Por Ana Lydia Sawaya
A eternidade de Deus entra no tempo do ser humano, entra na história, num momento preciso da passagem do tempo. O eterno torna-se visível, vida concreta.
Por uma monja beneditina camaldolense:
Hodie Christus natus est: Hodie Salvator apparuit:
Hodie in terra canunt Angeli,
laetantur Archangeli
Hodie exsultant justi, dicentes:
Gloria in excelsis Deo.
Alleluia.
[Hoje Cristo nasceu; Hoje o Salvador apareceu; Hoje os anjos cantam na terra; Os arcanjos se alegram; Hoje os justos exultam, dizendo: Glória a Deus nas alturas. Aleluia!]
Este canto maravilhoso que cantamos no Natal nos coloca – todos nós que vivemos aqui e agora – na presença de um fato tão misterioso… Hodie – o HOJE que cantamos na liturgia não é tanto uma categoria de tempo, mas uma categoria da nossa experiência, uma situação nova, um estado novo na nossa relação com Deus. O evento do nascimento de Jesus acontece dentro do tempo, mas transcende o tempo. É um acontecimento que tem uma dimensão escatológica, pois nos leva para a dimensão do final dos tempos, do cumprimento final de tudo. Isso quer dizer que podemos participar da vida de Jesus não apenas segundo a carne, como aqueles que viveram fisicamente ao lado de Jesus, como seus contemporâneos, mas da vida de Jesus realizada e imersa no Espírito Santo, o que muda radicalmente a vida e destino do ser humano. O cumprimento escatológico não é um simples cumprimento da vida e da história na sua realidade final, mas é um ponto de virada na história da humanidade, já presente, graças à paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, dando assim um sentido novo e pleno ao destino do ser humano agora. Festejamos a natividade do mesmo modo que celebramos juntos a paixão, morte e ressurreição! E celebramos a admirável dignidade que nos foi dada com o Batismo no Espírito Santo e no fogo (conf, Lc 3,16)
Liturgia
Na liturgia, tempo e espaço são os termos, conceitos, realidades cujo significado e modo de entendê-los é muito diferente daquele filosófico. Na liturgia hodie – hoje – como o ano litúrgico todo, não significa uma realidade física, mas o esplendor, a faixa de luz da graça com a qual Deus Pai ilumina a vida de cada ser humano. Todo o ano litúrgico é uma grande memória da história da salvação. Memorar é uma necessidade crucial para o povo judeu do Antigo Testamento. Quantas vezes Deus chama o seu povo à memória, à memória das suas obras, do seu amor, da sua ação, do seu braço poderoso que o resgatou e salvou muitas vezes. É a memória que torna presente uma pessoa, os fatos, o amor. O ser humano sem memória já não sabe quem é. Quem não é lembrado não existe. É a memória que torna algo presente, real e atual. Para crer, alimentar a fé e a relação com Deus, é necessária a memória, uma memória sobrenatural que nos faça recordar as grandes obras de Deus. Na festa da Exaltação da Cruz cantamos o belo refrão do Salmo 77: Não te esqueças das obras do Senhor! É o que diz também o Catecismo da Igreja Católica (n. 1363):
Segundo a Sagrada Escritura, o memorial não é somente a lembrança dos acontecimentos do passado, mas a proclamação das maravilhas que Deus realizou por todos homens. A celebração litúrgica desses acontecimentos torna-os de certo modo presentes e atuais. É desta maneira que Israel entende sua libertação do Egito: toda vez que é celebrada a Páscoa, os acontecimentos do Êxodo tornam-se presentes à memória dos crentes para que estes conformem a sua vida a eles.
Desta forma, guardando a nossa memória e alimentando-a na fé, podemos viver o ano litúrgico como uma imersão contínua nos acontecimentos salvíficos realizados por Deus ao longo da história da humanidade, na qual Ele esteve sempre presente e ativamente envolvido.
Eternidade
Com o calendário do ano contamos os dias, os meses, mergulhamos na mudança das estações que influenciam as nossas vidas e com as quais nós podemos nos sentir parte do mundo criado. Já o ano litúrgico nos recorda as maravilhas de Deus, memória dos acontecimentos salvíficos que inserem o ser humano na economia eterna da vida, no tempo de Deus, no amor da Trindade, no seio do Pai. O maravilhar-se das coisas de Deus é vida, traz vida e é para a vida. Aquele que é chamado o Vivente leva o ser humano a participar de Sua vida. Desta forma, celebrando cada acontecimento, cada memória da ação de Deus na história, podemos participar da vida de Deus integralmente, aqui e agora, com as nossas realidades. Assim acontece em cada Santa Missa, em cada Tríduo Pascal, esses misteriosos três dias, os mais importantes de todo o ano litúrgico que antecedem a Páscoa, em cada Natal, em cada festa e memória! Podemos ver e experimentar a esperança do encontro com Deus em toda a sua plenitude. E tudo isso graças à Encarnação, aquele evento grandioso que João resumiu em uma frase tão curta que surpreende: O Verbo se fez carne (Jo 1,14)
A eternidade de Deus entra no tempo do ser humano, entra na história, num momento preciso da passagem do tempo. O eterno torna-se visível, vida concreta. O tempo já se completou (Mc 1,15). Todo o passado, presente e futuro se unem no Homem-Cristo, gerando um novo tempo, o HOJE em Cristo, que é o mesmo ontem, hoje e sempre (Heb 13,8) No primeiro capítulo do Apocalipse encontramos provas belas desta PLENITUDE DO TEMPO em Cristo: Eu sou o Alfa e o Ômega…aquele que é, que era e que vem, o Todo-poderoso! (Ap 1,8) Eu sou o Primeiro e o Último, o que Vive (Ap 1,17). Cristo é Aquele que é que era e que vem (Ap 1,4).
Hoje de Deus
Há uma oração maravilhosa colocada na boca de Judite antes de realizar seu ato heroico. Sua história é descrita no Antigo Testamento no Livro de Judite. O rei Nabucodonosor está prestes a atacar a cidade da Judéia, Betúlia e a situação é verdadeiramente dramática e sem esperança de escapar do perigo. O povo estava desesperado e pretendia se render nas mãos do inimigo. Caíram numa tentação tão comum a todos nós: já não confiavam em Deus! Não havia ninguém capaz de ter esperança. Justamente nessa situação se apresenta Judite, uma jovem viúva, fascinante por sua beleza e sabedoria. Ela repreende o povo por sua falta de fé e incita-o a confiar, a esperar contra toda a esperança que a ajuda do Senhor viria. Sua fé não era de palavras apenas, mas ela mesma se oferece para realizar um projeto extremamente arriscado: ir ao acampamento do exército de Nabucodonosor e matar o general Holofernes. Ela reza muito, prepara-se espiritualmente para que o Senhor pudesse agir por meio dela. Consegue implementar seu plano com sucesso e dar liberdade e vitória ao povo. Era uma mulher de oração e de escuta, segura da bondade do Senhor. Pouco antes de ir ao encontro de Holofernes, cheia de medo, mas confiante no Senhor, ela clama a Deus do fundo do coração (Ju 9, 4-6):
Ó Deus, meu Deus, escuta-me, a mim que sou viúva. Pois tu fizeste as façanhas de outrora, de agora e do futuro; tu cogitaste o presente e o futuro e o que tinhas no espírito veio à existência. Os acontecimentos que decidiste se apresentaram e disseram: Eis-nos aqui. Pois todos os teus caminhos estão preparados e teu julgamento é feito com previsão.
Como é grande a fé desta mulher! Eis o Deus que é ontem, hoje e amanhã… O Deus que agiu ontem, agirá hoje e amanhã, que cria o ontem, o hoje e o amanhã… Este é o estupendo HODIE – HOJE de Deus, graças ao qual podemos confiar nele e colocarmos nossa vida em suas mãos, pois estas seguram o ontem, o hoje e o amanhã.
Fonte: https://pt.aleteia.org/
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