as passa em resenha para discutir as ideias principais ou mais
difundidas. Dá grande atenção ao desenvolvimento da liturgia ao longo da
história da Igreja, em perspectiva de crescimento orgânico, vital, sem rupturas
bruscas. Destaca-se sua exposição sobre o significado da participação ativa de
todos os fiéis nas celebrações: trata-se não simplesmente de fazer ou dizer
coisas, mas de tomar parte na ação fundamental, que é realizada por Cristo
através de sua Igreja. Os fiéis não são meros expectadores, tomam realmente
parte no ato de culto, suas ações exteriores são extremamente importantes.
Bastaria, para compreender a importância que J. Ratzinger atribui a elas, a
leitura do capítulo quarto desse livro, a respeito da forma litúrgica, onde
trata do significado espiritual do rito, do corpo com suas posições e gestos,
da voz, da veste e da matéria que entra no ato de culto.
Em seu Magistério Pontifício, destacam-se duas
exortações apostólicas e uma carta apostólica. Os textos maiores, as exortações
apostólicas, são: Sacramentum Caritatis (2007) e Verbum
Domini (2010). No primeiro, a opção por apresentar a Eucaristia a
partir da fé, da celebração e da vida, assume a perspectiva mistagógica. Essa
perspectiva caracteriza grande parte de suas homilias sobre temas litúrgicos.
Destacam-se as proferidas por ocasião das celebrações anuais da Missa Crismal
(manhã de Quinta-Feira Santa), dos Batismos celebrados na Festa do Batismo do
Senhor e das Ordenações. Sua compreensão da mistagogia se encontra no magnífico
número 64 dessa exortação. Ele considera que essa é a forma fundamental da
formação liturgia, formar pela liturgia mais que para ela (embora valorize
muito também essa modalidade). Não menos importante é a noção de culto
espiritual que se encontra no número 70, que exprime como o mistério crido e
celebrado se torna “princípio da vida nova” e “forma da existência cristã”.
A exortação apostólica Verbum Domini trata
da Palavra de Deus de modo geral, mas dedica os números 52 a 71 à Palavra de
Deus na liturgia. Entre a compreensão do significado teológico da Palavra de
Deus, sua difusão pastoral e a atuação da Igreja no mundo consequente à fé,
está, como a fazer conexão e transição, a Palavra na celebração. Aí se destaca
a noção de sacramentalidade da Palavra (n. 56). Primeira vez que essa expressão
ocorre em um documento pontifício, ocasionou muitos estudos e publicações. Em
analogia (comparação que leva em conta semelhanças e diferenças) com a
encarnação do Filho de Deus e com os sacramentos, ele expõe a eficácia da
Palavra, que produz em nós o que significa. Destaca-se a analogia com a
presença real de Cristo na Santíssima Eucaristia, pois em sua Palavra ele está
realmente presente e se dirige a nós, o que tem consequências para a vida
espiritual dos fiéis e para a vida pastoral da Igreja.
Por fim, a carta apostólica (motu próprio) Summorum
Pontificum (2007), trata do uso da liturgia romana anterior à reforma
litúrgica de 1970. Levando em conta o impulso da liturgia para a vida
espiritual, para o fortalecimento da religião e da piedade do povo cristão, dá
continuidade a ações de seu predecessor, São João Paulo II, que permitiram cada
vez mais ampla e facilmente o uso da edição do Missal de 1962. Na introdução
aos 12 artigos, demonstra que a coexistência dos dois Missais e dos dois
rituais (o da forma típica reformada e o anterior, compreendido como forma
extraordinária) não fere a concordância que deve haver entre as Igrejas
particulares e a Igreja universal quanto à doutrina da fé, aos sinais
sacramentais e aos usos universalmente aceitos. Também não põe em risco a
correspondência entre a regra da oração e a regra da fé na Igreja (Instrução
Geral sobre o Missal Romano, 3ª ed. típica, n. 397). Isso porque na liturgia há
crescimento e progresso, mas na continuidade, sem rupturas. Juntamente com a
carta apostólica, escreve uma Carta aos Bispos no qual pede generosidade com
relação aos grupos que solicitam celebrações na forma extraordinária como
também prudência no acompanhamento, pois “não faltam exageros e algumas vezes
aspectos sociais indevidamente vinculados à atitude dos fiéis ligados à antiga
tradição latina” (Carta).
Talvez mais até do que o aspecto doutrinal do
Magistério litúrgico de Bento XVI, sua forma de celebrar e de pregar durante as
celebrações sejam o aspecto mais precioso de seu legado. Ele viveu o que
ensinou: “a melhor catequese sobre a Eucaristia é a própria Eucaristia bem
celebrada” (Sacramentum Veritatis, 64).
Dom Antonio Luiz Catelan Ferreira
Bispo Auxiliar do Rio de Janeiro
Membro da Comissão Teológica Internacional
Professor da PUC-Rio
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