Arquivo 30Dias - 06/2003
“A fé exige o realismo do acontecimento”
“A opinião de que a fé, enquanto tal, não conhece absolutamente nada dos fatos históricos e deve deixar tudo isso aos historiadores, é gnosticismo: esta opinião desencarna a fé e a reduz a pura idéia. Para a fé que se baseia na Bíblia é, ao contrário, exigência constitutiva precisamente o realismo do acontecimento. Um Deus que não pode intervir na história nem mostrar-se nela não é o Deus da Bíblia”. O discurso do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé por ocasião do centenário da constituição da Pontifícia Comissão Bíblica.
de Joseph Ratzinger
Chegamos assim à segunda e conclusiva questão: como devemos avaliar, hoje, os primeiros cinqüenta anos da Comissão Bíblica? Tudo foi, apenas, um trágico condicionamento da liberdade da teologia, um conjunto de erros dos quais nos devemos libertar nos segundos cinqüenta anos da Comissão, ou não devemos, ao contrário, considerar este difícil processo de maneira mais pormenorizada? Que as coisas não sejam tão simples, como pareceu nos primeiros entusiasmos do começo do Concílio, é evidenciado por quanto já dissemos. Permanece uma verdade que o Magistério, com as decisões citadas, alargou demasiado o âmbito das certezas que a fé pode garantir; por isso permanece uma verdade, que assim foi diminuída a credibilidade do Magistério e limitado de modo excessivo o espaço necessário para as investigações e para as interrogações exegéticas. Mas é de igual modo verdadeiro, no que se refere à interpretação da Escritura, que a fé tem a sua palavra a dizer e que, por conseguinte, também os Pastores são chamados a corrigir, quando se perde de vista a natureza particular deste livro e uma objetividade, que é pura só na aparência, faz desaparecer aquilo que a Sagrada Escritura tem de seu e de específico. Portanto, foi indispensável uma profunda investigação, para que a Bíblia tivesse a sua justa hermenêutica e a exegese histórico-crítica o seu justo lugar.
Parece-me que se podem distinguir dois níveis do problema, que na época estava
em questão, e hoje também. Num primeiro nível, devemos perguntar-nos até onde
chega a dimensão meramente histórica da Bíblia e onde começa a sua
especificidade, que a mera racionalidade histórica não alcança. Também se
poderia formular como um problema interno do próprio método histórico: que pode
fazer ele na realidade e quais são os seus limites intrínsecos? Quais são as
outras modalidades de compreensão necessárias para um texto deste gênero? A
investigação pormenorizada que se deve empreender pode ser comparada, num certo
sentido, ao trabalho que o caso Galileu exigiu. Até aquele momento parecia que
a visão geocêntrica do mundo estava ligada de maneira inextrincável ao que era
revelado pela Bíblia; parecia que quem estava a favor da visão heliocêntrica do
mundo atacava o núcleo da Revelação. A relação entre a aparência externa e a
verdadeira e própria mensagem do todo devia ser revista profundamente, e só
lentamente se poderiam elaborar os critérios que teriam permitido pôr numa
justa relação entre si a racionalidade científica e a mensagem específica da
Bíblia. Sem dúvida, a tensão não pode ser considerada totalmente resolvida,
porque a fé testemunhada pela Bíblia inclui também o mundo material, afirma
algo também sobre ele, sobre a sua origem e sobre a origem do homem em
particular. Reduzir toda a realidade do modo como nos vem ao encontro a meras causas
materiais, confinar o Espírito criador na esfera da mera subjetividade, é
inconciliável com a mensagem fundamental da Bíblia. Mas isto exige um debate
sobre a própria natureza da verdadeira racionalidade; dado que, se se apresenta
uma explicação meramente materialista da realidade como única e possível
expressão da racionalidade, então a própria racionalidade é compreendida de
maneira falsa. Deve-se afirmar algo análogo no que se refere à história. Num
primeiro momento parecia indispensável, para a credibilidade da Escritura e,
portanto, para a fé fundada sobre ela, que o Pentateuco devesse ser atribuído
indiscutivelmente a Moisés ou que os autores de cada um dos Evangelhos tivessem
que ser verdadeiramente os que foram nomeados pela Tradição. Também aqui era
necessário, por assim dizer, definir de novo lentamente os âmbitos; a relação
fundamental entre fé e história devia ser novamente pensada. Um semelhante
esclarecimento não era uma empresa que se pudesse fazer de um dia para outro.
Também nisto haverá sempre espaço para o debate. A opinião de que a fé,
enquanto tal, não conhece absolutamente nada dos fatos históricos e deve deixar
tudo isto aos historiadores, é gnosticismo: esta opinião desencarna a fé e a
reduz a pura idéia. Para a fé que se baseia na Bíblia é, ao contrário,
exigência constitutiva precisamente o realismo do acontecimento. Um Deus que
não pode intervir na história nem mostrar-se nela não é o Deus da Bíblia. Por
isso, a realidade do nascimento de Jesus da Virgem Maria, a efetiva instituição
da Eucaristia por parte de Jesus na Última Ceia, a sua ressurreição corporal
dos mortos – este é o significado do sepulcro vazio – são elementos da fé
enquanto tal, que ela pode e deve defender contra uma só presumível melhor
consciência histórica. Que Jesus em tudo o que é essencial tenha sido
efetivamente aquele que nos mostram os Evangelhos, não é de modo algum um
pressuposto histórico, mas um dado de fé. Objeções que nos queiram convencer do
contrário não são expressão de um efetivo conhecimento científico, mas são uma
sobre avaliação arbitrária do método. Que, porém, muitas questões nos seus
particulares devem permanecer abertas e ser confiadas a uma interpretação
consciente das suas responsabilidades é o que, entretanto, aprendemos.
É sem dúvida compreensível que os teólogos católicos, na época em que as
decisões da Comissão Bíblica de então lhes impediam uma mera aplicação do
método histórico-crítico, olhassem com inveja para os teólogos evangélicos, os
quais, entretanto, com a seriedade da sua investigação, estavam em condições de
apresentar resultados e aquisições novas sobre como esta literatura, que nós
chamamos Bíblia, tenha nascido e crescido ao longo do caminho do povo de Deus.
Mas com isto não era considerado suficientemente o fato de que na teologia
protestante se tinha o problema oposto. É o que se vê de maneira clara, por
exemplo, na conferência realizada em 1936 pelo grande aluno de Bultmann, que
mais tarde se converteu ao catolicismo, Heinrich Schlier, sobre a
responsabilidade eclesial do estudante de teologia....
O
discurso do cardeal Ratzinger
foi pronunciado em língua italiana
no Augustinianum em 29 de abril de 2003.
Fonte: http://www.30giorni.it/
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