Ser e tornar-se irmãos na convivência sociopolítica
Uma das
novidades mais importantes da encíclica “Fratelli Tutti” é o vínculo que ela
postula entre a fraternidade e o bem comum político. Oferecemos o estudo de
Maria Aparecida Ferrari, publicado no boletim Romana.
04/05/2023
3. Fecundidade para toda a sociedade
Se todos
podem ou devem ser estalajadeiros nas relações sociais, parece
pertinente, além de focar nos personagens, refazer a pergunta da qual nasceu a
parábola do samaritano, substituindo “quem é meu irmão?” por “quem é meu irmão
na convivência sociopolítica?”. Claro, podemos responder: “aquele que tem fome,
sede, está nu, está na prisão ou está doente”. Mas, sendo verdadeira, essa
resposta também é incompleta, pois o outro não é meu irmão só porque precisa ou
só quando está desamparado. A fraternidade social consiste na disponibilidade
de cada um para com o outro em qualquer situação; designa a capacidade de
cultivar sempre a sensibilidade para com o seu bem e as suas necessidades e
transformá-la num apoio eficaz. Trata-se, portanto, de colocar a pessoa do
outro em primeiro plano, e não as suas necessidades, reconhecendo nele um
irmão, uma pessoa que constantemente merece a disposição de todos de dar e
dar-se livremente.
Nesse amplo
exercício de fraternidade, a maioria dos cidadãos assume o papel de estalajadeiros,
mantendo o anonimato. Realizam as suas tarefas cotidianas – como estalajadeiros
de profissão – sem fazer barulho, e assim realizam o bem comum político. Nesta
multidão de estalajadeiros, cada um, mesmo sem pôr sua
assinatura no que faz, torna-se, de fato, irmão/irmã de todas as
pessoas. O título da parábola que estamos comentando é “parábola do bom
samaritano”, mas seria igualmente correto chamá-la de “parábola do estalajadeiro”.
Como no relato de Jesus, os estalajadeiros de todos os tempos
e de todas as sociedades políticas passam quase despercebidos, apesar de
prestarem um serviço essencial a todos: aos que encarnam o bom samaritano, aos
que encarnam o ferido, e igualmente, de forma mais geral, para o bom
funcionamento da sociedade como um todo.
Por isso,
refletir sobre a figura do estalajadeiro nos abre para uma maior compreensão da
advertência do Papa Francisco: “Não devemos esperar tudo daqueles que nos governam
[…]. Gozamos dum espaço de corresponsabilidade capaz de iniciar e gerar novos
processos e transformações. Sejamos parte ativa na reabilitação e apoio das
sociedades feridas. Hoje temos à nossa frente a grande ocasião de expressar o
nosso ser irmãos” (FT 77).
“Espaço de
corresponsabilidade” e “grande ocasião”, porque a maior parte do que constitui
o bem comum político é obra de cidadãos que atuam como estalajadeiros,
embora às vezes também devam personificar o bom samaritano. A leitura mais
frequente da parábola centra-se no ato admirável deste último, e apenas em
algumas ocasiões se explicita que cuidar dos feridos é também tarefa do
estalajadeiro. Na verdade, porém, foi este personagem quem fez a maior parte do
trabalho, e o fez simplesmente cumprindo seu dever profissional, sem a
pretensão de aparecer na mídia ou nas redes sociais, como diríamos hoje. O
estalajadeiro foi irmão do bom samaritano e do ferido no desempenho de seu
trabalho.
Consideremos,
por outro lado, que os estalajadeiros não costumam agir
sozinhos, mas estão inseridos no seu próprio dinamismo relacional e orientados
para o bem de todos. Consciente ou inconscientemente, distinguem em suas
tarefas oportunidades mais ou menos diretas, mais ou menos evidentes de prestar
um serviço, de exercer a fraternidade, e também de nela envolver os outros,
como adverte o Papa Francisco − “não o façamos sozinhos, individualmente”− ao
observar que “o samaritano procurou um estalajadeiro que pudesse cuidar daquele
homem” (FT 78). De fato, sem o trabalho bem feito do estalajadeiro, ele não
teria podido cumprir o seu trabalho de cuidar do homem sofredor, assim como o
estalajadeiro não teria podido cumprir o compromisso que assumiu sem o trabalho
dos que dirigiam a pousada com ele.
Concretamente,
a profissão ou ofício − e em geral qualquer atividade de serviço − representa
para cada cidadão uma via privilegiada de fraternidade social e cívica, já que
constitui uma contínua oportunidade de agir com retidão, promovendo
efetivamente a justiça, a solidariedade e o bem dos outros. Como o samaritano
prestou um serviço e “partiu sem esperar reconhecimentos nem agradecimentos”,
os estalajadeiros do mundo exercem, na rotina diária da sua
vida e em seu trabalho a responsabilidade para com esse “ferido que é o nosso
povo e todos os povos da terra”. Do seu lugar na sociedade − do seu papel
de estalajadeiros − dão uma resposta pessoal e objetiva às
necessidades dos outros, respondem ao apelo do Papa Francisco: “Cuidemos da
fragilidade de cada homem, de cada mulher, de cada criança e de cada idoso, com
aquela atitude solidária e atenta, a atitude de proximidade do Bom Samaritano”
(FT 79).
Em projeção fecunda, esta atitude pode transformar toda a cidade terrena, como fermento misturado na massa (Mt 13,33), porque, como diz o Papa Francisco, retomando o Compêndio da doutrina social da Igreja, o amor social é uma “força capaz de suscitar novas vias para enfrentar os problemas do mundo de hoje e renovar profundamente, desde o interior, as estruturas, organizações sociais, ordenamentos jurídicos” (FT 183).
Maria Aparecida Ferrari* Professora Associada de Ética Aplicada na Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade da Santa Cruz (Roma)
https://opusdei.org/pt-br
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