O cristianismo e as religiões | Vecteezy |
COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL
O CRISTIANISMO E AS RELIGIÕES
(1997)
b. Motivos da tradição colhidos no recente magistério da Igreja
40. A significação universal de Cristo exprimiu-se de modos diversos na tradição
da Igreja, já desde os tempos mais antigos. Selecionamos alguns temas que
encontraram eco nos recentes documentos magisteriais, sobretudo no concílio
Vaticano II.
41. As semina Verbi. Fora dos limites da Igreja visível, e
concretamente nas diferentes religiões, podem-se achar "sementes do
Verbo"; o motivo se combina com freqüência com o da luz que ilumina todo
homem e com o da preparação evangélica (cf. AG 11.15; LG 16.17; NA 2; RM 56).
42. A teologia das sementes do Verbo parte de são Justino. Diante do
politeísmo do mundo grego, Justino vê na filosofia uma aliada do cristianismo,
porque seguiu a razão; ora, essa razão se encontra em sua totalidade somente em
Jesus Cristo, o Logos em pessoa. Somente os cristãos o
conhecem em sua integridade (2). Porém, desse Logos participou
todo gênero humano. Por isso desde sempre houve quem viveu de acordo com
o Logos, e nesse sentido houve "cristãos", embora tinham
tido apenas o conhecimento segundo uma parte do Logos seminal (3).
Há muita diferença entre a semente de algo e a própria coisa. No entanto, de
todos os modos, a presença parcial e seminal do Logos é dom e
graça divina. O Logos é o semeador dessas "sementes de
verdade" (4).
43. Para Clemente de Alexandria o homem é racional enquanto participa da
razão verdadeira que governa o universo, o Logos. Tem acesso pleno
a essa razão se se converte e segue a Jesus, o Logos encarnado
(5). Com a encarnação o mundo encheu-se das sementes de salvação (6). Porém,
existe também uma semeadura divina desde o começo dos tempos, que levou partes
diversas da verdade a estar entre os gregos e entre os bárbaros, em especial na
filosofia considerada em seu conjunto (7), mesmo que junto à verdade não tenha
faltado a cizânia (8). A filosofia teve para os gregos função semelhante à da
lei para os hebreus, foi uma preparação para a plenitude de Cristo (9). No entanto,
existe uma clara diferença entre a ação de Deus nesses filósofos e no Antigo
Testamento. Por outro lado, apenas em Jesus, luz que ilumina todo homem,
pode-se contemplar o Logos perfeito, a verdade inteira. Os
fragmentos de verdade pertencem ao todo (10).
44. Justino e Clemente coincidem em indicar que esses fragmentos da
verdade total conhecidos pelos gregos provêm, ao menos em parte, de Moisés e
dos profetas. Estes são mais antigos que os filósofos (11). Deles, segundo os
planos da providência, os gregos "roubaram" e não souberam dar graças
pelo que receberam (12). Portanto, esse conhecimento da verdade não está sem
relação com a revelação histórica que encontrará sua plenitude na encarnação de
Jesus.
45. Ireneu não faz uso diretamente da idéia das sementes do Verbo. No
entanto, acentua fortemente que em todos os momentos da história o Logos
esteve junto aos homens, acompanhou-os, em previsão da encarnação (13); com
esta, trazendo-se a si mesmo, Jesus trouxe toda a novidade. A salvação está
ligada, portanto, à aparição de Jesus, não obstante esta já ter sido anunciada
e seus efeitos de algum modo se tenham antecipado (14).
46. O Filho de Deus uniu-se a todo homem (cf. GS 22; RM 6, entre
outros). A idéia se repete com freqüência nos Padres, que se inspiram em algumas
passagens do Novo Testamento. Uma das que deram lugar a essa interpretarão é a
parábola da ovelha desgarrada (cf. Mt 18,12-24; Lc 15,1-7): esta é identificada
com o gênero humano extraviado, que Jesus veio buscar. Com a assunção da
natureza humana, o Filho pôs sobre os ombros a humanidade inteira, para
apresentá-la ao Pai. Assim se exprime Gregório de Nissa: "Essa ovelha
somos nós, os homens (...), o Salvador toma sobre seus ombros a ovelha inteira,
pois (...), uma vez que se tinha desgarrado toda inteira, toda inteira é
reconduzida. O pastor leva-a em seus ombros, isto é, em sua divindade (...).
Tendo tomado sobre ele essa ovelha, fá-la um com ele" (15). Também João
1,14, "e o Verbo se fez carne e habitou entre nós", tem sido
interpretado em não poucas ocasiões no sentido de habitar "dentro de
nós", ou seja, no interior de cada homem; do estar ele em nós passa-se
facilmente a nosso estar nele (16). Contendo todos nós nele, pode reconciliar a
todos com Deus Pai (17). Em sua humanidade glorificada, todos podemos encontrar
a ressurreição e o descanso (18).
47.Os Padres não esquecem que essa união dos homens no corpo de Cristo
se produz sobretudo no batismo e na eucaristia. No entanto, a união de todos em
Cristo, por sua assunção de nossa natureza, constitui um pressuposto objetivo a
partir do qual o fiel cresce na união pessoal com Jesus. A significação
universal de Cristo se mostra também para os primeiros cristãos no fato de que
liberta o homem dos príncipes deste mundo que o encerram no particular e no nacional
(19).
48. A dimensão cristológica da imagem. Segundo o concílio
Vaticano II, Jesus é o "homem perfeito" em seguimento de quem o homem
se faz mais homem (GS 41; cf. ibid.
22; 38; 45). Indica, além disso, que só "in mysterio Verbi incarnati mysterium
hominis vere clarescit" (GS 22). Entre
outros fundamentos dessa afirmação, assinala-se uma passagem de Tertuliano
segundo a qual na plasmação de Adão do barro da terra Deus já pensava em Cristo
que se devia encarnar (20). Já Irineu indicara que o Verbo, artífice de tudo,
havia prefigurado em Adão a futura economia da humanidade da qual ele mesmo se
tinha revestido (21). Não obstante serem muito variadas as interpretações
patrísticas da imagem, não se pode desprezar essa corrente que vê no Filho que
se há de encarnar (e de morrer e ressuscitar) o modelo segundo o qual Deus fez
o primeiro homem. Se o destino do homem é levar a imagem do celeste (cf. ICor
15,49), não parece equivocado pensar que em todo homem tem de haver certa
disposição interna rumo a esse fim.
c. Conclusões
49. a) Só em Jesus os homens podem salvar-se, motivo pelo qual o
cristianismo tem clara pretensão de universalidade. A mensagem cristã
dirige-se, portanto, a todos os homens e a todos há de ser anunciada.
b) Alguns textos do Novo Testamento e da mais antiga tradição deixam
entrever uma significação universal de Cristo que não se reduz à que acabamos
de mencionar. Com sua vinda ao mundo Jesus ilumina a todo homem, é o Adão
último e definitivo ao qual todos são chamados a se conformar etc. A presença
universal de Jesus aparece de maneira um tanto mais elaborada na antiga
doutrina do lógos spermatikós. No entanto, ainda aí há clara
distinção entre a aparição plena do Logos em Jesus e a
presença de suas sementes em quem não o conhece. Tal presença, sendo real, não
exclui o erro nem a contradição (22). A partir da vinda de Jesus ao mundo, e
sobretudo a partir de sua morte e ressurreição, entende-se o sentido último da
proximidade do Verbo a todos os homens. Jesus conduz a história inteira rumo a
seu cumprimento (cf. GS 10; 45).
c) Se a salvação está ligada à aparição histórica de Jesus, para ninguém
pode ser indiferente a adesão pessoal a ele na fé. Somente na Igreja, que está
em continuidade histórica com Jesus, pode-se viver plenamente seu mistério. Daí
a necessidade iniludível do anúncio de Cristo por parte da Igreja.
d) Outras possibilidades de "mediação" salvífica não podem
jamais ser vistas desligadas do homem Jesus, o mediador único. Será mais
difícil determinar como se relacionam com Jesus os homens que não o conhecem,
as religiões. Faz-se necessária a menção dos caminhos misteriosos do Espírito,
que dá a todos a possibilidade de associar-se ao mistério pascal (cf. GS 22) e cuja obra não
pode não referir-se a Cristo (cf. RM 29). No
contexto da atuação universal do Espírito de Cristo se há de situar a questão
do valor salvífico das religiões enquanto tais.
e) Sendo Jesus o único mediador, que leva a cabo o desígnio salvífico do
único Deus Pai, a salvação para todos os homens é única e a mesma: a plena
configuração com Jesus e a comunhão com ele na participação em sua filiação
divina. Por conseguinte, é preciso excluir a existência de economias diversas
para os que crêem em Jesus e os que não crêem nele. Não pode haver caminhos
para ir a Deus que não confluam no único caminho que é Cristo (cf. Jo 14,6).
NOTAS:
2. Cf. Apol. I 5,4; II 6,7; 7,2-3 (BAC 116, 186s; 268;
269).
3. Cf. Apol. I 46,2-4; II 7,1-3 (232s;269).
4. Cf. Apol I 44,10; II 10,2; 13,2-6 (230;272; 276s).
5. Cf. Protr. I 6,4; X 98,4 (Sch 2bis, 60; 166); Ped. I
96,1 (Sch 70, 280).
6. Cf. Protr. X 110,1-3 (Sch 2bis, 178).
7. Cf. Strom. I 37,1-7 (Sch 30, 73-74).
8. Cf. Strom. VI 67,2 (GCS 15, 465).
9. Cf. Strom. I 28,1-3; 32,4 (Sch 30, 65; 69); VI
153-154 (GCS 15, 510s).
10. Cf. Strom. I 56-57 (Sch 30, 89-92).
11. Justino, Apol. I 44,8-9; 59-60 (BAC 116, 230; 247-249).
12. Clemente de Alexandria, Protr. VI 70 (Sch 2bis,
135); Strom. I 59-60; 87,2 (Sch 30, 93s; 113); II 1,1 (Sch 38,
32s).
13. Cf. Adv. Haer.III 16,6; 18,1 (Sch 211, 312; 342); IV
6,7; 20,4; 28,2 (Sch 100, 454; 634s; 758); V 16,1 (Sch 153, 214); Demons.
12 (Sch 406, 100).
14. Cf. Adv. Haer. IV 34,1 (Sch 100, 846s).
15. Contra Apol. XVI (PG 45, 1153). Cf. Também Ireneu
de Lião, Adv. Haer: III 19,3 (Sch 211, 380); V 12,3 (Sch 153,
150); Demons.33 (Sch 406, 130); Hilário de Poitiers, In Mt.18,6
(Sch 258, 80s).
16. Cf. Hilário de Poitiers, Trin. II 24-25 (CCL 62,
60s); Atanásio, Contra Ar. III 25.33.34 (PG 26, 376; 393-397);
Cirilo de Alexandria, In Joh. I 9; V 2 (PG 73, 161; 753).
Poder-se-ia também introduzir aqui a idéia do “intercâmbio”; cf. Ireneu, Adv.
Haer. V prol. (Sch 153,14) etc.
17. Cirilo de Alexandria, In Joh. I 9 (PG 73, 164).
18. Cf. Hilário de Poitiers, Ir. Ps. 13,14; 14,5.17;
51,3 (CSEL 22, 81; 87s; 96; 98).
19. Cf. Orígenes, In Luc. Hom. 35 (CGS Orig. W. 9,
200s); De Princ. IV 11-12 (Or. W. 5, 339s); Agostinho, Civ.
DeiV 13.19 “(CCL 47, 146-148; 154-156).
20. De carnis res. (De res. Mort.) 6 (CCL 2, 928; cit.
em GS 22, n. 20): «Quodcumque limus exprimebatur, Christus cogitabatur, homo
futurus»; quase imediatamente se acrescenta: «Id utique quod finxit, ad
imaginem Dei fecit illum, scilicet Christi (…) Ita limus ille, iam tunc
imaginem induens Christi futuri in carne, non tantum Dei opus erat, sed et
pignus»; o mesmo em Adv. Prax. XII 4 (CCL 2, 1173).
21. Adv Haer. III 22,3 (Sch 211, 438).
22. Além dos textos já citados, cf. Agostinho, Ep. 137,12
(PL 33, 520s); Retr. I 13,3 (PL 32, 603).
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