O cristianismo (Toda Matéria) |
O cristianismo é um acontecimento
Quando faleceu o cardeal Hamer em dezembro de 1996, padre Giussani escreveu no L’Osservatore Romano que era “mêmore do grande ensinamento recebido sobre a natureza comunial da Igreja e profundamente grato pelo sucessivo encontro pessoal cheio de verdadeira afeição eclesial”. Esta é mais uma razão para publicarmos novamente o texto escrito para o Il Sabato em 1993.
do cardeal Jean-Jérôme Hamer
A coisa que mais me impressiona é a tese central do
livro Un avvenimento di vita cioè una storia (Um Acontecimento
de Vida, isto é, uma História), de monsenhor Giussani: o
cristianismo é um acontecimento. Um acontecimento que se traduz em um
encontro, postula uma presença, realiza-se na “contemporaneidade”. Essa idéia
tem implicações importantes tanto no plano pedagógico como no plano teológico,
como escrevi em uma carta ao autor do livro.
A noção de acontecimento aplicada ao cristianismo
não é comum no pensamento católico moderno. Ela foi empregada no período
entre-guerras pelo grande teólogo alemão Karl Barth, na sua polêmica com a
teologia liberal. Mas o acontecimento é uma coisa muito diferente para o
protestante Barth. É como um relâmpago, uma iluminação que toca a vida e no
instante seguinte se retira. Entra na existência humana como a agulha de uma
máquina de costura perfura um tecido. Esse relâmpago pode se repetir muitas
vezes, mas o resultado essencial não muda. Depois da luz, a escuridão sempre
volta. É um transcendente que não se encarna, sobre o qual é difícil construir
algo estável.
O acontecimento do qual monsenhor Giussani fala não
é um relâmpago: funda uma história que permanece. É a Igreja. “O acontecimento
- como todo acontecimento - é o início de algo que não existia antes: é a
irrupção do novo que dá início a um processo novo” (cf. Un avvenimento di
vita cioè una storia, p. 489). Fiquei impressionado ao ver que
na capa do livro, o título destaca esse efeito: a palavra “História” é
evidenciada em vermelho, com caracteres maiores.
Afirmar o acontecimento significa reconhecer o
caráter radicalmente novo e soberano do cristianismo. Segundo os dicionários,
acontecimento é um fato importante, que marca um momento da história. Giussani
não se limita a essa definição, mas desenvolve a idéia segundo a qual o
acontecimento é um fato fundamentalmente novo. Assim, segue a linha de Charles
Péguy: “não-previsível, não-previsto, não-conseqüência de fatores
antecedentes” (p. 478). Portanto, é algo que surpreende, que “irrompe” na
história, inclusive na história pessoal de cada um.
A abordagem de monsenhor Giussani permite mostrar o
sentido exato do pensamento da Igreja sobre a relação entre “espera” e
“realização”, entre “profecia” e “cumprimento”, entre “lei antiga” e “lei
nova”. Existe em cada um desses binômios uma continuidade real e uma descontinuidade radical.
Cristo é a resposta adequada aos mais profundos
desejos do homem, mas a realização não é o desenvolvimento natural e
progressivo da espera humana. A realização não está para o desejo assim como a
planta está para a semente. Não é uma evolução, um processo natural
e linear. A espera recebe uma resposta que supera muito o pedido. A
realização pode parecer paradoxal. Pensemos no messianismo comum das pessoas
que viviam em torno de Jesus, inclusive dos discípulos do Senhor. A espera
recebe uma resposta completamente imprevista. Ninguém previa um Messias que
ressuscitaria dos mortos e entraria assim na glória. Jesus os preparou,
dizendo que devia sofrer muito, mas essa idéia parece não ter entrado na
consciência dos discípulos até o último momento. Os discípulos de Emaús dizem:
“Nós esperávamos que fosse ele quem iria redimir Israel; mas faz três dias que
todas essas coisas aconteceram” (Lucas 24,21).
A religiosidade natural também é uma situação de
espera, em função de uma realização. Giussani, descrevendo a amizade com
alguns monges budistas, diz que o ponto mais alto do senso religioso natural é
“uma espera dolorosa” (p. 40). Por isso, certas normas da religiosidade
natural devem ser radicalmente superadas para serem realizadas no mistério de
Cristo. É, mais uma vez, continuidade e descontinuidade.
O acontecimento do qual monsenhor
Giussani fala não é um relâmpago: funda uma história que permanece. É a Igreja.
“O acontecimento - como todo acontecimento - é o início de algo que não existia
antes: é a irrupção do novo que dá início a um processo novo” (cf. Un avvenimento
di vita cioè una storia, p. 489). Fiquei impressionado ao ver que na capa do
livro, o título destaca esse efeito: a palavra “História” é evidenciada em
vermelho, com caracteres maiores.
A intuição de Giussani aprofunda também o binômio lei antiga-lei nova. A lei nova se realiza na graça. É a realização da lei antiga mas, de certa forma, a sua revogação. A realização completa e, ao mesmo tempo, transforma a espera. É uma idéia que monsenhor Giusani desenvolve quando, na sua última conferência, publicada no livro, cita uma frase (considerada “admirável”) de João Paulo I: “O verdadeiro drama da Igreja que gosta de se considerar moderna é a tentativa de corrigir a maravilha do evento de Cristo com regras” (p. 481).
Aqui entra a polêmica antipelagiana de Giussani. Essa polêmica pertence à tradição da Igreja, de Agostinho a Tomás. Seria interessante, a esse respeito, reler e comentar os artigos de Santo Tomás sobre “por que o homem precisa da graça”. A salvação não está em um esforço moral mas em um perdão. Se não fosse assim, não entenderíamos a insistência da teologia católica na gratuidade da graça, na necessidade dos sacramentos, na consciência do pecado (no início da missa, a Igreja nos convida a reconhecer os pecados, não só abstratamente, como era em algumas traduções discutíveis, mas que somos pecadores).
Por fim, alguém poderia dizer que o termo “diálogo”, que é central na idéia de atualização da Igreja pós-conciliar, aparece raramente no livro, ao passo que a noção de “presença é abundante. Desvaloriza o momento do dialogo? Não creio. O diálogo é importante em todos os níveis, a começar pelo nível político, porque acaba com a hostilidade e cria um clima de confiança. O cardeal Richelieu dizia: “Devemos sempre negociar”. No plano político, essa posição é justa e legítima. Mas o dialogo pressupõe a presença, ou seja, um “sujeito novo”. Caso contrário, arrefece e se torna um fim em si mesmo. O diálogo, na sua forma mais verdadeira, também é comunicação do acontecimento e instrumento de um encontro.
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