Introdução ao espírito da Celebração
A liturgia deste Domingo apresenta-nos Jesus Cristo
ressuscitado como companheiro de viajem, alentando a esperança, aquecendo o
coração dos discípulos de Emaús. Como os primeiros discípulos, é na Eucaristia
que nós reconhecemos hoje a presença viva de Jesus Ressuscitado: caminha conosco,
fala-nos através da Escritura, alimenta-nos com o seu Corpo.
LITURGIA DA PALAVRA
Primeira Leitura
Atos, 2, 14.22–33
A leitura corresponde a uma seleção de versículos
do discurso de S. Pedro no dia do Pentecostes. «Pedro» aparece
aqui, como noutras vezes, na sua função de Chefe dos Apóstolos, falando em nome
de todos e à frente de todos (cf. At 2, 37-38; 5, 2-3.29; 1, 15).
22 «Jesus de Nazaré» Pedro, para
anunciar Jesus como o Messias, parte da Sua humanidade, no aspecto mais
humilde, um homem de Nazaré, terra desprezada (Jo 1 48); nos vv. seguintes
estabelece a sua perfeita identidade com o Cristo da fé, o Senhor ressuscitado.
23 «Segundo o desígnio imutável e previsão de
Deus». A morte na cruz, o grande «escândalo para os Judeus», não era
mais do que o cumprimento do desígnio salvador de Deus, anunciado pelos
Profetas.
24 «Deus ressuscitou-O. O grande sinal de
que aquele homem de Nazaré já antes credenciado com «milagres, prodígios e
sinais» (v. 22), era o Messias, Deus vindo à terra, é sem dúvida a
Ressurreição. Esta apresenta-se como anunciada no Salmo 15 (16).
27 «Nem deixareis o vosso Santo sofrer a
corrupção». Citação do Salmo 15 (16), segundo a tradução dos LXX, que
alguns chegam a considerar inspirada. O texto hebraico massorético não é tão
expressivo, pois diz: «conhecer a cova», isto é, a morte; Pedro e
depois Paulo (cf. At 13, 35) dão-nos o sentido mais profundo, o cristológico do
Salmo, ao explicitar que designa a ressurreição do Messias, sentido este que,
em geral, os exegetas classificam de sentido plenário (intentado só por Deus),
ou sentido típico (o salmista como tipo do Messias).
1 São Pedro 1,
17–21
Esta leitura adapta-se maravilhosamente ao tempo
pascal, falando-nos da nossa libertação através do Sangue do novo Cordeiro
Pascal e da Ressurreição de Jesus. Há mesmo exegetas que vêem nesta carta um
fundo de homilia pascal ou baptismal. O trecho de hoje é tirado de uma secção
inicial da Carta (1, 13 – 2, 10), uma série de exortações que têm como pano de
fundo a libertação dos hebreus a caminho da terra prometida, símbolo do
Baptismo e da vida cristã, o que faz pensar que formariam parte duma catequese
ou homilia pascal-baptismal. Vejamos: «de ânimo preparado para servir» (v. 13;
cf. Lc 12, 35) é dito no original com uma imagem («cingida a cintura da vossa
mente»), que evoca a forma de celebrar a Páscoa (cf. Ex 12, 11, símbolo do
Baptismo (cf. 1 Cor 10, 1-2.6); «sede santos» (v. 14-16) é uma exigência da
aliança (cf. Lv 11, 44; 19, 2; 20, 7) e do Baptismo (cf. Rom 6, 4.11.19; 12, 2;
Gal 3, 27); o santo temor de Deus (cf. 2 Cor 2, 11; Rom 2, 11) «no tempo da
peregrinação» (cf. 1, 1.17; 2, 11; 4, 2, é a alusão à peregrinação
pelo deserto no Êxodo) está na sequência de invocar a Deus como
Pai (referência ao Pai-nosso, Mt 6, 9, recitado no rito do Baptismo e
certamente matéria da instrução preparatória); o resgate pelo sangue de
Cristo é mais do que uma referência ao custo da nossa redenção (1 Cor
6, 20; 7, 23; cf. Ef 1, 7; Hb 9, 14; Ap 1, 5), pois alude a
Jesus como cordeiro pascal (Ex 12, 3-14; cf. Jo 1, 29.36; 19,
36; 1 Cor 5, 7; At 8, 32-35); o amor fraterno (v. 22-25) é
proposto como consequência de se ter purificado (cf. Ex 19,
10-11) e ter nascido de novo e por meio da palavra de Deus (cf. Tg 1, 18; 1 Jo
3, 9; Is 40, 8); esta mesma palavra é o «leite puro» (cf. Ex 3, 8;
1 Cor 3, 2) que os batizados têm de desejar avidamente (2, 1-2; cf. Sl 34, 9);
assim todos entram ativamente na construção do edifício que é
o novo Povo de Deus, figurado no antigo (2, 4-10).
17 «Pai… que… julga». Pode-se ver
aqui uma alusão à recitação do Pai Nosso. Deus, que é o melhor dos pais, também
é um Juiz imparcial; o sentido correto da nossa filiação divina traz consigo o
santo temor de Deus, o temor de desagradar a um Pai que nos julga e que calibra
perfeitamente o valor de todos os nossos atos.
«Exílio neste mundo». Cf. 1 Pd 1, 1; 2, 11; 4, 2; Hb 11, 13. Nestes
textos inspirados fica patente a nossa condição não apenas de peregrinos da
Pátria celeste, mas também a ideia de pena que envolve a nossa situação de
«degredados filhos de Eva» neste «desterro» (cf. Salve Rainha).
18-19 «Libertados… com o Sangue precioso de
Cristo». A obra salvadora de Jesus não consistiu numa mera libertação,
como, por exemplo, a libertação do Egipto, pois foi um verdadeiro resgate,
pagando Jesus o preço dessa libertação com o Seu Sangue, daí que esta obra
libertadora se chama mais propriamente Redenção (cf. Ef 1, 7; Ap 1, 5).
«Cordeiro sem defeito e sem
mancha». Cf. Ex 12, 5; 1 Cor 5, 7; Jo 1,
29.36; 19, 36. Cf. também: Is 53, 7; At 8, 32-35. Os primeiros textos falam de
Jesus, Cordeiro imolado na nova Páscoa; os segundos, de Jesus manso «Cordeiro
de Deus».
Evangelho
São Lucas 24, 13–35
Temos aqui uma das mais belas páginas do Evangelho:
um relato cheio de vivacidade, de finura e de psicologia, em que acompanhamos o
erguer daquelas almas desde a mais amarga frustração até às alturas da fé e da
descoberta de Jesus ressuscitado. A crítica bíblica procura distinguir neste
relato os elementos de tradição e os elementos redacionais; podem
identificar-se muitos elementos de tradição neste relato, mas não dispomos de
meios para classificar como meramente redacionais todos os restantes, pois não
são do nosso conhecimento todas as fontes de que Lucas dispôs; a própria
crítica admite «fontes especiais» para a redacção de Lucas. Um facto
indiscutível é que Lucas é um teólogo e um catequista, não é um jornalista e
não se limita a contar a seco umas aparições, mas não temos elementos
suficientes para definir em que medida reelaborou as suas fontes.
13 «Emaús»: uma povoação a 60 estádios,
traduzidos por duas léguas, que se traduzem nuns 11
quilómetros e meio de Jerusalém. Há duas leituras variantes nos manuscritos
gregos do Evangelho de Lucas: a imensa maioria deles regista 60 estádios.
Alguns poucos têm 160 (o que equivale a uns 30 Km). Também não existe completo
acordo sobre a sua localização, sendo indicados vários locais na tradição
cristã; El-Qubeibe é o de maior aceitação, a uns 12 Km a Noroeste da Cidade
Santa (Abugoxe corresponde aos 160 estádios).
16 «Mas os seus olhos estavam impedidos de O
reconhecerem». Não é que não vissem a Jesus, ou que Jesus se quisesse
ocultar, mas eles é que estavam obcecados pelo seu extremo desalento. E
fica-nos a lição: para que se possa reconhecer a Jesus ressuscitado é
indispensável o olhar da fé.
18 «Cléofas» parece ser diferente do marido de Maria, mãe de
Tiago e José (Jo 19, 25); embora alguns o identifiquem, a grafia é diferente: Kleopâs.
22-24 «É verdade que algumas mulheres… Alguns
dos nossos…»: aqui se resume o que foi relatado antes com mais
pormenor (Lc 23, 56b – 24, 9) e correspondente à tradição sinóptica e joanina.
Certamente que os nossos são Pedro e João (cf. v. 12 e Jo 20,
1-10). «Mas a Ele não O viram»: se não se trata de um pormenor
meramente redacional, temos que admitir que ainda não lhes constava da aparição
de Jesus a Pedro referida adiante, no v. 34 (cf. 1 Cor 15, 5).
28-30 «Jesus fez menção de seguir para diante». Lucas
volta a aludir ao «caminho de Jesus» (no v. 15 já tinha usado o mesmo verbo
grego que significa caminhar). R. J. Dillon (From
eye-witnesses to ministers of the word) pensa que este pormenor lucano
insinua que a presença de Jesus no meio dos seus através da Eucaristia (a fracção
do pão do v. 30) constitui o momento cume do seu caminhar pelo
caminho da salvação. Enternece o leitor ver como Jesus ressuscitado se
torna o companheiro de caminho (recorde-se como Lucas gosta de
focar a vida cristã como um caminho e um seguimento de Jesus): depois de se
fazer encontrado, agora faz-se rogado. Isto sucede-nos muitas vezes na vida
cristã: Ele vem ao nosso encontro sem O procurarmos e, outras vezes, quer
dar-nos o ensejo de O convidarmos a ficar conosco e de
praticarmos a caridade com os outros, que são Ele (cf. Mt 25, 40). Mas aqui o
convite feito a Jesus não é um simples ato de caridade e de cortesia; com
efeito, parece que a narrativa nos leva a pensar que quem faz este pedido é
toda a comunidade cristã, que se reúne para celebrar a Eucaristia e anseia
estabelecer uma comunhão íntima com Jesus ressuscitado (ibid.). Todos
estão de acordo em ver a estreita relação da refeição descrita com a
multiplicação dos pães e a instituição da Eucaristia.
31 «Abriram-se-lhes os olhos e
reconheceram-no, mas Ele desapareceu da sua presença»: É na Eucaristia que
se abrem os olhos para a fé, para captar o que é invisível, mas real.
Impressiona muito o relato ao unir o aparecimento com o desaparecimento, sem
se dizer para onde é que Jesus se retirou. Desta maneira fica sugerida uma
nova presença, a de Jesus glorioso e ressuscitado: uma ausência que é
presença. Comenta João Paulo II: «É significativo que os dois discípulos de
Emaús, devidamente preparados pelas palavras do Senhor, O tenham reconhecido,
quando estavam à mesa, através do gesto simples da ‘fracção do pão’. Uma vez
iluminadas as inteligências e rescaldados os corações, os sinais ‘falam’. A
Eucaristia desenrola-se inteiramente no contexto dinâmico de sinais que
encerram uma densa e luminosa mensagem; é através deles que o mistério, de
certo modo, se desvenda aos olhos do crente. Como sublinhei na encíclica Ecclesia
de Eucharistia, é importante que nenhuma dimensão deste Sacramento
fique transcurada. Com efeito, subsiste sempre no homem a tentação de reduzir
às suas próprias dimensões a Eucaristia, quando na realidade é ele que se deve
abrir às dimensões do Mistério. ‘A Eucaristia é um dom demasiado grande para
suportar ambiguidades e reduções’» (Carta Mane nobiscum Domine, 14).
32 «Não ardia cá dentro o nosso coração?». Quando
lemos a Escritura guiados por Jesus, presente na Igreja, inflama-se o nosso
coração e sentimo-nos urgidos a mostrar aos que nos rodeiam, com as nossas
vidas, pela palavra e pelo exemplo, que Cristo vive, que a Ressurreição é uma
realidade. O episódio constitui um apelo a fazermos o mesmo papel do Ressuscitado
junto dos desiludidos da vida e sem esperança e a comunicar-lhes a nossa
experiência de fé. No relato põe-se em evidência a união do pão e da palavra na
vida da Igreja.
33 «Partiram
imediatamente». «Os dois discípulos de Emaús, depois de terem reconhecido o
Senhor, «partiram imediatamente» para comunicar o que tinham visto e ouvido.
Quando se faz uma verdadeira experiência do Ressuscitado, alimentando-se do seu
Corpo e do seu Sangue, não se pode reservar para si mesmo a alegria sentida. O
encontro com Cristo, continuamente aprofundado na intimidade eucarística,
suscita na Igreja e em cada cristão a urgência de testemunhar e evangelizar»
(João Paulo II, Mane nobiscum Domine, 24).
Fonte: https://presbiteros.org.br/
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