Arquivo 30Dias - 04/2010
O caminho da África, ou seja, a África a caminho
Encontro com o presidente do Pontifício Conselho Justiça e Paz: as crises na Nigéria e no nordeste da República Democrática do Congo. A dívida externa que preocupa os governos do Continente africano. Mas também os progressos e as esperanças do “pulmão espiritual da humanidade” segundo Bento XVI.
Entrevista com o cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson de Roberto Rotondo e Davide Malacaria
O cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson, ganense, há
seis meses presidente do Pontifício Conselho Justiça e Paz, é o mais jovem
purpurado africano e com a mais alta posição no Vaticano entre os homens de
Cúria do Continente Negro. Nascido em Wassaw Nsuta, na parte oeste de Gana, foi
consagrado sacerdote para a arquidiocese de Cape Coast em 1975, da qual
tornou-se arcebispo em 1992. Foi presidente da Conferência Episcopal de Gana de
1997 a 2005. Estudou nos Estados Unidos e no Instituto Bíblico de Roma. Fala
inglês, francês, italiano e alemão. Conhece o hebraico, o grego antigo e o
latim. Foi criado cardeal em 2003 – primeiro purpurado ganense da história –
foi relator geral no Sínodo Especial para a África no final de 2009. Com ele,
que declarou várias vezes querer trazer para a sua nova experiência em Roma o
“grande sentido de solidariedade e de busca da justiça” do povo da África,
conversamos sobre alguns graves problemas infelizmente “crônicos” da África
subsaariana. E começamos com a sua última viagem à Nigéria.
Em março deste ano o senhor foi à Nigéria, poucos
dias depois do massacre de centenas de pessoas em três vilarejos de camponeses,
na maioria católicos, da diocese de Jos. Qual é o seu parecer sobre a situação
depois dos ataques de 7 de março, que num primeiro momento tinham sido
apressadamente atribuídos à rivalidade entre cristãos e islâmicos?
PETER KODWO APPIAH TURKSON: Quando fiquei sabendo dos ataques noturnos aos
vilarejos e das centenas de mulheres e crianças mortas, imediatamente pensei em
ir até lá para ajudar o arcebispo de Jos, monsenhor Ignatius Kaigama, a acalmar
os ânimos e a frear os que, querendo se vingar, corriam o risco de alimentar
uma grande onda de violência. Conheço bem Kaigama, é também presidente do
Conselho para o diálogo Inter-religioso da Nigéria e sempre se preocupou em
promover a paz, mas naqueles dias era quase o único a convidar as pessoas a
acalmarem-se. Desde o primeiro momento ficou bem claro que se tratava de uma
terrível vingança tribal e até mesmo L’Osservatore Romano tinha
excluído a marca religiosa, mas apesar disso, passou a ideia na mídia de todo o
mundo que na Nigéria a raiz da violência era determinada pelo contraste entre
muçulmanos e cristãos.
Então o que era?
TURKSON: Tragicamente, tratou-se de uma represália dos pastores nômades Fulani
na maioria islâmica, contra os trabalhadores rurais, estáveis, na maioria
cristãos. As causas dessas represálias? A morte de alguns animais de rebanho e
alguns episódios de violência que sofreram os pastores Fulani, acusados pelos
camponeses de destruir a colheita com seus rebanhos, os quais, por causa da
estiagem, dirigem-se cada vez mais para o sul nas regiões cultivadas. O fato é
que para os Fulani o rebanho vale mais do que a vida, mas também para os
camponeses, a colheita é uma questão de vida ou morte.
Uma trágica guerra entre pobres...
TURKSON: É um problema que se arrasta há muitos anos. A Igreja local tenta de
todos os modos chegar a uma concórdia, mas enquanto o governo da região e o
Estado central não conseguirem garantir a segurança e justiça, a situação
continuará sempre a risco. Justamente por isso, em 19 de março, depois de ter
presidido uma celebração eucarística de sufrágio pelas vítimas, na qual li uma
mensagem de Bento XVI, fomos encontrar os responsáveis do governo da região e
repetimos-lhes o quanto essa pobre gente – que durante cada missa reza também
pelo governo, pelo Estado, pelo presidente – tenha o direito de poder dormir
com segurança. Com efeito, o que mais me impressionou, é que os ataques aos
vilarejos aconteciam às duas da madrugada, quando as pessoas estavam em casa
dormindo, justamente para causar maiores danos possíveis. Enfim foi uma
vingança calculada, não uma explosão irracional de violência.
E por parte dos muçulmanos surgiu alguma vontade de acalmar os ânimos?
TURKSON: Em Jos encontrei também o líder muçulmano Amil que trabalha em
estreito contato com Kaigama. Eles dois querem ser as centelhas da paz, mas em
ambas as partes há os que não aprovam: alguns cristãos dizem que o arcebispo
confia demais nos muçulmanos e alguns muçulmanos afirmam que o emir acabará
sendo convertido pelo bispo ao cristianismo. Mas o caminho deles é a única
possibilidade para a convivência, a paz e o desenvolvimento da zona. Chegaram
até a falar com o sultão de Sokoto, que é a maior autoridade do islã na
Nigéria, e esperamos que muitos outros decidam seguir o caminho do diálogo.
A errada atribuição dos combates a uma guerra de religião é também fruto da
nossa incapacidade de ouvir e entender o que acontece na África?
TURKSON: Sim, sem dúvida. Visto daqui, tudo parece apenas “África”: a África
esfomeada, a África vítima das violências tribais, da luta pelos recursos
naturais... Mas na África subsaariana há 48 Estados nacionais, cada um com uma
própria situação, os próprios problemas, os próprios dramas, os próprios
progressos. Respeitar a África quer dizer antes de tudo aprender a não
generalizar. Em Gana, onde nasci, por exemplo, o presidente do Parlamento, o
ministro da Justiça e o chefe da polícia são mulheres, mas isso não quer dizer
que a África tenha aprendido a valorizar o papel da mulher. Assim, os problemas
relativos aos equilíbrios demográficos, religiosos e étnicos mudam de país para
país: na Nigéria, muçulmanos e cristãos numericamente se equivalem, em Serra
Leoa os islâmicos são a maioria. Em Gana, o islã é minoria e representa 18% da
população, assim temos um problema que não há em outros países: há grupos que
não ficam satisfeitos com o equilíbrio religioso e étnico alcançado no país e
que permite a convivência. E nos últimos anos estes grupos colocaram em ato
estratégias para mudar os equilíbrios demográficos. Não estou lançando uma
cruzada, mas temos consciência de que o fenômeno existe e, como dizem tanto os
italianos quanto os franceses, quem avisa amigo é...
A situação de crise permanente na região nordeste da República Democrática
do Congo (que é uma área com maioria católica) ainda é uma ferida aberta no
Continente africano. Por que não se consegue sair desta situação de perene
instabilidade? É apenas um problema de luta pela exploração das imensas
riquezas naturais?
TURKSON: A luta pelos recursos é um fator importante da crise, mas não é só
isso. Um outro elemento é a falta de infraestruturas como estradas ou pontes:
em um país tão grande, faz com que o poder central fique muito afastado e lento
para intervir. Além disso, os vários grupos tribais e étnicos são um ulterior
elemento de instabilidade quando, também por causa das ingerências externas no
Congo, estes não conseguem mais encontrar um equilíbrio entre si.
Parte da população congolesa, com efeito, considera-se ruandesa ou mesmo
burundinesa. Este é um problema comum em muitas regiões da África, onde as
fronteiras dividem tribos, etnias ou grupos homogêneos pela história e
tradições. A mesma coisa acontece também em Gana: há um vilarejo na fronteira
com o Togo no qual uma rua divide os dois Estados: de um lado os ganenses e de
outro os togoleses. Para nós é apenas uma situação bizarra, mas na região do Kivu,
na República Democrática do Congo, tornou-se um caso dramático. Também porque
os interessados em extrair os imensos recursos naturais da região, tanto o ouro
ou diamantes, madeira ou coltan, têm todo o interesse que reine um estado de
caos permanente. Quando há anarquia, confusão, mesmo com um pequeno grupo
armado pode-se aterrorizar um inteiro vilarejo, abrir minas ilegais, levar tudo
embora. Apenas com um governo forte é possível resolver a situação um pouco de
cada vez.
Falando dos problemas da África subsaariana o senhor
disse que alguns homens da classe política e econômica africana são inadequados
e, às vezes, ou até mesmo corruptos e cúmplices das lobbies externas que
exploram o continente…
TURKSON: A corrupção sempre existiu em todas as partes do mundo, mesmo nas
nações mais evoluídas. Mas em todas as sociedades evoluídas há os que vigiam e
colocam um freio. Aqui, o poder central e os políticos muitas vezes não
conseguem desenvolver esta função porque são obrigados a pensar somente no
imediato sem poder realizar nada que tenha um mínimo de prazo e de perspectiva.
Sempre faltam os recursos para realizar o que planejado de nobre na campanha
eleitoral, e muitos governos, já sufocados pelas dívidas assumidas em anos
anteriores, pensam apenas em como encontrar rapidamente capital para enfrentar
as situações de maior emergência. Por isso são feitas escolhas ditadas apenas
pela emergência, sem pensar se as escolhas feitas hoje trarão alguma
consequência negativa no futuro. Assim acontecia em Gana: primeiro as minas de
ouro penetravam nas profundidades do subsolo, hoje, ao invés, prefere-se fazer
imensas clareiras na superfície do terreno, derrubando a floresta. Ninguém se
preocupa se um dia teremos, no lugar da floresta e dos campos cultivados,
apenas um solo com grandes crateras vazias, porque o governo precisa
urgentemente de recursos financeiros e tudo aquilo que traz dinheiro a curto
prazo é preferível a projetos a longo prazo. Por isso a Mensagem para a Paz do
Papa Bento XVI deste ano, que fala de solidariedade com o ambiente e de
solidariedade entre as gerações atuais e as futuras, é muito concreta e tem
implicações políticas, sociais, econômicas muito sentidas na África.
No ano 2000, dez anos atrás, houve uma grande campanha para zerar a dívida
externa dos países em desenvolvimento. Houve algum resultado?
TURKSON: A dívida não é o maior problema: se anulam as nossas dívidas, mas
ficamos sem meios para produzir bens e mercadorias, jamais conseguiremos criar
capitais. Novamente nos endividaremos.
Mas neste momento os países africanos mal conseguem pagar os juros, sem
nunca conseguir extinguir a própria dívida…
TURKSON: Seria mais importante que os governos dos países africanos
conseguissem aumentar a capacidade produtiva e industrial, porque se
continuarmos a vender apenas matéria-prima ou produtos não industrializados não
conseguiremos criar uma economia forte e seremos sempre sufocados pelas
dívidas. Por exemplo, Gana é um dos maiores produtores de cacau no mundo: mas
quantas fábricas de chocolate existem em Gana? Nós cultivamos tomates em
abundância, mas quantas fábricas de conservas temos? É principalmente nas
indústrias de manufatura que se pode criar riqueza e desenvolvimento estável,
mas é justamente ali que a África é mais fraca. Somente quando soubermos
converter o couro do gado em sapatos é que sairemos deste círculo vicioso de
empréstimos e juros.
Durante o Sínodo Especial para a África, Bento XVI definiu o continente como
o pulmão espiritual da humanidade. Mas o que a África pode dar ao mundo?
TURKSON: O Papa referia-se aos valores cristãos, religiosos e humanos da África
e disse que devemos prestar atenção para não danificar este pulmão da
humanidade. É um pulmão sadio quando sabe olhar para aqueles valores do Evangelium
vitae dos quais nos falara João Paulo II; e a fonte dos males são o
secularismo e o relativismo, dos quais a África, até este momento, ao menos,
parece protegida, mesmo se vivemos em um mundo globalizado e há muitas outras
ameaças que nos chegam através de muitos meios que, por si, são muito
positivos. Por exemplo, a internet, com a qual chega de tudo aos nossos jovens
sem qualquer mediação. A rede transmite muitas coisas belas, mas também é
possível acessar a sites que ensinam a construir bombas e fomentam ódio.
O senhor é muito apegado a Gana e à África, e segundo alguns, o Papa teve de
convencê-lo a vir a Roma. O que o senhor trouxe consigo da sua experiência de
pastor?
TURKSON: Creio ter feito o mínimo que podia fazer em Cape Coast, com a graça e
a ajuda de Deus. Eu era o sucessor de um arcebispo muito famoso e amado, John
Kodwo Amissah, o primeiro arcebispo nativo de Gana e talvez também o primeiro
arcebispo africano de toda a África Ocidental. Foi uma figura de referência
durante o processo político que nos levou à independência da Inglaterra.
Recordo que, no momento da minha ordenação, perguntaram-me se eu me sentia à
altura para suceder uma figura tão carismática e eu respondi, retomando um
antigo ditado, que queria apenas calçar os meus sapatos, porque os dos outros
poderiam ser ou muito grandes ou muito pequenos. Tudo dependia do que o Senhor
me consentiria fazer. Todavia fiquei ali de 1993 a 2010, e procurei fazer
fundamentalmente duas coisas: investir muito na formação dos padres – temos um
bom seminário maior com professores preparados e no qual formam-se muitos
sacerdotes – e tentar envolver os jovens, com muitas iniciativas ligadas à
escola, para aproximá-los da Igreja Católica.
O seu pai era católico e sua mãe metodista. Como nasceu a sua vocação sacerdotal?
TURKSON: Minha mãe era metodista, mas se converteu ao catolicismo quando se
casou com meu pai. A história da minha vocação é muito simples. Talvez toda a
vocação sacerdotal nasce por um motivo aparentemente banal, mas depois no
seminário cresce e se clarifica. A vocação é um pouco como o starter dos
automóveis, a centelha que acende o motor, e a história da minha vocação é algo
semelhante. O motivo original pelo qual entrei para o seminário foi a figura de
um padre holandês que a cada dois meses vinha celebrar a missa na minha pequena
cidade onde cresci. Meu pai era marceneiro e a nossa cidade era perto de uma
mina de manganês. Não havia um pároco estável e recordo deste sacerdote que
vinha de vez em quando, dormia na igreja e pela manhã estava sempre ali,
pronto, esperando a chegada dos fiéis para a missa. Isso impressionou-me e,
mais tarde quando cheguei à idade de frequentar a escola secundária, fiz o
pedido para entrar no seminário menor. Digo sempre aos seminaristas, a história
da nossa vocação começa com algo muito pequeno, mas é o seminário o lugar onde
a vocação cresce e se clarifica.
>A encíclica social do Papa Caritas in veritate, da qual o
Pontifício Conselho Justiça e Paz está aprofundando o estudo de algumas linhas
de orientação, foi publicada em um particular período histórico, no qual a
crise econômica mundial colocou à luz os excessos das finanças sem regras e as
injustiças que derivam disso. A quase um ano da publicação, hoje, a encíclica é
um instrumento de reflexão útil para sair da crise?
TURKSON: Como se sabe, a Caritas in veritate tinha sido
programada em vista do 40º aniversário da Populorum progressio e
o seu lançamento foi adiado justamente para que se pudesse reelaborá-la à luz
da crise que tinha investido os mercados financeiros. Se é considerada útil ou
não, resta a juízo dos leitores, mas a intenção não era de dar uma receita
econômica nova, mas sim confirmar a necessidade de introduzir o homem como
critério de base da economia, das finanças, mas também do progresso tecnológico.
Um desenvolvimento que não ajuda e não apoia o desenvolvimento da pessoa, não
pode ser considerado um verdadeiro desenvolvimento. Portanto foi um apelo a
humanizar a economia e também, considerando que o mundo é cada vez mais
globalizado e que nenhum país pode enfrentar a situação isoladamente, o Santo
Padre pediu se não era tempo de desenvolver um organismo mundial que possa
guiar a globalização. Sei que nos Estados Unidos criticaram o Papa acusando-o
de querer ser o guia espiritual de um governo mundial, mas é uma bobagem. Seria
suficiente ler o que acontece no mundo nestes dias: ninguém tem força
suficiente para enfrentar estes fenômenos e esta crise sozinho.
Fonte: http://www.30giorni.it/
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