Santo Agostinho e a Redenção Geral
Alessandro Lima 23 de janeiro de 2023
Por
Jadson Targino
Introdução
Ao longo da história, teólogos da tradição protestante reformada (também
conhecidos como “calvinistas”) têm afirmado uma doutrina conhecida como
Expiação Definida. Segundo tal ensino, Nosso Senhor Jesus Cristo teria
morrido apenas para obter a salvação dos eleitos (ou “predestinados”). Em
outras palavras, segundo eles, Jesus morreu apenas para redimir aquele grupo
limitado ou definido de pessoas que, por fim, salvar-se-á, sem ter feito
qualquer provisão que possibilite a salvação dos não predestinados.
David Gibson e Jonathan Gibson, dois pastores e teólogos calvinistas
responsáveis por organizar o maior livro em defesa dessa doutrina na
atualidade, nos lembram que tal ensinamento adotado pelas denominações
calvinistas, também recebe outros nomes e confirmam que a entendemos
corretamente: “Comumente chamada de ‘expiação limitada’ ou ‘redenção
particular’, essa é uma doutrina das igrejas reformadas tratada
carinhosamente como uma profunda explicação da morte de Cristo… A
explanação oferecida… vê a expiação através das lentes da eleição e,
portanto, [em] como [ela] tenciona salvar [somente] um grupo específico de
pessoas” (Do Céu Cristo Veio Buscá-la, São José dos Campos:
Editora Fiel, 2017, p. 62 [versão digital]).
É um ensino que parece claramente afirmado no Sínodo de Dort
(1618-1619), um símbolo de grande importância para a fé calvinista
histórica: “Isto quer dizer que foi da vontade de Deus que Cristo por meio
do sangue na cruz… redimisse efetivamente de todos os povos.. todos aqueles
e SOMENTE aqueles que foram ESCOLHIDOS desde a eternidade para
serem salvos, e Lhe foram dados pelo Pai” (Cap. II, 8). Repare nos termos
utilizados. Conforme tais teólogos reformados, foi da vontade de Deus
redimir somente aqueles que foram escolhidos (ou predestinados).
É óbvio que a Igreja Católica condena tal ensino: “[Quanto à doutrina de
que Jesus morreu SOMENTE pela salvação dos predestinados] A declaramos…
Falsa, temerária, escandalosa, ímpia, blasfema, ultrajante, contrária à
divina piedade e herética” (Constituição Apostólica Cum Occasione,
Papa Inocêncio X (1653), Denz. 2001-2007). E a grande maioria dos
protestantes também rejeita. As Escrituras ensinam claramente que Cristo
veio “para que, pela graça de Deus, provasse a morte por todos” (Hb 2,9; cf. 2 Co 5,14-15) e que “Ele é a expiação
pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo” (1 Jo 2,2), não apenas dos
predestinados. Assim, só se perde quem resiste à graça e rejeita a oferta
da salvação (At 7,51; 2 Co
6,1; Jo 3,15-36, etc.), e não por ausência de provisão.
Mesmo que tenham elaborado uma obra inteira para provarem o seu ponto,
os próprios Gibson reconhecem que “nenhum texto bíblico declara que Cristo
morreu somente por seus eleitos, mas vários textos declaram que Ele morreu
por todos” (Idem, p. 65). Assim, os calvinistas sabem que são, por razões
claras, minoritários no Cristianismo: “Quando falamos em redenção particular
[expiação limitada], temos de reconhecer que os pensadores reformados
ocupam uma posição minoritária dentro da cristandade… reconhecemos que
grandes segmentos da Igreja atual vêem as coisas de modo diferente. A
visão oposta à redenção particular é a redenção universal e, se alguém
perguntar a católicos romanos informados, membros experientes das comunhões
Ortodoxa Grega ou Ortodoxa Russa, ou mesmo luteranos ou arminianos
ortodoxos, eles dirão que é nisso que creem… Todas essas pessoas acreditam
que Jesus morreu por todos os homens e mulheres e a única coisa que os
impede de receber os benefícios de sua morte… É sua descrença ou falta de
fé. Aqueles que defendem a posição reformada, afirmam que Jesus morreu por
um número seleto de pessoas” (James M. Boice & Philipe G. Ryken, As Doutrinas da Graça, Vida Nova: 2017, p. 131).
Diante do que foi dito, pontuo que uma das estratégias mais utilizadas
para dar credibilidade a essa tese teológica tão condenada é a de tentar
colocá-la nos escritos de algum Pai da Igreja. Muitos calvinistas tentam
imputá-la a Santo Agostinho, como é o caso de Michael Haykin, que afirma
haverem nele “fortes alusões de uma expiação definida” (Do Céu Cristo Veio Buscá-la, São José dos Campos:
Editora Fiel, 2017, p. 153 [versão digital]). Todavia, demonstrarei
como não somente o bispo africano e Doutor da Igreja a rejeitou, como a
utilizou como recurso retórico contra os hereges pelagianos, estando assim
em plena harmonia com o ensino da Igreja Católica.
Desenvolvimento
Santo Agostinho claramente afirmou que toda “a raça humana devia, em um
determinado momento, ser redimida pelo precioso sangue”¹ de Jesus (In Evangelium Ioannis Tractatus, VII, 6) e que
como “todos [os homens], sem exceção estavam mortos… por todos os mortos, ali morreu o único sem pecado”
(A Cidade de Deus. Livro XX, Cap. VI, [1]), não somente
pelos predestinados. Além disso, ensinou que Cristo “com justiça julgará o
mundo; não uma parte dele, por que não comprou só uma parte, julgará o
todo, pois foi pelo todo que pagou o preço”[2] (Exposição
no livro de Salmos, Salmo 96, XV). Perceba: para o Doutor da Igreja, Nosso
Senhor julgará o mundo todo porque, pela sua morte, Ele comprou a todos.
Julgará o todo, afinal por causa do todo pagou o preço. Cristo, o
“Redentor veio e pagou um preço; derramou o seu sangue e comprou o mundo
inteiro”[3] (idem, V).
Sendo assim, se Jesus obteve a redenção de todos na Cruz, comprando-os,
por que nem todos se salvam? Santo Agostinho respondeu: “O Deus
misericordioso, querendo libertar a todos os homens desta morte, isto é,
das eternas penas, com a condição de que não
queiram se tornarem em inimigos de si mesmos e não resistam à sua
misericórdia, nos enviou seu Filho unigênito” [4] (De Catechizandis Rudibus, XXVI, 52). Em outras
palavras, embora Deus tenha tomado a iniciativa, se requer de nossa parte
que cooperemos, não resistindo à oferta da graça de Deus. Como nem todos
cooperam, se perdem; afinal, como ensina o famoso bispo africano: “O Deus
que te criou sem ti, não te salvará em ti” [5] (Sermão 169, XI). Em
outra passagem, Sto. Agostinho confirma essa compreensão de sua doutrina:
“Portanto, no que diz respeito ao médico, ele vem para curar os
enfermos. Aquele que não quer obedecer às recomendações
do médico tira sua própria vida. O Salvador veio ao
mundo: por que Ele foi chamado de Salvador do mundo,
senão para salvar o mundo e não para julga-lo? Se você não quer ser salvo por
Ele condenará a si mesmo” [6] (In Evangelium Ioannis Tractatus,
XII, 12).
Não surpreendentemente, isso está em plena harmonia com a doutrina da
Igreja Católica: “Embora tenha Ele [Jesus] morrido por todos (2 Co 5, 15), não
obstante nem todos recebem o benefício de sua morte, mas somente aqueles aos
quais é comunicado o merecimento de sua Paixão” (Concílio de Trento,
Seção VI, cap. 3).
O Catecismo de São Pio X (Perguntas 111 à 113), por sua vez: “Por quem
morreu Jesus Cristo? Jesus Cristo morreu pela
salvação de todos os homens, e satisfez por todos. Se Jesus Cristo
morreu pela salvação de todos, por que nem todos se salvam? Jesus Cristo morreu por todos, mas nem todos se salvam, porque nem
todos O reconhecem, nem todos seguem a sua lei, nem todos se servem dos meios
de santificação que nos deixou. Para nos salvarmos não basta que
Jesus tenha morrido por nós? Para nos salvarmos não basta
que Jesus Cristo tenha morrido por nós, mas é necessário que sejam
aplicados, a cada um de nós, o fruto e os merecimentos da sua Paixão e morte,
aplicação que se faz, sobretudo, por meios dos Sacramentos, instituídos para
este fim pelo mesmo Jesus Cristo; e como muitos ou não recebem os Sacramentos,
ou não os recebem com as condições devidas, eles tornam inútil para si próprios
a morte de Jesus Cristo.”
Santo Tomás de Aquino arremata: “Embora Cristo, por Sua morte, tenha expiado suficientemente os pecados da humanidade [inteira]…
cada um deve buscar os meios de sua própria salvação. A morte de Cristo é uma
causa universal de salvação, assim como o pecado do primeiro homem foi como uma
causa universal de condenação. Agora, uma causa universal
precisa ser aplicada a cada indivíduo, para que este tenha sua parte no efeito
da causa
universal. Consequentemente, o efeito do pecado de nosso primeiro pai atinge
cada indivíduo por meio da origem carnal: e o efeito da morte de Cristo atinge
cada indivíduo por meio da regeneração espiritual, pela qual o homem é unido e
incorporado a Cristo. Portanto, cada um deve buscar ser regenerado por Cristo e
receber as outras coisas nas quais o poder da morte de Cristo é eficaz” (Suma
Contra os Gentios, Livro IV, cap. 55, 29)
Uma
outra via
É também possível por outro caminho demonstrar que o bispo de Hipona não
acreditava que Jesus morreu apenas pelos predestinados, mas pela salvação de
toda a humanidade, embora alguns se percam por sua própria culpa e resistência
à graça.
Embora muitos afirmem que a doutrina segundo a qual Jesus morreu pela
salvação de todos os homens seja “pelagiana”, é fato que o próprio Agostinho
atribuía a negação de tal ensino a Pelágio. Em outras palavras, o bispo
africano acreditava que, na verdade, era Pelágio quem restrigia o alcance da
obra redentora de Cristo.
Sto. Agostinho escreveu: “Os pelagianos dizem que Deus NÃO é salvador,
libertador e purificador dos homens de todos tempos” [7] .
Conforme Agostinho, o heresiarca britânico argumentava que todo ser
humano nasce em inocência, como Adão, até que adquire culpa e, portanto,
necessidade de redenção; isso somente ao chegar na idade da razão. Logo, Deus
não necessitaria prover redenção para as crianças que Ele já sabia que
morreriam prematuras, nesse estado de inocência.
Contra isso, Agostinho e os agostinianos disseram o seguinte: se Cristo
morreu por todos sem exceção, logo Ele morreu por todas as crianças (inclusive
pelos infantes que morrem antes de alcançar a idade da razão), e, portanto,
estas devem ter — em algum sentido — necessidade de graça, misericórdia e
redenção.
Eram os pelagianos, segundo a interpretação do próprio bispo de Hipona,
que negavam que Jesus era salvador, purificador e libertador para todos,
pois eles ensinavam que Jesus não precisava morrer para salvar as crianças
que faleciam tenras e inocentes.
Nas palavras de Agostinho: “[Chamamos de pelagianos] aqueles que não
atribuem à graça divina aquela liberdade para a qual fomos chamados,
e aos que recusam reconhecer Cristo como Redentor das crianças…
estes sim, os chamamos de pelagianos, porque participam de seus erros
criminosos.” [8]
Além disso, o importante teólogo africano utilizava um argumento
interessante para refutar os pelagianos: Ele dizia que se Cristo havia morrido
por todos, sem exceção, então Ele morreu por todas as crianças. E isso prova –
contra Pelágio – que todas os infantes já nascem contraindo o pecado original,
pois precisam de salvação, e, assim também necessitam do batismo. Não há
criança sem pecado original, porque não há criança pela qual Jesus não morreu.
Argumenta Santo Agostinho:
“Se um morreu por todos, então todos morreram e por todos Cristo morreu
(2 Co 5:14)… Agora, se as crianças não estão incluídas nesta reconciliação
e salvação, quem as incluirá no batismo de Cristo? Mas se elas são
incluídas, então elas [necessariamente] são contadas como entre os mortos
por quem Ele morreu; nem poderiam ser reconciliadas e salvas por Ele, a menos que
Ele as redima e não lhes impute seus pecados.” [9]
Conclusão
Finalizo, portanto, com as palavras de um especialista em
agostinianismo: “Não obstante a veneração de Agostinho pelo mistério gratuito
da Predestinação, manteve sua crença na universalidade da vontade
salvifica antecedente de Deus. […] Ninguém pode colocar em dúvidas a
doutrina de Agostinho com relação à universalidade da redenção. […] Tão
incontestável para ele era [o dogma], que se serviu dele [como argumento] para
contestar a limitação geográfica da Igreja crida pelos donatistas e a favor da
transmissão universal do pecado original contra os pelagianos” (MORIONES,
Francisco. Teologia de San Agustin. BAC,p.
318. [Tradução minha]).
Em suma, como a Igreja Católica constantemente tem ensinado, Agostinho
acreditava – contra a doutrina da Expiação Limitada calvinista – que havia uma
provisão na morte de Cristo para toda a humanidade, e se alguém se perde, não é
por falta de provisão, mas porque livre e tristemente decidiu não aplicar a si
mesmo, pela fé, arrependimento e sacramentos, os benefícios dessa morte
redentora. Essa é a doutrina da Expiação Ilimitada ou Redenção Geral, a fé dos
Pais, a nossa fé.
Notas:
1. Em latim, “… quia noverat pretioso sanguine quandocumque redimendum
esse genus
humanum”. [Tradução minha]
2. Cf. SCHAFF, Philip (org.). Nicene and Post-Nicene Fathers Series I –
vol. 8. Grand Rapids MI:
Christian Classics Ethereal Library, p. 938. Disponível em:
https://www.ccel.org/ccel/s/schaff/npnf108/cache/npnf108.pdf. [Tradução minha]
3. Idem, p. 934. [Tradução minha]
4. Em latim, “A quo interitu, hoc est, poenis sempiternis Deus
misericors volens homines liberare,
si sibi ipsi non sint inimici, et non resistant misericordiae Creatoris sui,
misit unigenitum Filium
suum…”. [Tradução minha]
5. Em latim, “Qui ergo fecit te sine te, non te iustificat sine te”.
[Tradução minha]
6. Em latim, “Ergo quantum in medico est, sanare venit aegrotum. Ipse se
interimit, qui praecepta
medici observare non vult. Venit Salvator ad mundum: quare Salvator dictus est
mundi, nisi ut
salvet mundum, non ut iudicet mundum? Salvari non vis ab ipso; ex te
iudicaberis”. [Tradução
minha]
7. Em latim, “Pelagiani dicunt Deum non esse omnium aetatum in hominibus
mundatorem,
salvatorem, liberatorem” (Contra Duas Epistolas Pelagianorum, Liber Secundus,
2.2. Disponível
em: https://www.augustinus.it/…/cont…/contro_pelagiani_2.htm). [Tradução minha]
8. Em latim, “Pelagianus et Caelestianus vocatur, sed qui libertatem in
quam vocati sumus, non
gratiae Dei tribuerit; et qui parvulorum liberatorem Christum negaverit; et qui
cuiquam in hac vita
iusto aliquam in dominica oratione petitionem, non propter ipsum dixerit
necessariam; ipse
huius erroris accipit nomen, quia errore communicat crimen” (Contra Iulianum,
Livro III, 1, 2.
Disponível em: http://www.augustinus.it/…/contro_giuliano_3_libro.htm).
[Tradução minha]
9. AGOSTINHO. “A Treatise on the merits and forgiveness of sins, and on
the baptism of infants”,
Cap. 44. In: SCHAFF, Philip (org.). Nicene and Post-Nicene Fathers Series 1 –
vol. 5. Grand
Rapids MI: Christian
Classics Ethereal Library, p. 166. Disponível em:
https://www.ccel.org/ccel/s/schaff/npnf105/cache/npnf105.pdf. [Tradução minha]
Fonte: https://www.veritatis.com.br/
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