Joseph Ratzinger (30Giorni) |
Arquivo 30Dias - 06/2003
“A fé exige o realismo do acontecimento”
“A opinião de que a fé, enquanto tal, não conhece absolutamente nada dos fatos históricos e deve deixar tudo isso aos historiadores, é gnosticismo: esta opinião desencarna a fé e a reduz a pura idéia. Para a fé que se baseia na Bíblia é, ao contrário, exigência constitutiva precisamente o realismo do acontecimento. Um Deus que não pode intervir na história nem mostrar-se nela não é o Deus da Bíblia”. O discurso do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé por ocasião do centenário da constituição da Pontifícia Comissão Bíblica.
de Joseph Ratzinger
A ferida de 1912 nunca desapareceu totalmente, apesar de ele poder agora
ensinar a sua matéria praticamente sem problemas e de ser apoiado pelo
entusiasmo dos seus estudantes, aos quais conseguia transmitir a sua paixão
pelo Novo Testamento e uma correta interpretação deste. De vez em quando, nas
suas lições vinham-lhe em mente recordações do passado. Ainda me recordo
sobretudo de uma expressão que ele pronunciou em 1948 ou em 1949. Disse que já
podia seguir livremente a sua consciência de historiador, mas que ainda não se
tinha chegado à completa liberdade da exegese que ele sonhava. Disse também que
provavelmente não teria chegado a ver isto, mas que pelo menos, como Moisés no
Monte Nebo, desejava poder lançar o olhar sobre a Terra Prometida de uma exegese
livre de qualquer forma de controle e condicionamento do Magistério. Sentimos
que no coração deste homem culto, que levava uma vida sacerdotal exemplar,
fundada na fé da Igreja, pesava não só aquele decreto da Congregação
Consistorial, mas que também os vários decretos da Comissão Bíblica – sobre a
autenticidade moisaica do Pentateuco (1906), sobre o caráter histórico dos
primeiros três capítulos do Gênesis (1909), sobre autores e sobre a época de
composição dos Salmos (1910), sobre Marcos e Lucas (1912), sobre a questão
sinóptica (1912), e assim por diante – impediam o seu trabalho de exegeta com
obstáculos que ele considerava indevidos. Ainda persistia a impressão de que os
exegetas católicos, devido a estas decisões magisteriais, fossem impedidos de
desempenhar um trabalho científico sem restrições, e que desta forma a exegese
católica, em relação à protestante, nunca pudesse estar completamente ao nível
dos tempos e a sua seriedade científica fosse, de certa forma e com razão,
posta em dúvida pelos protestantes. Naturalmente influía também a convicção de
que um trabalho rigorosamente histórico fosse capaz de certificar de maneira
credível os dados de fato objetivos da história, aliás, que este fosse o único
caminho possível para compreender no seu sentido próprio os livros bíblicos, os
quais, precisamente, são livros históricos. Dava por certa a credibilidade e a
inequivocabilidade do método histórico; não lhe vinha minimamente nem sequer a
idéia de que também neste método entrassem em jogo pressupostos filosóficos e
que pudesse ser necessária uma reflexão sobre as implicações filosóficas do
método histórico. Para ele, como para muitos colegas seus, a filosofia parecia
um elemento que incomodava, algo que só podia poluir a objetividade pura do
trabalho histórico. Não se lhe perspectivava a questão hermenêutica, ou seja,
não se interrogava em que medida o horizonte de quem pergunta determine o
acesso ao texto, tornando necessário esclarecer, antes de tudo, qual é o método
justo de perguntar e de que forma é possível purificar o próprio perguntar.
Precisamente por isto, o Monte Nebo teria certamente reservado algumas
surpresas totalmente fora do seu horizonte.
Agora gostaria de tentar subir, por assim dizer, com ele ao Monte Nebo para
observar, a partir da perspectiva de então, a terra que atravessamos nos
últimos cinqüenta anos. A respeito disto, poderia ser útil recordar a
experiência de Moisés. O capítulo 3º do Deuteronômio descreve como no Monte
Nebo é concedido a Moisés lançar um olhar sobre a Terra Prometida, que ele vê
em toda a sua extensão. O olhar que lhe é concedido é, por assim dizer, um
olhar puramente geográfico e não histórico. Contudo, poder-se-ia dizer que o
capítulo 28 do mesmo livro apresenta um olhar não sobre a geografia mas sobre a
história futura, na e com a Terra, e que aquele capítulo oferece uma
perspectiva muito diferente, muito menos confortadora: “O Senhor dispersar-te-á
entre todos os povos de uma extremidade à outra da terra... E, até no meio
dessas nações, não encontrarás repouso nem ponto de apoio para a planta dos
teus pés” (Dt 28, 64s). Poder-se-ia resumir o que Moisés via
nesta visão interior da seguinte forma: a liberdade pode destruir-se a si
mesma; quando perde o seu critério intrínseco suprime-se a si mesma.
O discurso do cardeal Ratzinger
foi pronunciado em língua italiana
no Augustinianum em 29 de abril de 2003.
Fonte: http://www.30giorni.it/
Nenhum comentário:
Postar um comentário