Translate

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

O CRISTIANISMO E AS RELIGIÕES (8/16)

O cristianismo e as religiões | Vecteezy

COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL

O CRISTIANISMO E AS RELIGIÕES

(1997)

b. Motivos da tradição colhidos no recente magistério da Igreja

40. A significação universal de Cristo exprimiu-se de modos diversos na tradição da Igreja, já desde os tempos mais antigos. Selecionamos alguns temas que encontraram eco nos recentes documentos magisteriais, sobretudo no concílio Vaticano II.

41. As semina Verbi. Fora dos limites da Igreja visível, e concretamente nas diferentes religiões, podem-se achar "sementes do Verbo"; o motivo se combina com freqüência com o da luz que ilumina todo homem e com o da preparação evangélica (cf. AG 11.15; LG 16.17; NA 2; RM 56).

42. A teologia das sementes do Verbo parte de são Justino. Diante do politeísmo do mundo grego, Justino vê na filosofia uma aliada do cristianismo, porque seguiu a razão; ora, essa razão se encontra em sua totalidade somente em Jesus Cristo, o Logos em pessoa. Somente os cristãos o conhecem em sua integridade (2). Porém, desse Logos participou todo gênero humano. Por isso desde sempre houve quem viveu de acordo com o Logos, e nesse sentido houve "cristãos", embora tinham tido apenas o conhecimento segundo uma parte do Logos seminal (3). Há muita diferença entre a semente de algo e a própria coisa. No entanto, de todos os modos, a presença parcial e seminal do Logos é dom e graça divina. O Logos é o semeador dessas "sementes de verdade" (4).

43. Para Clemente de Alexandria o homem é racional enquanto participa da razão verdadeira que governa o universo, o Logos. Tem acesso pleno a essa razão se se converte e segue a Jesus, o Logos encarnado (5). Com a encarnação o mundo encheu-se das sementes de salvação (6). Porém, existe também uma semeadura divina desde o começo dos tempos, que levou partes diversas da verdade a estar entre os gregos e entre os bárbaros, em especial na filosofia considerada em seu conjunto (7), mesmo que junto à verdade não tenha faltado a cizânia (8). A filosofia teve para os gregos função semelhante à da lei para os hebreus, foi uma preparação para a plenitude de Cristo (9). No entanto, existe uma clara diferença entre a ação de Deus nesses filósofos e no Antigo Testamento. Por outro lado, apenas em Jesus, luz que ilumina todo homem, pode-se contemplar o Logos perfeito, a verdade inteira. Os fragmentos de verdade pertencem ao todo (10).

44. Justino e Clemente coincidem em indicar que esses fragmentos da verdade total conhecidos pelos gregos provêm, ao menos em parte, de Moisés e dos profetas. Estes são mais antigos que os filósofos (11). Deles, segundo os planos da providência, os gregos "roubaram" e não souberam dar graças pelo que receberam (12). Portanto, esse conhecimento da verdade não está sem relação com a revelação histórica que encontrará sua plenitude na encarnação de Jesus.

45. Ireneu não faz uso diretamente da idéia das sementes do Verbo. No entanto, acentua fortemente que em todos os momentos da história o Logos esteve junto aos homens, acompanhou-os, em previsão da encarnação (13); com esta, trazendo-se a si mesmo, Jesus trouxe toda a novidade. A salvação está ligada, portanto, à aparição de Jesus, não obstante esta já ter sido anunciada e seus efeitos de algum modo se tenham antecipado (14).

46. O Filho de Deus uniu-se a todo homem (cf. GS 22; RM 6, entre outros). A idéia se repete com freqüência nos Padres, que se inspiram em algumas passagens do Novo Testamento. Uma das que deram lugar a essa interpretarão é a parábola da ovelha desgarrada (cf. Mt 18,12-24; Lc 15,1-7): esta é identificada com o gênero humano extraviado, que Jesus veio buscar. Com a assunção da natureza humana, o Filho pôs sobre os ombros a humanidade inteira, para apresentá-la ao Pai. Assim se exprime Gregório de Nissa: "Essa ovelha somos nós, os homens (...), o Salvador toma sobre seus ombros a ovelha inteira, pois (...), uma vez que se tinha desgarrado toda inteira, toda inteira é reconduzida. O pastor leva-a em seus ombros, isto é, em sua divindade (...). Tendo tomado sobre ele essa ovelha, fá-la um com ele" (15). Também João 1,14, "e o Verbo se fez carne e habitou entre nós", tem sido interpretado em não poucas ocasiões no sentido de habitar "dentro de nós", ou seja, no interior de cada homem; do estar ele em nós passa-se facilmente a nosso estar nele (16). Contendo todos nós nele, pode reconciliar a todos com Deus Pai (17). Em sua humanidade glorificada, todos podemos encontrar a ressurreição e o descanso (18).

47.Os Padres não esquecem que essa união dos homens no corpo de Cristo se produz sobretudo no batismo e na eucaristia. No entanto, a união de todos em Cristo, por sua assunção de nossa natureza, constitui um pressuposto objetivo a partir do qual o fiel cresce na união pessoal com Jesus. A significação universal de Cristo se mostra também para os primeiros cristãos no fato de que liberta o homem dos príncipes deste mundo que o encerram no particular e no nacional (19).

48. A dimensão cristológica da imagem. Segundo o concílio Vaticano II, Jesus é o "homem perfeito" em seguimento de quem o homem se faz mais homem (GS 41; cf. ibid. 22; 38; 45). Indica, além disso, que só "in mysterio Verbi incarnati mysterium hominis vere clarescit" (GS 22). Entre outros fundamentos dessa afirmação, assinala-se uma passagem de Tertuliano segundo a qual na plasmação de Adão do barro da terra Deus já pensava em Cristo que se devia encarnar (20). Já Irineu indicara que o Verbo, artífice de tudo, havia prefigurado em Adão a futura economia da humanidade da qual ele mesmo se tinha revestido (21). Não obstante serem muito variadas as interpretações patrísticas da imagem, não se pode desprezar essa corrente que vê no Filho que se há de encarnar (e de morrer e ressuscitar) o modelo segundo o qual Deus fez o primeiro homem. Se o destino do homem é levar a imagem do celeste (cf. ICor 15,49), não parece equivocado pensar que em todo homem tem de haver certa disposição interna rumo a esse fim.

c. Conclusões

49. a) Só em Jesus os homens podem salvar-se, motivo pelo qual o cristianismo tem clara pretensão de universalidade. A mensagem cristã dirige-se, portanto, a todos os homens e a todos há de ser anunciada.

b) Alguns textos do Novo Testamento e da mais antiga tradição deixam entrever uma significação universal de Cristo que não se reduz à que acabamos de mencionar. Com sua vinda ao mundo Jesus ilumina a todo homem, é o Adão último e definitivo ao qual todos são chamados a se conformar etc. A presença universal de Jesus aparece de maneira um tanto mais elaborada na antiga doutrina do lógos spermatikós. No entanto, ainda aí há clara distinção entre a aparição plena do Logos em Jesus e a presença de suas sementes em quem não o conhece. Tal presença, sendo real, não exclui o erro nem a contradição (22). A partir da vinda de Jesus ao mundo, e sobretudo a partir de sua morte e ressurreição, entende-se o sentido último da proximidade do Verbo a todos os homens. Jesus conduz a história inteira rumo a seu cumprimento (cf. GS 10; 45).

c) Se a salvação está ligada à aparição histórica de Jesus, para ninguém pode ser indiferente a adesão pessoal a ele na fé. Somente na Igreja, que está em continuidade histórica com Jesus, pode-se viver plenamente seu mistério. Daí a necessidade iniludível do anúncio de Cristo por parte da Igreja.

d) Outras possibilidades de "mediação" salvífica não podem jamais ser vistas desligadas do homem Jesus, o mediador único. Será mais difícil determinar como se relacionam com Jesus os homens que não o conhecem, as religiões. Faz-se necessária a menção dos caminhos misteriosos do Espírito, que dá a todos a possibilidade de associar-se ao mistério pascal (cf. GS 22) e cuja obra não pode não referir-se a Cristo (cf. RM 29). No contexto da atuação universal do Espírito de Cristo se há de situar a questão do valor salvífico das religiões enquanto tais.

e) Sendo Jesus o único mediador, que leva a cabo o desígnio salvífico do único Deus Pai, a salvação para todos os homens é única e a mesma: a plena configuração com Jesus e a comunhão com ele na participação em sua filiação divina. Por conseguinte, é preciso excluir a existência de economias diversas para os que crêem em Jesus e os que não crêem nele. Não pode haver caminhos para ir a Deus que não confluam no único caminho que é Cristo (cf. Jo 14,6).

NOTAS:

2. Cf. Apol. I 5,4; II 6,7; 7,2-3 (BAC 116, 186s; 268; 269).

3. Cf. Apol. I 46,2-4; II 7,1-3 (232s;269).

4. Cf. Apol I 44,10; II 10,2; 13,2-6 (230;272; 276s).

5. Cf. Protr. I 6,4; X 98,4 (Sch 2bis, 60; 166); Ped. I 96,1 (Sch 70, 280).

6. Cf. Protr. X 110,1-3 (Sch 2bis, 178).

7. Cf. Strom. I 37,1-7 (Sch 30, 73-74).

8. Cf. Strom. VI 67,2 (GCS 15, 465).

9. Cf. Strom. I 28,1-3; 32,4 (Sch 30, 65; 69); VI 153-154 (GCS 15, 510s).

10. Cf. Strom. I 56-57 (Sch 30, 89-92).

11. Justino, Apol. I 44,8-9; 59-60 (BAC 116, 230; 247-249).

12. Clemente de Alexandria, Protr. VI 70 (Sch 2bis, 135); Strom. I 59-60; 87,2 (Sch 30, 93s; 113); II 1,1 (Sch 38, 32s).

13. Cf. Adv. Haer.III 16,6; 18,1 (Sch 211, 312; 342); IV 6,7; 20,4; 28,2 (Sch 100, 454; 634s; 758); V 16,1 (Sch 153, 214); Demons. 12 (Sch 406, 100).

14. Cf. Adv. Haer. IV 34,1 (Sch 100, 846s).

15. Contra Apol. XVI (PG 45, 1153). Cf. Também Ireneu de Lião, Adv. Haer: III 19,3 (Sch 211, 380); V 12,3 (Sch 153, 150); Demons.33 (Sch 406, 130); Hilário de Poitiers, In Mt.18,6 (Sch 258, 80s).

16. Cf. Hilário de Poitiers, Trin. II 24-25 (CCL 62, 60s); Atanásio, Contra Ar. III 25.33.34 (PG 26, 376; 393-397); Cirilo de Alexandria, In Joh. I 9; V 2 (PG 73, 161; 753). Poder-se-ia também introduzir aqui a idéia do “intercâmbio”; cf. Ireneu, Adv. Haer. V prol. (Sch 153,14) etc.

17. Cirilo de Alexandria, In Joh. I 9 (PG 73, 164).

18. Cf. Hilário de Poitiers, Ir. Ps. 13,14; 14,5.17; 51,3 (CSEL 22, 81; 87s; 96; 98).

19. Cf. Orígenes, In Luc. Hom. 35 (CGS Orig. W. 9, 200s); De Princ. IV 11-12 (Or. W. 5, 339s); Agostinho, Civ. DeiV 13.19 “(CCL 47, 146-148; 154-156).

20. De carnis res. (De res. Mort.) 6 (CCL 2, 928; cit. em GS 22, n. 20): «Quodcumque limus exprimebatur, Christus cogitabatur, homo futurus»; quase imediatamente se acrescenta: «Id utique quod finxit, ad imaginem Dei fecit illum, scilicet Christi (…) Ita limus ille, iam tunc imaginem induens Christi futuri in carne, non tantum Dei opus erat, sed et pignus»; o mesmo em Adv. Prax. XII 4 (CCL 2, 1173).

21. Adv Haer. III 22,3 (Sch 211, 438).

22. Além dos textos já citados, cf. Agostinho, Ep. 137,12 (PL 33, 520s); Retr. I 13,3 (PL 32, 603).

Fonte: https://www.vatican.va/

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF