Muito humanos, muito divinos: Para dar o melhor de
si mesmo
As virtudes
dão brilho a nossa personalidade e nos fazem flexíveis para descobrir o bem nas
diversas situações cotidianas.
05/06/2023
Um poeta
imaginava como as aves das áreas costeiras, sustentadas pela brisa, voam ébrias
pelo gozo de contemplar sempre a espuma do mar e a beleza do céu. Se não temos
a sorte de viver perto do oceano, podemos recordar a impressão que ele causa em
nós toda vez que voltamos lá; não apenas pela amplidão do mar, por suas cores
ou pelo ambiente que gera, mas também por seu som. Já existem, de fato,
inúmeras gravações do som do mar que permitem, de qualquer canto do mundo,
obter um pequeno acesso a esse conjunto de vozes – da água, das rochas, das
aves, da areia – tão revigorantes para quem as escuta. São Josemaria imaginava
as virtudes precisamente como cada um destes sons, de timbre e intensidade tão
distintos, mas que em conjunto formam a música marítima: “Assim como o rumor do
oceano se compõe do ruído de cada uma das ondas, assim a santidade do vosso
apostolado se compõe das virtudes pessoais de cada um de vós”.
Ser
perfeitos não é sermos iguais
São
Jerônimo escreve que “Cristo não ordena coisas impossíveis, mas sim perfeitas”.
Diante disto poderíamos objetar que vemos o perfeito muitas vezes como
impossível. Quem se atreve a dizer a respeito de si mesmo que as suas ações são
“perfeitas”? Os testemunhos dos santos, além disso, vão precisamente na direção
contrária: eles têm, conforme se aproximam da luz de Deus, cada vez mais
consciência de suas imperfeições. A nossa perplexidade aumenta se percebermos
que o trecho do Evangelho ao qual São Jerônimo se refere é precisamente um
mandamento de Jesus: “Sede pois perfeitos, como vosso Pai celestial é perfeito”
(Mt 5, 48). Que mistério escondem estas palavras?
Um primeiro
esclarecimento necessário talvez tenha a ver com a nossa compreensão do que
significa “perfeito”, algo insuperável em sua espécie, algo que não pode ser
melhorado. Aplicada à conduta de uma pessoa, tal ideia de “perfeição” pode
estar tão longe da nossa experiência comum que podemos inclusive sentir certa
repulsa. O sentido mais frequente com que esta palavra é utilizada na Bíblia
tem, no entanto, a ver com algo completo, realizado, que dá tudo o que pode
dar. Entende-se assim melhor que o convite de Cristo a “ser perfeitos” não é o
ponto final de uma lista de critérios a serem cumpridos em todos os âmbitos da
vida, e sim a coroação de um discurso no qual se fala de amar a todos, amigos e
inimigos, como Deus os ama (cfr. Mt. 5, 43-48). “Ser santos não é fazer cada
vez mais coisas ou cumprir certas atividades-padrão que nos tenhamos imposto como
tarefa. O caminho para a santidade, como explica São Paulo, consiste em
corresponder à ação do Espírito Santo, até que Cristo esteja formado em nós
(cfr. Gl 4, 19)”.
Em
continuidade com este sentido de “perfeição”, o Catecismo da Igreja fala das
virtudes humanas indicando em primeiro lugar como a virtude “permite à pessoa
não só praticar atos bons, mas dar o melhor de si”. Assim como, para gerar o
som do mar, unem-se todas as ondas, sempre distintas umas das outras, em uma
vida santa soam em harmonia cada uma das virtudes: juntas, dão forma à melhor
versão de cada um. E assim como não há no mundo duas pessoas iguais, não há
dois modos iguais de conjugar as virtudes. Para fazer-nos santos, quer dizer,
para levar-nos para ele, Deus conta com cada uma de nossas características,
únicas, que ele conhece muito melhor que nós. Cabe a cada um penetrar “no
mistério do projeto único e irrepetível que Deus tem para cada um e que se
realiza em meio aos mais variados contextos e limites”; tornar realidade, com a
graça de Deus e com a nossa liberdade, o filho amado, a filha amada com que o
Senhor sonhou desde a eternidade. Por isso, desde o começo, São Josemaria dizia
àqueles que se aproximavam do Opus Dei: “Deveis ser tão diferentes como
diferentes são os santos do Céu, que têm cada um as suas notas pessoais e
especialíssimas”.
A santidade
é uma roupa sob medida
As
diferentes virtudes não nos ajudam apenas a escolher o bem em vez do mal em uma
ação concreta; isso é bastante, mas ainda pouco. Na verdade, esse domínio sobre
nós mesmos, constituído pelas virtudes, a ordenação das nossas forças para o
amor, leva-nos a escolher o melhor em vez do medíocre. Uma compreensão redutiva
da virtude faz que, às vezes, a vejamos como um compromisso entre dois extremos
negativos, como a metade geométrica entre dois polos que queremos evitar.
Assim, em vez de olhar para cima, preocupamo-nos em não cair no barranco da
direita ou da esquerda. E, no entanto, Deus deu a cada um o seu próprio cume,
que corresponde à paisagem geológica do caminho que seguimos; e nessa paisagem
temos que descobrir tanto os diferentes obstáculos ou perigos que nos espreitam
quanto o terreno em que nossos pés se firmam melhor no solo.
Comentando
a ética aristotélica, São Tomás indica que “o meio para nós é
o que não excede nem falta com a devida proporção para nós. O meio,
por isso, não é o mesmo para todos”. O santo dominicano explica-o com a imagem
do calçado para o qual cada pessoa deve encontrar seu próprio número; o
filósofo grego, por seu lado, serve-se da imagem da comida, no sentido de que
não são igualmente sóbrios um atleta e alguém que mal realiza exercício físico.
Como não existe um modo único de viver as virtudes, não parece um bom caminho
tentar escrever receitas universais para que alguém se transforme numa pessoa
ordenada, generosa ou humilde. Além disso, como Aristóteles também compreendeu,
não se chega a ser virtuoso apenas por realizar externamente uma série de atos,
mas por realizá-los com disposições interiores específicas: “Em primeiro lugar
deve ter conhecimento do que faz; em segundo, deve escolher os atos, e
escolhê-los por eles mesmos; e em terceiro, sua ação deve proceder de um
caráter firme e imutável”. Por isso, se o ambiente em que se formam não
estimula as pessoas a compreenderem o interesse em adquirir tal ou qual
virtude, e a escolher livremente movidas pelo amor, os atos externos que
supostamente seguem na direção dessa virtude, elas correm o risco de estar
atuando em vão.
Uma mulher
simples, deslumbrada pelo fato de que, para tornar-nos santos, o Senhor quer
contar com as características pessoais de cada um, rezava assim: “Faz-nos viver
nossa vida, não como um jogo de xadrez em que tudo é calculado, não como uma
partida na qual tudo é difícil, não como um teorema que nos quebra a cabeça,
mas como uma festa sem fim em que se renova o encontro contigo, como um baile,
como uma dança entre os braços de tua graça”.
Músculos
que se flexionam em qualquer direção
Algo que
indica uma boa forma física é que os músculos têm uma grande elasticidade. Com
exercícios de alongamento e um bom cuidado das articulações, o corpo pode
alcançar posições difíceis inclusive de imaginar. Manter esta flexibilidade
muscular ajuda a evitar problemas causados por uma má postura contínua e reduz
a probabilidade de lesões. Algo análogo acontece com as virtudes na vida
espiritual, e por isso São Josemaria costumava dizer que “a santidade tem a
flexibilidade dos músculos soltos”. Nesse sentido, explica, assim como às vezes
o amor de Deus nos levará a esforçar-nos por fazer algo que nos custa, outras
vezes nos levará a optar por algo mais cômodo e a agradecer-lhe.
Não é
casualidade que a palavra “virtude” provenha do latim virtus, que
significa capacidade ou força, precisamente como os músculos. As virtudes, na
medida em que passaram a formar parte de nós, não nos permitem apenas realizar
os atos bons com gosto e facilidade, como nos tornam flexíveis para adotar a
direção que cada circunstância pode requerer. É verdade que as virtudes levam a
fazer as coisas de modo ordenado; mais profundamente, porém, levam-nos a ser
nós mesmos ordenados, embora alguma vez isso possa não parecer externamente, ou
não seja oportuno fazê-lo de uma determinada forma.
Conta-se
que São Carlos Borromeu, quando era um jovem bispo, tinha fama de ser muito
austero, comia e bebia apenas pão e água, nas quantidades indispensáveis; no
entanto, se isso facilitasse o relacionamento com algumas pessoas, não via
problema em tomar vinho sempre que fosse necessário. “Se nós, os cristãos
atuássemos de outro modo – explicava o fundador do Opus Dei – correríamos
o risco de tornar-nos rígidos, sem vida, como uma boneca de trapos”. Uma das
coisas que, precisamente, chama a atenção sobre as bonecas de pano é que não
podem deixar de sorrir. Todos gostamos de estar rodeados de pessoas alegres,
mas alegres livremente, no momento adequado e na medida adequada, e não por
terem chegado a adotar mecanicamente um determinado comportamento.
São
Francisco de Sales, bem no começo de sua correspondência com aquela que seria
um dia santa Joana de Chantal, advertia-a sobre a possível falta de liberdade
de filha de Deus que poderia experimentar inclusive através de seus anseios de
vida cristã. “Interrompa a meditação de uma alma que se apegou a esse exercício
e verá que ela o faz com pena, ansiosa e amedrontada. Uma alma que tem
verdadeira liberdade terá nesta situação equanimidade no rosto e bondade no
coração face ao inoportuno que a incomodou, porque tudo é a mesma coisa, servir
a Deus meditando ou servi-lo suportando o próximo; ambas as coisas correspondem
à vontade de Deus, suportar, porém, o próximo é necessário naquele momento”.
“Sejam
corajosos!”, animava o Papa Francisco um grupo de jovens poloneses. “O mundo
precisa da sua liberdade de espírito, do seu olhar confiante sobre o futuro, da
sua sede de verdade, de bondade e de beleza”. A força e a flexibilidade que as
virtudes nos dão são como o clamor do oceano que insiste em mostrar-nos sua
novidade e beleza; manifestam, além disso, a nossa docilidade ao Espírito Santo
para que Cristo se forme em nossa alma de um modo único na história. Não é
estranho que o Catecismo fale das virtudes precisamente no capítulo sobre “a
vocação do homem”: por sermos chamados a viver essa vida divina, somos chamados
a levantar o olhar para o horizonte, como aquelas aves costeiras, com a
confiança de que Deus sustenta nossa luta.
[1] São
Josemaria, Caminho, n. 960.
[2] São Jerônimo,
citado na Catena Aurea, comentários a Mt 5, 43-48.
[3] Mons. Fernando
Ocáriz, Carta pastoral 28-X-2020, n. 6.
[4] Catecismo da
Igreja Católica, n. 1803.
[5] Francisco, Gaudete
et exsultate, n. 170.
[6] São
Josemaria, Caminho, n. 947.
[7] Santo Tomás de
Aquino, Comentário a Ética a Nicômaco, Livro II, capítulo VI.
[8] Aristóteles, Ética
a Nicômaco, 1105a-1105b.
[9] Serva de Deus
Madeleine Delbrêl, “O baile da obediência”.
[10] São
Josemaria, Forja, n. 156. Citado por mons. Fernando Ocáriz, Carta
pastoral, 28-X-2020, n. 6.
[11] Cfr. carta de são
Francisco de Sales a baronesa de Chantal, 14-X-1604.
[12] Forja, n.
156.
[13] São Francisco de
Sales, carta a baronesa de Chantal, 14-X-1604.
[14] Francisco,
Mensagem, 15-VIII-2018.
[15] Catecismo da Igreja Católica, Terceira parte, Primeira secção.
Fonte: https://opusdei.org/pt-br
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