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terça-feira, 16 de maio de 2023

Ser e tornar-se irmãos na convivência sociopolítica (2/5)

Ser e tornar-se irmãos | Opus Dei

Ser e tornar-se irmãos na convivência sociopolítica

Uma das novidades mais importantes da encíclica “Fratelli Tutti” é o vínculo que ela postula entre a fraternidade e o bem comum político. Oferecemos o estudo de Maria Aparecida Ferrari, publicado no boletim Romana.

04/05/2023

1. Natureza relacional do bem comum político

O conceito “relacional” aplicado ao bem comum político põe em evidência algo novo em relação aos pressupostos mais difundidos na filosofia e nas ciências sociais. Enquanto nestas o bem comum costuma ser concebido em termos de “propriedade” dos cidadãos ou do Estado, a compreensão relacional o identifica essencialmente como aquela forma de convivência que permite aos sujeitos sociais perseguir seus próprios fins com autonomia e responsabilidade. Deste ponto de vista, o bem comum político consiste no “conjunto das condições da vida social que permitem, tanto às associações como a cada um de seus membros, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição” − e compreende “direitos e deveres que dizem respeito a todo o gênero humano”.

Com base nessa definição, o fim comum, a vida boa na convivência política, é constituído prioritariamente por relações humanas de qualidade, de tal modo que alcançar o bem comum é gerar, preservar e fortalecer as relações que permitem que indivíduos e grupos caminhem livremente para aquele bem de todos que enriquece também o próprio bem particular. Com efeito, das relações humanas derivam os bens necessários à plenitude dos sujeitos sociais, de modo que o bem pessoal e o bem comum são gerados e possuídos conjuntamente, são relacionais.

No pensamento moderno, desenvolveu-se uma compreensão diferente do bem comum político, entendido como um bem coletivo, material, útil, que o Estado deve colocar à disposição de todos os indivíduos. Deste ponto de vista, o “comum” corresponderia essencialmente à soma dos bens individuais ou ao conjunto dos elementos físicos, vantagens, técnicas ou leis que facilitam o progresso material.

Na perspectiva da doutrina social cristã, ao contrário, o bem comum político não pode ser reduzido à esfera dos bens úteis, porque é antes de tudo um bem humano, isto é, uma resposta às exigências fundamentais da dignidade da pessoa, que são o fundamento decisivo, mas também o horizonte ou fim último da convivência. Portanto, o bem comum político vai além do estritamente político, isto é, da ação de governar a cidade, o que implica, por um lado, que nenhuma realidade associativa, nem mesmo a sociedade política como tal, pode alcançar por si só a totalidade dos bens humanos e, por outro, que nenhuma delas pode ser autônoma perante as outras em relação ao bem do ser humano como tal.

Da mesma forma, se o bem comum é sobretudo o vínculo social do qual dependem tanto os fins materiais como os fins racionais ou espirituais, será necessário concluir que o cidadão não encontra a sua realização em si mesmo, mas na interação “com” os outros e “ para” os outros.

A compreensão cristã do bem comum sustenta, com efeito, que as pessoas, individualmente e em associação, assim como a própria sociedade política, são chamadas a pôr em prática aquela “fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra em que cada uma nasceu ou habita” (FT 1).

Não poderia ser de outro modo, pois não é das fábricas, nem da imposição de leis, que procedem certos bens essenciais da convivência, como a paz, a justiça, o amor ao próximo, a gratuidade, o perdão, a proteção do meio ambiente, o amor pelo bem dos outros, o exercício da liberdade orientada para o bem coletivo, a gratidão, a laboriosidade etc. Estes são bens comuns e eminentemente políticos, uma vez que são pessoais e relacionais, e o papel da autoridade política consiste em apoiá-los e, na medida do possível, em promover o tecido de relações em que surgem e crescem. Como? Garantindo e promovendo a liberdade dos indivíduos e grupos. Aí está o precioso serviço específico que o Estado é chamado a prestar à dignidade de cada pessoa e à vida social politicamente organizada. A Fratelli Tutti põe isso em evidência, citando Ricoeur: “de fato, não há vida privada, se não for protegida por uma ordem pública; um lar acolhedor doméstico não tem intimidade se não estiver sob a tutela da legalidade, de um estado de tranquilidade fundado na lei e na força e com a condição de um mínimo de bem-estar garantido pela divisão do trabalho, pelas trocas comerciais, pela justiça social e pela cidadania política” (FT 164).

Assim, fica claro que, na perspectiva da encíclica, os agentes do bem comum político não são apenas os órgãos estatais ou a sociedade civil. O bem comum político é tarefa conjunta das instituições políticas e dos atores sociais, isto é, dos cidadãos e das sociedades intermediárias.

No entanto, na cultura contemporânea é recorrente uma visão muito diferente do bem comum político e da função dos governantes e governados, o que dificulta a prática da fraternidade e sua manutenção no âmbito sociopolítico. Tende-se a relegar o bem comum para o âmbito das funções do Estado, encarregado de instaurar a justiça por meio de leis que garantam claramente a realização dos interesses públicos e de reprimir as condutas antissociais com sanções penais e administrativas. Essa atitude leva a perder de vista a constatação de que as leis civis não são suficientes para garantir a justiça nas relações sociais e políticas, e que a busca do bem comum por meio do endurecimento progressivo dos controles legais gera passividade na sociedade, já que anima os cidadãos a acreditar que o que está indo mal vem de algum defeito ou deficiência nas leis. Além disso, desvia a atenção dos cidadãos da questão mais importante, ou seja, seu próprio dever de se comprometer com o bem comum individualmente ou em união com os outros. Em suma, em vez de estimular a solidariedade, a cooperação fraterna e o espírito de iniciativa nos sujeitos sociais, fomenta a mentalidade do mínimo esforço, do descuido, da indiferença e do descarte, de modo que a atitude socialmente passiva acaba se impondo: “Eu cuido da minha vida, obedeço às leis, pago meus impostos, não faço mal a ninguém; todo o resto, isto é, as necessidades dos outros, é assunto dos governantes”.

A partir desta perspectiva, a convivência sociopolítica é identificada com a dupla vertente de “cidadãos ocupados com os bens privados” e “Estado ocupado com os bens públicos”, combinação que em muitos lugares tem levado o Estado a se apropriar de atividades que são de competência dos cidadãos, como o início e fim da vida, a educação e a escolarização, a saúde e o combate à pobreza. Dessa maneira, formou-se o estado de bem-estar, denunciado na encíclica Centesimus annus. A grande expansão da esfera de intervenção do Estado, recordava São João Paulo II, “levou a constituir, de algum modo, um novo tipo de estado, o Estado do bem-estar”. No esforço por combater as formas de pobreza e privação indignas da pessoa humana, prossegue o documento, “não faltaram excessos e abusos que provocaram, especialmente anos mais recentes, fortes críticas ao Estado do bem-estar, qualificado como ‘Estado assistencial’. As anomalias e defeitos, no Estado assistencial, derivam de uma inadequada compreensão das suas próprias tarefas. Também neste âmbito também se deve respeitar o princípio de subsidiariedade”.

Em oposição a este processo e em consonância com a Fratelli Tutti, devemos observar que, ao contrário, o bem comum ao qual se ordena a vida em sociedade é em si mesmo manifestação e exercício de fraternidade, promoção do bem do próximo que configura o bem pessoal: um horizonte de irmandade em que no ato de facilitar o bem do outro se alcança o próprio bem.

O rosto cívico-político da fraternidade resplandece, portanto, nas ações individuais e sociais que geram o bem comum, ou seja, que promovem as condições vitais e relacionais que permitem a cada um alcançar seus fins com liberdade e responsabilidade. Nesta perspectiva, tudo se converte em uma oportunidade de ser irmão ou irmã.

Maria Aparecida Ferrari* Professora Associada de Ética Aplicada na Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade da Santa Cruz (Roma)

Fonte: https://opusdei.org/pt-br

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF