O cristianismo e as religiões | Lausanne Moviment |
COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL
O CRISTIANISMO E AS RELIGIÕES
(1997)
III. 3. A verdade como problema entre a teologia das religiões e
a posição pluralista
93. O diálogo inter-religioso não é apenas um desejo que parte do
Concílio Vaticano II, fomentado pelo atual Pontífice. É também uma necessidade
na presente situação do mundo. Sabemos que esse diálogo é a preocupação central
da teologia pluralista das religiões nos últimos tempos. Para torná-lo
possível, os representantes dessas teologias pensam que se há de eliminar por
parte dos cristãos toda pretensão de superioridade e de absolutez. Há de se
considerar todas as religiões com igual valor. Pensam que é uma pretensão de
superioridade a consideração de Jesus como salvador e mediador único para todos
os homens.
94. O abandono dessa pretensão é considerado, portanto, como essencial
para a realização do diálogo. Esse é sem dúvida o ponto mais importante com que
temos de nos confrontar. Diante desses projetos, há de se mostrar que não significa
absolutamente um menosprezo nem uma depreciação o fato de a teologia católica
afirmar que tudo o que nas outras religiões é verdadeiro e digno de apreço vem
de Cristo no Espírito Santo. Tal é o melhor modo que o cristão tem de expressar
seu apreço por essas religiões.
95. Ao comparar algumas das opiniões teológicas expostas no capítulo I
com as concepções magisteriais atuais e sua fundamentação na Escritura e na
Tradição que foram objeto do capítulo II, constata-se que é comum a umas e
outras a intenção fundamental de reconhecer com respeito e gratidão as verdades
e valores das diversas religiões. Ambas buscam o diálogo com elas, sem
preconceitos e sem afãs de polêmica.
96. Porém, a diferença básica entre as duas apresentações se encontra na
posição que adotam diante do problema teológico da verdade, e ao mesmo tempo
diante da fé cristã. O ensinamento da Igreja sobre a teologia das religiões
argumenta a partir do centro da verdade da fé cristã. Leva em conta, de um
lado, o ensinamento paulino do conhecimento natural de Deus e, de outro,
expressa a confiança na atuação universal do Espírito. Vê ambas as linhas
ancoradas na tradição teológica. Valoriza o verdadeiro, bom e belo das
religiões a partir do pano de fundo da verdade da própria fé, porém não atribui
em geral à pretensão de verdade das outras religiões uma mesma validez. Isso
levaria à indiferença, isto é, a não tomar a sério a pretensão de verdade tanto
própria como alheia.
97. A teologia das religiões que encontramos nos documentos oficiais argumenta
a partir do centro da fé. Com relação ao modo de proceder das teologias
pluralistas, e apesar das diferentes opiniões e das constantes mudanças que
nelas se dão, pode-se afirmar que no fundo têm uma estratégia
"ecumênica" do diálogo, isto é, preocupam-se por uma renovada unidade
com as diferentes religiões. Tal unidade, porém, só se pode constituir
eliminando aspectos da autocompreensão própria. Quer-se conseguir a unidade
desvalorizando diferenças, vistas como ameaça; considera-se ao menos que hão de
ser eliminadas como particularidades ou reduções próprias de uma cultura
específica.
98. A modificação da compreensão da própria fé na teologia pluralista
das religiões tem múltiplas faces. Notemos as mais importantes: a) no plano
histórico sugere-se um esquema de três fases, que chega no pluralismo em seu
ponto final: exclusivismo, inclusivismo; nele se pressupõe erroneamente que só
a última posição conduz a prestar verdadeira atenção nas outras religiões e
cora isso na paz religiosa; b) no plano da teoria do conhecimento, reduz-se a
capacidade de verdade das afirmações teológicas (formas de expressão
específicas de uma cultura), ou inclusive chega-se a suprimi-la (as afirmações
teológicas se equiparam às mitológicas); e c) no plano teológico se busca a
plataforma de unidade; a possibilidade do reconhecimento da igual dignidade se
paga com a parcialização e redução metodológicas (do eclesiocentrismo ao
cristocentrismo, e deste ao teocentrismo, enquanto se sugere um conceito
subdeterminado de Deus), e com a modificação e redução dos conteúdos
específicos da fé, especialmente na cristologia.
99. Numa época marcada pela idéia de um pluralismo de mercado, essa
teologia adquire alto grau de plausibilidade, porém apenas enquanto não se a
aplique conseqüentemente à posição do interlocutor nesse diálogo. No momento em
que se dê uma destas possibilidades: a) que o interlocutor reconheça a tese da
"igual dignidade" historicamente plural; b) que aceite para a
religião própria a tese da limitação ou supressão da capacidade de verdade de
todas as afirmações teológicas; c) ou modifique seu próprio método teológico e
o conteúdo das próprias afirmações de fé de tal maneira que estas só tenham
validez em relação com os cânones da religiosidade própria, neste instante termina
o diálogo religioso. Com efeito, não resta nada a constatar senão essa
pluralidade indistinta. Por isso a teologia pluralística, como estratégia de
diálogo entre as religiões, não só não se justifica ante a pretensão de verdade
da religião própria, mas dissolve ao mesmo tempo a pretensão de verdade da
outra parte.
100. Perante a simplificação histórica, epistemológica ou teológica da
relação entre o cristianismo e as outras religiões na teologia pluralista, é
preciso partir da visão diferenciada das religiões da declaração Nostra Aetate do Concílio Vaticano
II. Nela se descreve o que as religiões do mundo têm fundamentalmente em comum,
a saber, o esforço "por responder de várias maneiras à inquietação do
coração humano propondo para isso caminhos, isto é, doutrinas, preceitos de
vida e ritos sagrados" (NA 2), porém sem que se
apaguem as diferenças igualmente fundamentais: as diferentes formas do budismo
indicam ao homem caminhos pelos quais este percebe o sentido do ser no
reconhecimento da insuficiência radical deste mundo contingente; na riqueza de
mitos do hinduísmo, em suas exigências ascéticas e suas profundas meditações se
expressa a busca confiante de refúgio em Deus. Com o Islã a Igreja tem mais em
comum, pois reconhece que seus adeptos "adoram o único Deus (...) criador
do céu e da terra" (NA 3).
Reconhecendo com toda clareza o que nos separa, não se pode passar por alto os
elementos comuns na história e na doutrina. O cristianismo está unido ao
judaísmo por sua origem e uma rica herança comum. A história da aliança com
Israel, a confissão de um só e único Deus que se revela nessa história, a
esperança em Deus que vem e em seu reino futuro, são comuns a judeus e cristãos
(cf. NA 4). Uma
teologia cristã das religiões deve ser capaz de expor teologicamente os
elementos comuns e as diferenças entre a própria fé e as convicções dos
diferentes grupos religiosos. O Concílio situa essa tarefa em uma tensão: por
um lado contempla a unidade do gênero humano, fundada em uma origem comum
(cf. NA 1). Por essa
razão, ancorada na teologia da criação, "a Igreja católica não recusa nada
do que nessas religiões há de verdadeiro e de santo" (NA 2). Porém, por
outro lado, insiste na necessidade do anúncio da verdade que é o próprio
Cristo: "Anuncia e tem a obrigação de anunciar constantemente a Cristo,
que é o caminho, a verdade e a vida (Jo 14,6), em quem os
homens encontram a plenitude da vida religiosa e em quem Deus reconciliou
consigo todas as coisas [cf. 2Cor 5,18-19]" (ibid.).
101. Todo diálogo vive da pretensão de verdade dos que dele participam.
No entanto, o diálogo entre as religiões se caracteriza, além disso, por
aplicar a estrutura profunda da cultura de origem de cada um à pretensão de
verdade de uma cultura estranha. É claro que esse diálogo é exigente e requer
uma especial sensibilidade diante da outra cultura. Nos últimos decênios
desenvolveu-se especialmente essa sensibilidade diante do contexto cultural
tanto das diferentes religiões como do cristianismo e suas teologias. Basta
recordar as "teologias em contexto" e a significação crescente do
tema da inculturação no magistério e na teologia. A Comissão Teológica
Internacional já tratou desses temas (2), de maneira que aqui parecem
necessárias apenas duas indicações: (1). Uma teologia das religiões
diferenciada, que se baseia na própria pretensão de verdade, é a base de
qualquer diálogo sério e o pressuposto necessário para entender a diversidade
das posições e seus meios culturais de expressão. (2). A contextualidade literária
ou a sociocultural etc. são meios importantes de compreensão, às vezes os
únicos, de textos e situações, são possível lugar da verdade, porém não se
identificam com a própria verdade. Com isso se indicam a significação e os
limites da contextualidade cultural. O diálogo inter-religioso trata com
cautela e respeito as "coincidências e convergências" com as outras
religiões. Para o trato das "diferenças" tem-se levar em conta que
esse trato não deve anular as coincidências e elementos de convergência, e além
disso que o diálogo sobre essas diferenças há de se inspirar na doutrina
própria e sua ética correspondente; em outras palavras, a forma do diálogo não
pode invalidar o conteúdo da fé própria e de sua ética.
102. A crescente inter-relação das culturas na atual sociedade mundial e
sua constante interpenetração nos meios de comunicação fazem que a questão da
verdade das religiões tenha passado ao centro da consciência cotidiana do homem
de hoje. As presentes reflexões consideram alguns pressupostos dessa nova
situação; nelas, porém, não se entra na discussão de conteúdos com as
diferentes religiões. Esta deveria realizar-se na teologia dos diferentes
lugares, ou seja, nos diferentes centros de estudo que estão era contato
cultural direto com as outras religiões. Ante a situação de mudança da
consciência do homem atual e a situação dos fiéis, é claro que a discussão com
a pretensão de verdade das religiões não pode ser um aspecto marginal ou
parcial da teologia. A confrontação respeitosa com essa pretensão deve
representar um papel no centro do trabalho cotidiano da teologia, deve ser
parte integral dessa mesma teologia. Com ela o cristianismo de hoje deve
aprender a viver, no respeito pela diversidade das religiões, uma forma da
comunhão que tem seu fundamento no amor de Deus pelos homens e se funda em seu
respeito para com a liberdade do homem. Esse respeito pela
"alteridade" das diferentes religiões está por sua vez condicionado
pela própria pretensão de verdade.
103. O interesse pela verdade do outro compartilha com o amor o
pressuposto estrutural do apreço de si mesmo. A base de toda comunicação,
também do diálogo entre as religiões, é o reconhecimento da exigência de
verdade. A fé cristã, porém, tem sua própria estrutura de verdade: as religiões
falam "do" Santo, "de" Deus, "sobre" ele,
"em seu lugar" ou "em seu nome". Apenas na religião cristã
é Deus mesmo quem fala ao homem em sua Palavra. Só esse modo de falar
possibilita ao homem seu ser pessoal em um sentido próprio, ao mesmo tempo que
a comunhão com Deus e com todos os homens. O Deus tripessoal é o coração dessa
fé. Apenas a fé cristã vive do Deus uno e trino. Do pano de fundo de sua
cultura surgiu a diferenciação social que caracteriza a modernidade.
104.À única mediação salvífica de Cristo para todos os homens se lhe
atribui, por parte da posição pluralista, uma pretensão de superioridade; por
isso se pede que o cristocentrismo teológico, do qual se deduz necessariamente
essa pretensão, seja substituído por um teocentrismo mais aceitável. Diante disso
é preciso afirmar que a verdade da fé não está a nossa disposição. Perante uma
estratégia de diálogo que pede uma redução do dogma cristológico para excluir
essa pretensão de superioridade do cristianismo, optamos mais propriamente —
com o fim de excluir uma "falsa" pretensão de superioridade — por uma
aplicação radical da fé cristológica à forma de anúncio que lhe é própria. Toda
forma de evangelização que não corresponde à mensagem, à vida, à morte e à
ressurreição de Jesus Cristo compromete essa mensagem e, em última análise, ao
próprio Jesus Cristo. A verdade como verdade é sempre "superior";
porém a verdade de Jesus Cristo, na clareza de sua exigência, é sempre serviço
ao homem; é a verdade do que dá a vida pelos homens para fazê-los entrar
definitivamente no amor de Deus. Toda forma de anúncio que procure antes de
tudo e sobretudo se impor aos ouvintes ou dispor deles com os meios de uma
racionalidade instrumental ou estratégica opõe-se a Cristo, evangelho do Pai, e
à dignidade do homem da qual Ele mesmo fala.
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