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segunda-feira, 29 de maio de 2023

Santo Agostinho e a Redenção Geral

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Santo Agostinho e a Redenção Geral

Alessandro Lima 23 de janeiro de 2023 

Por Jadson Targino

Introdução

Ao longo da história, teólogos da tradição protestante reformada (também conhecidos como “calvinistas”) têm afirmado uma doutrina conhecida como Expiação Definida. Segundo tal ensino, Nosso Senhor Jesus Cristo teria morrido apenas para obter a salvação dos eleitos (ou “predestinados”). Em outras palavras, segundo eles, Jesus morreu apenas para redimir aquele grupo limitado ou definido de pessoas que, por fim, salvar-se-á, sem ter feito qualquer provisão que possibilite a salvação dos não predestinados.

David Gibson e Jonathan Gibson, dois pastores e teólogos calvinistas responsáveis por organizar o maior livro em defesa dessa doutrina na atualidade, nos lembram que tal ensinamento adotado pelas denominações calvinistas, também recebe outros nomes e confirmam que a entendemos corretamente: “Comumente chamada de ‘expiação limitada’ ou ‘redenção particular’, essa é uma doutrina das igrejas reformadas tratada carinhosamente como uma profunda explicação da morte de Cristo… A explanação oferecida… vê a expiação através das lentes da eleição e, portanto, [em] como [ela] tenciona salvar [somente] um grupo específico de pessoas” (Do Céu Cristo Veio Buscá-la, São José dos Campos: Editora Fiel, 2017, p. 62 [versão digital]).

É um ensino que parece claramente afirmado no Sínodo de Dort (1618-1619), um símbolo de grande importância para a fé calvinista histórica: “Isto quer dizer que foi da vontade de Deus que Cristo por meio do sangue na cruz… redimisse efetivamente de todos os povos.. todos aqueles e SOMENTE aqueles que foram ESCOLHIDOS desde a eternidade para serem salvos, e Lhe foram dados pelo Pai” (Cap. II, 8). Repare nos termos utilizados. Conforme tais teólogos reformados, foi da vontade de Deus redimir somente aqueles que foram escolhidos (ou predestinados).

É óbvio que a Igreja Católica condena tal ensino: “[Quanto à doutrina de que Jesus morreu SOMENTE pela salvação dos predestinados] A declaramos… Falsa, temerária, escandalosa, ímpia, blasfema, ultrajante, contrária à divina piedade e herética” (Constituição Apostólica Cum Occasione, Papa Inocêncio X (1653), Denz. 2001-2007). E a grande maioria dos protestantes também rejeita. As Escrituras ensinam claramente que Cristo veio “para que, pela graça de Deus, provasse a morte por todos” (Hb 2,9; cf. 2 Co 5,14-15) e que “Ele é a expiação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo” (1 Jo 2,2), não apenas dos predestinados. Assim, só se perde quem resiste à graça e rejeita a oferta da salvação (At 7,51; 2 Co 6,1; Jo 3,15-36, etc.), e não por ausência de provisão.

Mesmo que tenham elaborado uma obra inteira para provarem o seu ponto, os próprios Gibson reconhecem que “nenhum texto bíblico declara que Cristo morreu somente por seus eleitos, mas vários textos declaram que Ele morreu por todos” (Idem, p. 65). Assim, os calvinistas sabem que são, por razões claras, minoritários no Cristianismo: “Quando falamos em redenção particular [expiação limitada], temos de reconhecer que os pensadores reformados ocupam uma posição minoritária dentro da cristandade… reconhecemos que grandes segmentos da Igreja atual vêem as coisas de modo diferente. A visão oposta à redenção particular é a redenção universal e, se alguém perguntar a católicos romanos informados, membros experientes das comunhões Ortodoxa Grega ou Ortodoxa Russa, ou mesmo luteranos ou arminianos ortodoxos, eles dirão que é nisso que creem… Todas essas pessoas acreditam que Jesus morreu por todos os homens e mulheres e a única coisa que os impede de receber os benefícios de sua morte… É sua descrença ou falta de fé. Aqueles que defendem a posição reformada, afirmam que Jesus morreu por um número seleto de pessoas” (James M. Boice & Philipe G. Ryken, As Doutrinas da Graça, Vida Nova: 2017, p. 131).

Diante do que foi dito, pontuo que uma das estratégias mais utilizadas para dar credibilidade a essa tese teológica tão condenada é a de tentar colocá-la nos escritos de algum Pai da Igreja. Muitos calvinistas tentam imputá-la a Santo Agostinho, como é o caso de Michael Haykin, que afirma haverem nele “fortes alusões de uma expiação definida” (Do Céu Cristo Veio Buscá-la, São José dos Campos: Editora Fiel, 2017, p. 153 [versão digital]). Todavia, demonstrarei como não somente o bispo africano e Doutor da Igreja a rejeitou, como a utilizou como recurso retórico contra os hereges pelagianos, estando assim em plena harmonia com o ensino da Igreja Católica.

Desenvolvimento

Santo Agostinho claramente afirmou que toda “a raça humana devia, em um determinado momento, ser redimida pelo precioso sangue”¹ de Jesus (In Evangelium Ioannis Tractatus, VII, 6) e que como “todos [os homens], sem exceção estavam mortos… por todos os mortos, ali morreu o único sem pecado” (A Cidade de Deus. Livro XX, Cap. VI, [1]), não somente pelos predestinados. Além disso, ensinou que Cristo “com justiça julgará o mundo; não uma parte dele, por que não comprou só uma parte, julgará o todo, pois foi pelo todo que pagou o preço”[2] (Exposição no livro de SalmosSalmo 96, XV). Perceba: para o Doutor da Igreja, Nosso Senhor julgará o mundo todo porque, pela sua morte, Ele comprou a todos. Julgará o todo, afinal por causa do todo pagou o preço. Cristo, o “Redentor veio e pagou um preço; derramou o seu sangue e comprou o mundo inteiro”[3] (idem, V).

Sendo assim, se Jesus obteve a redenção de todos na Cruz, comprando-os, por que nem todos se salvam? Santo Agostinho respondeu: “O Deus misericordioso, querendo libertar a todos os homens desta morte, isto é, das eternas penas, com a condição de que não queiram se tornarem em inimigos de si mesmos e não resistam à sua misericórdia, nos enviou seu Filho unigênito” [4] (De Catechizandis Rudibus, XXVI, 52). Em outras palavras, embora Deus tenha tomado a iniciativa, se requer de nossa parte que cooperemos, não resistindo à oferta da graça de Deus. Como nem todos cooperam, se perdem; afinal, como ensina o famoso bispo africano: “O Deus que te criou sem ti, não te salvará em ti” [5] (Sermão 169, XI). Em outra passagem, Sto. Agostinho confirma essa compreensão de sua doutrina: “Portanto, no que diz respeito ao médico, ele vem para curar os enfermos. Aquele que não quer obedecer às recomendações do médico tira sua própria vida. O Salvador veio ao mundo: por que Ele foi chamado de Salvador do mundo, senão para salvar o mundo e não para julga-lo? Se você não quer ser salvo por Ele condenará a si mesmo” [6] (In Evangelium Ioannis Tractatus, XII, 12).

Não surpreendentemente, isso está em plena harmonia com a doutrina da Igreja Católica: “Embora tenha Ele [Jesus] morrido por todos (2 Co 5, 15), não obstante nem todos recebem o benefício de sua morte, mas somente aqueles aos quais é comunicado o merecimento de sua Paixão” (Concílio de Trento, Seção VI, cap. 3).

O Catecismo de São Pio X (Perguntas 111 à 113), por sua vez: “Por quem morreu Jesus Cristo? Jesus Cristo morreu pela salvação de todos os homens, e satisfez por todos. Se Jesus Cristo morreu pela salvação de todos, por que nem todos se salvam? Jesus Cristo morreu por todos, mas nem todos se salvam, porque nem todos O reconhecem, nem todos seguem a sua lei, nem todos se servem dos meios de santificação que nos deixou. Para nos salvarmos não basta que Jesus tenha morrido por nós? Para nos salvarmos não basta que Jesus Cristo tenha morrido por nós, mas é necessário que sejam aplicados, a cada um de nós, o fruto e os merecimentos da sua Paixão e morte, aplicação que se faz, sobretudo, por meios dos Sacramentos, instituídos para este fim pelo mesmo Jesus Cristo; e como muitos ou não recebem os Sacramentos, ou não os recebem com as condições devidas, eles tornam inútil para si próprios a morte de Jesus Cristo.”

Santo Tomás de Aquino arremata: “Embora Cristo, por Sua morte, tenha expiado suficientemente os pecados da humanidade [inteira]… cada um deve buscar os meios de sua própria salvação. A morte de Cristo é uma causa universal de salvação, assim como o pecado do primeiro homem foi como uma causa universal de condenação. Agora, uma causa universal precisa ser aplicada a cada indivíduo, para que este tenha sua parte no efeito da causa
universal. Consequentemente, o efeito do pecado de nosso primeiro pai atinge cada indivíduo por meio da origem carnal: e o efeito da morte de Cristo atinge cada indivíduo por meio da regeneração espiritual, pela qual o homem é unido e incorporado a Cristo. Portanto, cada um deve buscar ser regenerado por Cristo
 e receber as outras coisas nas quais o poder da morte de Cristo é eficaz” (Suma Contra os Gentios, Livro IV, cap. 55, 29)

Uma outra via

É também possível por outro caminho demonstrar que o bispo de Hipona não acreditava que Jesus morreu apenas pelos predestinados, mas pela salvação de toda a humanidade, embora alguns se percam por sua própria culpa e resistência à graça.

Embora muitos afirmem que a doutrina segundo a qual Jesus morreu pela salvação de todos os homens seja “pelagiana”, é fato que o próprio Agostinho atribuía a negação de tal ensino a Pelágio. Em outras palavras, o bispo africano acreditava que, na verdade, era Pelágio quem restrigia o alcance da obra redentora de Cristo.

Sto. Agostinho escreveu: “Os pelagianos dizem que Deus NÃO é salvador, libertador e purificador dos homens de todos tempos” [7] .

Conforme Agostinho, o heresiarca britânico argumentava que todo ser humano nasce em inocência, como Adão, até que adquire culpa e, portanto, necessidade de redenção; isso somente ao chegar na idade da razão. Logo, Deus não necessitaria prover redenção para as crianças que Ele já sabia que morreriam prematuras, nesse estado de inocência.

Contra isso, Agostinho e os agostinianos disseram o seguinte: se Cristo morreu por todos sem exceção, logo Ele morreu por todas as crianças (inclusive pelos infantes que morrem antes de alcançar a idade da razão), e, portanto, estas devem ter — em algum sentido — necessidade de graça, misericórdia e redenção.

Eram os pelagianos, segundo a interpretação do próprio bispo de Hipona, que negavam que Jesus era salvador, purificador e libertador para todos, pois eles ensinavam que Jesus não precisava morrer para salvar as crianças que faleciam tenras e inocentes.

Nas palavras de Agostinho: “[Chamamos de pelagianos] aqueles que não atribuem à graça divina aquela liberdade para a qual fomos chamados, e aos que recusam reconhecer Cristo como Redentor das crianças… estes sim, os chamamos de pelagianos, porque participam de seus erros criminosos.” [8]

Além disso, o importante teólogo africano utilizava um argumento interessante para refutar os pelagianos: Ele dizia que se Cristo havia morrido por todos, sem exceção, então Ele morreu por todas as crianças. E isso prova – contra Pelágio – que todas os infantes já nascem contraindo o pecado original, pois precisam de salvação, e, assim também necessitam do batismo. Não há criança sem pecado original, porque não há criança pela qual Jesus não morreu. Argumenta Santo Agostinho:

“Se um morreu por todos, então todos morreram e por todos Cristo morreu (2 Co 5:14)… Agora, se as crianças não estão incluídas nesta reconciliação e salvação, quem as incluirá no batismo de Cristo? Mas se elas são incluídas, então elas [necessariamente] são contadas como entre os mortos por quem Ele morreu; nem poderiam ser reconciliadas e salvas por Ele, a menos que Ele as redima e não lhes impute seus pecados.” [9]

Conclusão

Finalizo, portanto, com as palavras de um especialista em agostinianismo: “Não obstante a veneração de Agostinho pelo mistério gratuito da Predestinação, manteve sua crença na universalidade da vontade salvifica antecedente de Deus. […] Ninguém pode colocar em dúvidas a doutrina de Agostinho com relação à universalidade da redenção. […] Tão incontestável para ele era [o dogma], que se serviu dele [como argumento] para contestar a limitação geográfica da Igreja crida pelos donatistas e a favor da transmissão universal do pecado original contra os pelagianos” (MORIONES, Francisco. Teologia de San Agustin. BAC,p. 318. [Tradução minha]).

Em suma, como a Igreja Católica constantemente tem ensinado, Agostinho acreditava – contra a doutrina da Expiação Limitada calvinista – que havia uma provisão na morte de Cristo para toda a humanidade, e se alguém se perde, não é por falta de provisão, mas porque livre e tristemente decidiu não aplicar a si mesmo, pela fé, arrependimento e sacramentos, os benefícios dessa morte redentora. Essa é a doutrina da Expiação Ilimitada ou Redenção Geral, a fé dos Pais, a nossa fé.

Notas:

1. Em latim, “… quia noverat pretioso sanguine quandocumque redimendum esse genus
humanum”. [Tradução minha]

2. Cf. SCHAFF, Philip (org.). Nicene and Post-Nicene Fathers Series I – vol. 8. Grand Rapids MI:
Christian Classics Ethereal Library, p. 938. Disponível em:
https://www.ccel.org/ccel/s/schaff/npnf108/cache/npnf108.pdf. [Tradução minha]

3. Idem, p. 934. [Tradução minha]

4. Em latim, “A quo interitu, hoc est, poenis sempiternis Deus misericors volens homines liberare,
si sibi ipsi non sint inimici, et non resistant misericordiae Creatoris sui, misit unigenitum Filium
suum…”. [Tradução minha]

5. Em latim, “Qui ergo fecit te sine te, non te iustificat sine te”. [Tradução minha]

6. Em latim, “Ergo quantum in medico est, sanare venit aegrotum. Ipse se interimit, qui praecepta
medici observare non vult. Venit Salvator ad mundum: quare Salvator dictus est mundi, nisi ut
salvet mundum, non ut iudicet mundum? Salvari non vis ab ipso; ex te iudicaberis”. [Tradução
minha]

7. Em latim, “Pelagiani dicunt Deum non esse omnium aetatum in hominibus mundatorem,
salvatorem, liberatorem” (Contra Duas Epistolas Pelagianorum, Liber Secundus, 2.2. Disponível
em: https://www.augustinus.it/…/cont…/contro_pelagiani_2.htm). [Tradução minha]

8. Em latim, “Pelagianus et Caelestianus vocatur, sed qui libertatem in quam vocati sumus, non
gratiae Dei tribuerit; et qui parvulorum liberatorem Christum negaverit; et qui cuiquam in hac vita
iusto aliquam in dominica oratione petitionem, non propter ipsum dixerit necessariam; ipse
huius erroris accipit nomen, quia errore communicat crimen” (Contra Iulianum, Livro III, 1, 2.
Disponível em: http://www.augustinus.it/…/contro_giuliano_3_libro.htm). [Tradução minha]

9. AGOSTINHO. “A Treatise on the merits and forgiveness of sins, and on the baptism of infants”,
Cap. 44. In: SCHAFF, Philip (org.). Nicene and Post-Nicene Fathers Series 1 – vol. 5. Grand

Rapids MI: Christian Classics Ethereal Library, p. 166. Disponível em:
https://www.ccel.org/ccel/s/schaff/npnf105/cache/npnf105.pdf. [Tradução minha]

Fonte: https://www.veritatis.com.br/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF