Ilustração: Jornal Estado de Minas |
A Terceira
vez
É a terceira vez
que a Igreja Católica no Brasil, por meio da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), promove a Campanha da Fraternidade dedicando-se, de modo
pertinente e profético, ao tema da fome: “Fraternidade e Fome”. A primeira vez
foi em 1975, a segunda, em 1985. Essa recorrência na promoção missionária e
evangelizadora da Campanha da Fraternidade, a partir do tema da fome, guarda
elementos interpelantes à cidadania civil e à cidadania do Reino, aos
discípulos e discípulas do Mestre Jesus. O Brasil voltou ao mapa da fome,
apesar de ser reconhecidamente um “celeiro” do mundo. Muitos brasileiros sofrem
por não ter o que comer – há um Brasil que sente fome. Trata-se de problema
político e social, como também uma interpelação aos que creem em Cristo, o
Salvador e Redentor: “Dai-lhe vós mesmos de comer”, disse Jesus aos seus
discípulos, diante do sofrimento de uma multidão que estava faminta.
A Campanha da
Fraternidade, pela terceira vez, enfrenta o flagelo da fome. Há 48 anos, quando
a Igreja no Brasil convocou uma Campanha da Fraternidade sobre a fome pela
primeira vez, uma multidão dos adultos de hoje, em cargos importantes na
sociedade, eram crianças, ou nem tinham nascido. Tristemente, quase meio século
depois, o flagelo da fome de muitos brasileiros não foi superado. Comprova-se
que não bastam as indispensáveis estratégias lógicas da tecnologia e da
ciência. É preciso ir além, buscando a iluminação que vem da fé, com sua lógica
essencial à qualificação da humanidade. A fé é capaz de alicerçar um horizonte
inspirador na sociedade brasileira. A fome é um dos mais graves flagelos que
ameaçam o ser humano, humilhando a todos. Exige o alcance de soluções com
rapidez, pois leva a mortes, a sequelas que serão carregadas pelo resto da
vida, considerando especialmente a fragilidade das crianças, dos enfermos e dos
idosos. Por isso mesmo, o Papa Francisco afirma, profeticamente, na sua
mensagem dedicada à Campanha da Fraternidade 2023, que a fome é um crime – o
alimento é um direito.
A Igreja Católica,
servidora da humanidade, na promoção e defesa da vida, de modo obediente ao seu
único Senhor e Pastor, Jesus Cristo, convoca fiéis, homens e mulheres de boa
vontade, a enfrentarem a fome: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. No caminho
percorrido e celebrado durante a Quaresma, a liturgia da Igreja ecoa o
compromisso de conversão dos cidadãos do Reino de Deus. Essa conversão é
testemunhada quando se busca efetivar uma nova organização social e política
capaz de superar, urgentemente, o sofrimento de quem não tem o que comer. A
fome de Deus, a ser permanentemente saciada pela proclamação e escuta da
Palavra de Deus, deve fecundar o exercício cidadão de se buscar vencer a
carência alimentar de muitas famílias. Assim, os cidadãos devem trabalhar na
superação da fome, exigindo também do poder público um tratamento adequado para
combatê-la.
A busca pela
conversão não dispensa o compromisso com ações efetivas para promover o direito
de todos à alimentação. Afrontar o problema da fome encontrando soluções
urgentes é vivência fecunda deste tempo da Quaresma, em preparação para
frutuosamente celebrar a Páscoa. Assim, não se deve apenas esperar soluções de
instâncias governamentais. A sociedade, de um modo geral, deve investir em novo
estilo de vida, mais solidário com o próximo e com a casa comum, na perspectiva
da ecologia integral. Essa perspectiva da corresponsabilidade leva a
reconhecer que a fome não é problema somente de quem padece por não ter o que
comer. Todos, compreendendo os ensinamentos de Jesus, devem buscar soluções
criativas, evidentemente reconhecendo as responsabilidades de governantes e
líderes da sociedade.
A gravidade do
problema da fome, reiteradamente apontada pela Campanha da Fraternidade, é mal
que precisa ser erradicado “pela raiz”. Isto significa investir sempre, e cada
vez mais, na solidariedade, partilhando as dores do próximo, que é irmão e
irmã. A Doutrina Social da Igreja Católica ensina, sublinhando ser questão de
honra e fidelidade ao Evangelho de Jesus, sobre o sentido da destinação
universal dos bens da Criação: deve favorecer a todos, ser garantido como
direito. Essa lição da Doutrina Social da Igreja Católica permite contestar
modelos econômicos excludentes e perversos, que precisam ser urgentemente
substituídos, sob pena de um colapso geral – já há sinais muito evidentes de
diferentes colapsos na vida da humanidade.
Neste momento, o
apelo é à compreensão do desafiador flagelo da fome. Por se saber que tem gente
passando fome no Brasil, “cai por terra” qualquer crítica aos propósitos da
Campanha da Fraternidade 2023. Eventuais críticas à Campanha apenas escancaram
o rosto dos indiferentes, distanciados da autenticidade da fé. São atitudes que
apenas indicam a importância daqueles que, efetivamente, se dedicam à
construção de um novo tempo, enquanto estão na peregrinação para o Reino
definitivo. Importante lembrar: entrarão no Reino definitivo os que obedecem ao
Senhor da vida, escutando, compassivamente, a sua interpelação: “Dai-lhes vós
mesmos de comer”. Seja, pois, acolhida, pela terceira vez, a convocação da
Campanha da Fraternidade, reconhecendo a presença de Jesus em cada pessoa que
sofre com a fome, na atenta escuta de Sua Palavra – “Tive fome e me destes de
comer”.
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
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