Ser e tornar-se irmãos na convivência sociopolítica
Uma das
novidades mais importantes da encíclica “Fratelli Tutti” é o vínculo que ela
postula entre a fraternidade e o bem comum político. Oferecemos o estudo de
Maria Aparecida Ferrari, publicado no boletim Romana.
04/05/2023
2. Fraternidade social, rosto da cidadania política
Se o bem
comum político é gerado pela ação conjunta do Estado e da sociedade civil, é
obrigatório reconhecer que uma parte essencial desse bem comum político é a
idoneidade − competência e propensão − dos cidadãos para a realização do bem
pessoal e social. A ausência deste patrimônio ético torna difícil resistir,
dizer “não”, por exemplo, a benefícios injustos quando é fácil obtê-los,
principalmente se, como se diz com mais ou menos verdade, “todo mundo faz
isso”, ou quando a conduta injusta consegue burlar os sistemas de controle
legal. Em outras palavras, ser agente gerador do bem comum exige do cidadão
algo mais do que a estrita obediência ao sistema jurídico estabelecido: implica
um exercício de liberdade que ultrapassa os limites legais, pois exige
laboriosidade, honestidade, solidariedade, prudência, subsidiariedade,
confiança, temperança etc.
No
exercício da cidadania assim entendida a fraternidade social toma a sua forma,
de modo que quando um cidadão se relaciona com os outros com sentido de
respeito e reciprocidade, desempenha com competência a sua profissão ou as suas
funções, ocupa-se dos interesses comuns..., ele mostra o rosto da fraternidade
no âmbito sociopolítico e, ao fazê-lo, configura o bem comum político em seu
sentido mais autêntico. A Fratelli Tutti ilustra isso
claramente com a parábola do bom samaritano.
Dirigindo-se
aos homens de boa vontade, a todos e cada um dos homens, a encíclica convida a
deixar-se interpelar por esta parábola para além da diversidade das convicções
religiosas (FT 56). Recorda que o relato evangélico os convida a “fazer
ressurgir a nossa vocação de cidadãos do próprio país e do mundo inteiro,
construtores dum novo vínculo social”, e destaca que se trata de “um apelo
sempre novo, embora seja escrito como uma lei fundamental do nosso ser: que a
sociedade se oriente para a busca do bem comum e, a partir deste objetivo,
reconstrua incessantemente a sua ordem política e social, o tecido das suas
relações, o seu projeto humano” (FT 66).
Cada
indivíduo humano encarna de alguma forma, ao longo da sua vida, um ou outro dos
personagens da parábola, mas para efeitos desta reflexão vale a pena centrar-se
naquele aparentemente menos central, o estalajadeiro. Este
personagem, que na exegese habitual muitas vezes passa despercebido, demonstra
ainda melhor do que os outros que cada pessoa, com sua vida simples e normal,
pode viver a fraternidade social de forma estável e de acordo com as suas
peculiaridades no campo da cidadania política.
De fato,
como observa a encíclica, até o bom samaritano “precisou da existência de uma
estalagem que lhe permitisse resolver o que não estava em condições de garantir
sozinho, naquele momento” (FT 165). Assim, na sociedade política, todos –
inclusive o próprio Estado – precisam que os cidadãos e sociedades
intermediárias cumpram a sua tarefa cotidiana nos diversos âmbitos da
convivência e do trabalho profissional. É necessário que todos, em suas relações,
sejam continuamente estalajadeiros e, portanto, irmãos, não só
no acolhimento e no cuidado do outro na família e nas várias comunidades
fundadas na amizade e na confiança, mas também nos outros âmbitos de
relacionamento.
Nesse
sentido, as ações propriamente cívicas e políticas são também exercício de
fraternidade, pois se dirigem às pessoas, da mesma forma que todo gesto
fraterno de amor, de cuidado mútuo, é também uma ação cívica e política, pois
constrói verdadeiramente uma sociedade melhor (FT 181). Sem dúvida, na
sociedade política as relações tendem a ser extensas e anônimas, mas isso não
exclui a sua dimensão fraterna. Quem, por exemplo, limpa uma praça − seja como
funcionário municipal ou como usuário desse espaço − ao fazê-lo respeita e cuida
de todos os outros cidadãos, mesmo que não conheçam os seus rostos e não tenham
uma relação direta específica com eles; exerce a amizade cívica, o amor social
ou a fraternidade social, ou seja, aquela relação de benevolência (querer o bem
do outro) baseada na coparticipação e na responsabilidade comum pelo bem
público. Exerce assim uma fraternidade que pode evoluir para uma virtude
social, uma disposição firme e habitual de agir sempre no respeito-promoção do
bem dos outros; uma virtude que, por sua vez, pode gerar inúmeras formas de
solidariedade. À medida que se estenda mais para o ambiente social, essa
conduta solidária também ajudará a construir a cultura de toda a cidade.
O exercício
da fraternidade social traduz-se, assim, na personificação do estalajadeiro no
cotidiano nas diversas áreas de relacionamento: respeitar as regras de trânsito
ao dirigir, pagar impostos, realizar o trabalho com responsabilidade e
eficiência, não admitir práticas ilícitas (“subornos” , corrupção etc.) em
benefício próprio ou alheio, dar importância às boas maneiras, comportar-se
honestamente em todas as situações, usar a inteligência criativa para atender
às necessidades próprias e alheias.
Maria Aparecida Ferrari*
Professora Associada de Ética Aplicada na Faculdade de Filosofia da Pontifícia
Universidade da Santa Cruz (Roma)
Fonte: https://opusdei.org/pt-br
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