O cristianismo e as religiões | Politize! |
COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL
O CRISTIANISMO E AS RELIGIÕES
(1997)
1.5. O debate cristológico
18. Por detrás da problemática teológica, que acabamos de ver, sempre
esteve presente a questão cristológica, de que tratamos agora. Ambas estão
intimamente conexas. Mas as consideramos separadamente devido à complexidade do
problema. A dificuldade maior do cristianismo sempre se focalizou na
"encarnação de Deus", que confere à pessoa e à ação de Jesus Cristo
as características de unicidade e universalidade em ordem à salvação da
humanidade. Como pode um acontecimento particular e histórico ter pretensão
universal? Como entrar em um diálogo inter-religioso respeitando todas as
religiões e sem considerá-las de antemão como imperfeitas e inferiores, se
reconhecemos em Jesus Cristo e só nele o Salvador único e universal da
humanidade? Não se poderia conceber a pessoa e a ação salvífica de Deus a
partir de outros mediadores além de Jesus Cristo?
19. O problema cristológico está essencialmente vinculado com o do valor
salvífico das religiões a que já nos referimos. Centramo-nos aqui um pouco mais
no estudo das conseqüências cristológicas das posições teocêntricas. Uma delas
é o chamado "teocentrismo salvífico", que aceita um pluralismo de
mediações salvíficas legítimas e verdadeiras. Dentro dessa posição, como já
observávamos, um grupo de teólogos atribui a Jesus Cristo um valor normativo,
visto que sua pessoa e sua vida revelam, do modo mais claro e decisivo, o amor
de Deus aos homens. A maior dificuldade dessa concepção está em que não
oferece, nem para dentro nem para fora do cristianismo, uma fundamentação dessa
normatividade atribuída a Jesus.
20. Outro grupo de teólogos defende um teocentrismo salvífico com uma
cristologia não-normativa. Desvincular a Cristo de Deus priva o cristianismo de
qualquer pretensão universalista da salvação (e assim se possibilita o diálogo
autêntico com as religiões), mas implica ter de se enfrentar com a fé da
Igreja, especialmente com o dogma de Calcedônia. Estes teólogos consideram que
este último é uma expressão historicamente condicionada pela filosofia grega,
que deve ser atualizada porque impede o diálogo inter-religioso. A encarnação
seria uma expressão não objetiva, mas metafórica, poética, mitológica. Pretende
apenas significar o amor de Deus que se encarna em homens e mulheres cujas
vidas refletem a ação de Deus. As afirmações da exclusividade salvífica de
Jesus Cristo podem se explicar pelo contexto histórico-cultural: cultura
clássica (só uma verdade certa e imutável), mentalidade
escatológico-apocalíptica (profeta final, revelação definitiva) e atitude de
uma minoria (linguagem de sobrevivências, um único salvador).
21. A conseqüência mais importante dessa concepção é que Jesus Cristo
não pode ser considerado o único e exclusivo mediador. Só para os cristãos é a
forma humana de Deus, que possibilita adequadamente o encontro do homem com
Deus, embora sem exclusividade. E totus Deus, porque é o amor ativo
de Deus nesta terra, porém não totum Dei, pois não esgota em si o
amor de Deus. Poderíamos dizer também: totum Verbum, sed non totum
Verbi. Sendo maior que Jesus, o Logos pode se encarnar também
nos fundadores de outras religiões.
22. Essa mesma problemática reaparece quando se afirma que Jesus é
Cristo, mas Cristo é mais que Jesus. Isso facilita sobre maneira a
universalização da ação do Logos nas religiões. Porém, os
textos neotestamentários não concebem o Logos de Deus
prescindindo de Jesus. Outro modo de argumentar nessa mesma linha consiste em
atribuir ao Espírito Santo a ação salvífica universal de Deus, que não
conduziria necessariamente à fé em Jesus Cristo.
1.6. Missão e diálogo inter-religioso
23. As diferentes posições ante as religiões provocam compreensões
diversificadas com relação à atividade missionária da Igreja e com
relação ao diálogo inter-religioso. Se as religiões são
sem mais caminhos para a salvação (posição pluralista), então a conversão deixa
de ser o objetivo primeiro da missão, uma vez que o importante é que cada um,
animado pelo testemunho dos outros, viva profundamente sua própria fé.
24. A posição inclusivista já não considera a missão como tarefa para
impedir a condenação dos não-evangelizados (posição exclusivista). Inclusive
reconhecendo a ação universal do Espírito Santo, observa que esta, na economia
salvífica querida por Deus, possui uma dinâmica encarnatória que a leva a se
expressar e a se objetivar. Dessa maneira a proclamação da palavra conduz essa
mesma dinâmica à sua plenitude. Não significa apenas unia tematização da
transcendência, mas a maior realização dessa mesma transcendência, ao pôr o
homem diante de uma decisão radical. O anúncio e a aceitação explícita da fé
faz crescer as possibilidades de salvação e também a responsabilidade pessoal.
Além disso, a missão é atualmente considerada como tarefa dirigida não só aos
indivíduos, mas sobretudo aos povos e às culturas.
25. O diálogo inter-religioso se fundamenta teologicamente seja na
origem comum de todos os seres humanos criados à imagem de Deus, seja no
destino comum que é a plenitude da vida em Deus, seja no único plano salvífico
divino por intermédio de Jesus Cristo, seja na presença ativa do Espírito
divino entre os adeptos de outras tradições religiosas (Diálogo e Anúncio,
28). A presença do Espírito não se dá do mesmo modo na tradição bíblica e nas
outras religiões, porque Jesus Cristo é a plenitude da revelação. No entanto,
experiências e percepções, expressões e compreensões diversas, provenientes
talvez do mesmo "acontecimento transcendental", valorizam
sobremaneira o diálogo inter-religioso. Exatamente por meio dele pode-se
desenvolver o próprio processo de interpretação e compreensão da ação salvífica
de Deus.
26. "Uma fé que não se fez cultura é uma fé que não foi plenamente
recebida, não foi inteiramente pensada, não foi fielmente vivida." Essas
palavras de João Paulo II em uma carta ao cardeal secretário
de Estado (20 de maio de 1982) tornam clara a importância da inculturação
da fé. Constata-se que a religião é o coração de toda cultura, como instância
de sentido último e força estruturante fundamental. Desse modo, a inculturação
da fé não pode prescindir do encontro com as religiões, que deveria se dar
sobretudo por meio do diálogo inter-religioso (1).
NOTA: CAPÍTULO I:
1. Cf. Commissio Theologica Internationalis, Fides et
inculturatio, c. III, 10; cf. Greg 70 (1989), p. 640.
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