Ser e tornar-se irmãos na convivência sociopolítica
Uma das
novidades mais importantes da encíclica “Fratelli Tutti” é o vínculo que ela
postula entre a fraternidade e o bem comum político. Oferecemos o estudo de
Maria Aparecida Ferrari, publicado no boletim Romana.
04/05/2023
1. Natureza relacional do bem comum político
O conceito
“relacional” aplicado ao bem comum político põe em evidência algo novo em
relação aos pressupostos mais difundidos na filosofia e nas ciências sociais.
Enquanto nestas o bem comum costuma ser concebido em termos de “propriedade”
dos cidadãos ou do Estado, a compreensão relacional o identifica essencialmente
como aquela forma de convivência que permite aos sujeitos sociais perseguir
seus próprios fins com autonomia e responsabilidade. Deste ponto de vista, o
bem comum político consiste no “conjunto das condições da vida social que
permitem, tanto às associações como a cada um de seus membros, alcançar mais
plena e facilmente a própria perfeição” − e compreende “direitos e deveres que
dizem respeito a todo o gênero humano”.
Com base
nessa definição, o fim comum, a vida boa na convivência política, é constituído
prioritariamente por relações humanas de qualidade, de tal modo que alcançar o
bem comum é gerar, preservar e fortalecer as relações que permitem que
indivíduos e grupos caminhem livremente para aquele bem de todos que
enriquece também o próprio bem particular. Com efeito, das relações humanas
derivam os bens necessários à plenitude dos sujeitos sociais, de modo que o bem
pessoal e o bem comum são gerados e possuídos conjuntamente, são relacionais.
No
pensamento moderno, desenvolveu-se uma compreensão diferente do bem comum
político, entendido como um bem coletivo, material, útil, que o Estado deve
colocar à disposição de todos os indivíduos. Deste ponto de vista, o “comum”
corresponderia essencialmente à soma dos bens individuais ou ao conjunto dos
elementos físicos, vantagens, técnicas ou leis que facilitam o progresso
material.
Na
perspectiva da doutrina social cristã, ao contrário, o bem comum político não
pode ser reduzido à esfera dos bens úteis, porque é antes de tudo um bem humano,
isto é, uma resposta às exigências fundamentais da dignidade da pessoa, que são
o fundamento decisivo, mas também o horizonte ou fim último da convivência.
Portanto, o bem comum político vai além do estritamente político, isto é, da ação
de governar a cidade, o que implica, por um lado, que nenhuma realidade
associativa, nem mesmo a sociedade política como tal, pode alcançar por si só a
totalidade dos bens humanos e, por outro, que nenhuma delas pode ser autônoma
perante as outras em relação ao bem do ser humano como tal.
Da mesma
forma, se o bem comum é sobretudo o vínculo social do qual dependem tanto os
fins materiais como os fins racionais ou espirituais, será necessário concluir
que o cidadão não encontra a sua realização em si mesmo, mas na interação “com”
os outros e “ para” os outros.
A
compreensão cristã do bem comum sustenta, com efeito, que as pessoas,
individualmente e em associação, assim como a própria sociedade política, são
chamadas a pôr em prática aquela “fraternidade aberta, que permite reconhecer,
valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física,
do ponto da terra em que cada uma nasceu ou habita” (FT 1).
Não poderia
ser de outro modo, pois não é das fábricas, nem da imposição de leis, que
procedem certos bens essenciais da convivência, como a paz, a justiça, o amor
ao próximo, a gratuidade, o perdão, a proteção do meio ambiente, o amor pelo
bem dos outros, o exercício da liberdade orientada para o bem coletivo, a
gratidão, a laboriosidade etc. Estes são bens comuns e eminentemente políticos,
uma vez que são pessoais e relacionais, e o papel da autoridade política
consiste em apoiá-los e, na medida do possível, em promover o tecido de
relações em que surgem e crescem. Como? Garantindo e promovendo a liberdade dos
indivíduos e grupos. Aí está o precioso serviço específico que o Estado é
chamado a prestar à dignidade de cada pessoa e à vida social politicamente
organizada. A Fratelli Tutti põe isso em evidência, citando
Ricoeur: “de fato, não há vida privada, se não for protegida por uma ordem
pública; um lar acolhedor doméstico não tem intimidade se não estiver sob a
tutela da legalidade, de um estado de tranquilidade fundado na lei e na força e
com a condição de um mínimo de bem-estar garantido pela divisão do trabalho,
pelas trocas comerciais, pela justiça social e pela cidadania política” (FT
164).
Assim, fica
claro que, na perspectiva da encíclica, os agentes do bem comum político não
são apenas os órgãos estatais ou a sociedade civil. O bem comum político é
tarefa conjunta das instituições políticas e dos atores sociais, isto é, dos
cidadãos e das sociedades intermediárias.
No entanto,
na cultura contemporânea é recorrente uma visão muito diferente do bem comum
político e da função dos governantes e governados, o que dificulta a prática da
fraternidade e sua manutenção no âmbito sociopolítico. Tende-se a relegar o bem
comum para o âmbito das funções do Estado, encarregado de instaurar a justiça
por meio de leis que garantam claramente a realização dos interesses públicos e
de reprimir as condutas antissociais com sanções penais e administrativas. Essa
atitude leva a perder de vista a constatação de que as leis civis não são
suficientes para garantir a justiça nas relações sociais e políticas, e que a
busca do bem comum por meio do endurecimento progressivo dos controles legais
gera passividade na sociedade, já que anima os cidadãos a acreditar que o que
está indo mal vem de algum defeito ou deficiência nas leis. Além disso, desvia
a atenção dos cidadãos da questão mais importante, ou seja, seu próprio dever
de se comprometer com o bem comum individualmente ou em união com os outros. Em
suma, em vez de estimular a solidariedade, a cooperação fraterna e o espírito
de iniciativa nos sujeitos sociais, fomenta a mentalidade do mínimo esforço, do
descuido, da indiferença e do descarte, de modo que a atitude socialmente
passiva acaba se impondo: “Eu cuido da minha vida, obedeço às leis, pago meus
impostos, não faço mal a ninguém; todo o resto, isto é, as necessidades dos
outros, é assunto dos governantes”.
A partir
desta perspectiva, a convivência sociopolítica é identificada com a dupla
vertente de “cidadãos ocupados com os bens privados” e “Estado ocupado com os
bens públicos”, combinação que em muitos lugares tem levado o Estado a se
apropriar de atividades que são de competência dos cidadãos, como o início e
fim da vida, a educação e a escolarização, a saúde e o combate à pobreza. Dessa
maneira, formou-se o estado de bem-estar, denunciado na encíclica Centesimus
annus. A grande expansão da esfera de intervenção do Estado, recordava São
João Paulo II, “levou a constituir, de algum modo, um novo tipo de estado,
o Estado do bem-estar”. No esforço por combater as formas de
pobreza e privação indignas da pessoa humana, prossegue o documento, “não
faltaram excessos e abusos que provocaram, especialmente anos mais recentes,
fortes críticas ao Estado do bem-estar, qualificado como ‘Estado assistencial’.
As anomalias e defeitos, no Estado assistencial, derivam de uma inadequada
compreensão das suas próprias tarefas. Também neste âmbito também se deve
respeitar o princípio de subsidiariedade”.
Em oposição
a este processo e em consonância com a Fratelli Tutti, devemos
observar que, ao contrário, o bem comum ao qual se ordena a vida em sociedade é
em si mesmo manifestação e exercício de fraternidade, promoção do bem do
próximo que configura o bem pessoal: um horizonte de irmandade em que no ato de
facilitar o bem do outro se alcança o próprio bem.
O rosto
cívico-político da fraternidade resplandece, portanto, nas ações individuais e
sociais que geram o bem comum, ou seja, que promovem as condições vitais e
relacionais que permitem a cada um alcançar seus fins com liberdade e
responsabilidade. Nesta perspectiva, tudo se converte em uma oportunidade de
ser irmão ou irmã.
Maria Aparecida Ferrari*
Professora Associada de Ética Aplicada na Faculdade de Filosofia da Pontifícia
Universidade da Santa Cruz (Roma)
Fonte: https://opusdei.org/pt-br
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