A Conversão
Pe. Françoá Rodrigues Figueiredo Costa[1]
I. Introdução. Nossa intenção é apresentar uma reflexão
à luz da fé sobre a conversão cristã. Nessa busca meditativa, a
terceira parte ocupará um espaço mais amplo porque nela se deseja uma
sistematização que abarque o que podemos chamar teologia da conversão.
Não é infrequente no Brasil e em outras partes do mundo ouvir que fulano
ou ciclano se converteu ao catolicismo ou ao protestantismo. Graças a Deus,
acontecem inúmeras conversões no mundo inteiro. Todo discípulo do Senhor, no
qual arde o fogo do seu amor, deseja levar o maior número possível de pessoas
ao encontro com ele, Cristo. Conta-se que quando um determinado casal
participava de uma audiência com João Paulo II em Roma aconteceu o seguinte: o
Papa passou por diante deles e a mulher disse-lhe em voz alta: “Santo Padre,
diga alguma palavra ao meu marido que há dez anos está longe de Deus”. João
Paulo II continuou a caminhar um pouco, depois se deteve, pôs a mão sobre o
ombro do esposo daquela mulher suplicante e disse-lhe em voz baixa e profunda:
“como se está mal longe de Deus!” Aquele homem ficou tão impressionado que
naquele mesmo dia confessou-se e voltou à prática cristã.
Como se está mal longe de Deus! A vida não tem sentido real se não nos
encontramos com Deus. Dizer isto pode causar admiração, mas é verdade. O ser
humano ha sido projetado por Deus. Toda pessoa leva em seu coração um desejo
tal de felicidade que não pode ser satisfeito a não ser na união com seu
Criador e Redentor.
II. Sagrada Escritura. Na
Biblia está claro: para que alguém se converta o mais importante é a ação de
Deus, mas, ao mesmo tempo, ninguém se converte se não quer. No Antigo
Testamento, Israel, o Povo da Aliança, é também o Povo da conversão. É um
povo que volta a Deus que, por sua vez, acolhe o povo arrependido. No Novo
Testamento, conversão e Reino são realidades intimamente relacionadas.
Nas línguas bíblicas, o hebreu utiliza sub –
que significa voltar, regressar – e naham (arrepender-se,
lamentar-se). O grego, utilizou epistréphein y metanoéîn para
traduzir sub no sentido de conversão moral ou religiosa. No
latim bíblico, convertere traduz sub e
correspondentes gregos; poenitere é utilizado para
traduzir metanoéîn com a consequente perda do significado mais
pleno do vocábulo grego, já que poenitere significa uma das
dimensões da conversão e enfatiza mais as obras de penitência.
Todos os términos mencionados são bastante significativos para que
entendamos a noção bíblica de conversão já que todos eles, entrelaçados e em
mútua compenetração, dão essa idéia de retorno, arrependimento, mudança de
rumo; todos eles chamam à volta, à fidelidade e às exigências da própria
pertença a Deus.
Na Sagrada Escritura, existem vários exemplos de conversão: Naaman (cf.
2 Re 5,15), Manassés (cf. 2 Cro 33,12-13), Zaqueu (cf. Lc 19,8-9), a Samaritana
(cf. Jo 4,4-29), os três mil batizados no dia de Pentecostes (cf. At 2,38-41),
o eunuco (cf. At 8, 30ss), Cornélio (cf. At 10,44ss), Paulo (cf. At 9,5ss),
Lídia (cf. At 16,14-15). É certo: conversão, fé e arrependimento são
inseparáveis. A verdadeira conversão – diz G. Piccolo – nasce de uma dor
verdadeira pelo pecado cometido e se manifesta numa vida de devoção a Deus,
surge daí um novo estilo de vida (cf. 2 Cor 5,17).
No Novo Testamento, a palavra epistrépho é
utilizada uma única vez para indicar o regresso de um discípulo que caiu em
pecado, Pedro (cf. Lc 22,32). Os cristãos que pecavam eram exortados à
conversão e ao arrependimento, bem como às obras iniciais queridas por Cristo
(cf. 2 Cor 12,21; Hb 6,1.6; Ap 2,5). Epistréfo e Metanoéîn referem-se
à decisão de voltar a Deus mediante a qual um judeu ou um pagão se une a Deus
em Cristo e recebe a benção escatológica e a remissão dos pecados (cf. Mt 18,3;
At 3,19). Para os escritores do Novo Testamento a conversão representa uma
experiência para ser vivida, a resposta afirmativa do convertido ao Evangelho e
a disponibilidade do homem para a união com Cristo no batismo. A
conversão, segundo a Biblia, é, em primeiro lugar, obra de Dios.
Nessa perspectiva, a missão dos Apóstolos, anunciar a Palavra de Deus,
acompanha a chamada à conversão já que ao anunciar Jesus cristo proclamam
também a necessidade de converter-se e de crer. O batismo é o sacramento que
faz com que o ser humano experimente essa nova realidade (cf. At 2,38). Conversão
também é abandonar o fermento velho para celebrar a Páscoa com os ázimos
da sinceridade (Cf. 1 Cor 5,7s). De fato, na vida do cristão, que sempre está
em processo de conversão, a escuta à Palavra e a recepção dos
Sacramentos têm um papel insubstituível no caminho rumo à santidade. A
esta conversão contínua chamamos “conversões segundas”.
III. Reflexão teológica. Na
vida da Igreja é uma alegria receber novos conversos en seu seio, os novos
filhos da Igreja. Quando a ela os introduz no Mistério de Cristo pelo Batismo
se dá o que a teologia clássica chamou de “justificação”, conceito este muito
próximo ao vocábulo “conversão”.
Para Lutero a justificação era algo que atingiria o
homem de uma maneira externa enquanto que Deus não olharia mais os pecados do
ser humano redimido graças à justiça de Cristo que os encobre; é como se Cristo
estivesse entre o Pai Santo e o homem pecador, mas sem penetrar na
interioridade do ser humano. A teologia católica, ao contrário,
apresenta a justificação – de acordo com o Concilio de Trento – como uma
realidade que toca o mais profundo do ser humano, já que o limpa interiormente
do pecado e dá-lhe uma verdadeira renovação e santificação interior. A chamada
“justificação primeira” seria a que acontece no batismo. Neste sentido, o
Catecismo da Igreja Católica distingue a “conversão primeira”, que se dá no
batismo, e a “segunda conversão”, ou seja, a continua mudança de vida com
vistas à santificação que culmina na escatologia (cf. CEC 1426-1428).
Depois desse encontro inicial, poderíamos dizer que a vida cristã é
uma conversão continuada. O cristão, chamado à santidade, busca a
plenitude de vida, a santificação crescente. Mongillo chamaria esta conversão
permanente de “docilidade ao Espírito que guia no caminho das
bem-aventuranças”. Neste segundo momento, ainda que também naquele inicial (de
pecador a justo), tem uma grande importância a Igreja como lugar donde se
consegue a novidade de vida pela força da Palavra de Deus e dos Sacramentos.
Na mesma línea, Santo Tomás de Aquino fala de uma
“tríplice conversão” ampliando desta maneira o significado do vocábulo em
questão. A conversão inicial é aquela que não pede ainda a existência da graça
santificante, mas somente uma operação de Deus que atrai o pecador a si. A
segunda conversão é a que exige a graça santificante (ou habitual), princípio
do mérito, com vistas à bem-aventurança. A terceira conversão é a do amor
perfeito, a da criatura que já se encontra no céu, para esta terceira é
necessária a graça consumada, ou seja, a glória. Santo Tomás vai ao núcleo da
questão e às fases principais da conversão, mas poderíamos enumerar muitas
outras fases se considerarmos, por exemplo, uma pessoa que passa do paganismo à
glória do céu com diversas etapas religiosas: do paganismo ao monoteísmo, do
monoteísmo ao cristianismo de tipo não católico, de um cristianismo
não-católico ao catolicismo[2],
de católico medíocre (e há tantos!) a católico fervoroso, de católico fervoroso
– que busca a santidade – até a conversão ao céu.
Poder-se-ia afirmar que o homem se salva quando se converte,
considerando a questão desde a liberdade do homem que aceita livremente
o convite de Deus, ou quando é convertido. Conversão é graça de Deus e
ele tem a iniciativa. Conversão e salvação vão juntas (cf. Mc 16,15; At
2,38-40). No que se refere à relação graça-liberdade na conversão, há a
iniciativa de Deus e, ao mesmo tempo, ninguém se converse contra a sua vontade.
Na vida real, na da pessoa que se converte, devemos considerar tudo isso
em diversas perspectivas entrelaçadas. Considerando a atuação da graça de Deus,
podemos falar da conversão desde uma perspectiva dogmática;
considerando as disposições da pessoa, será desde um perspectiva moral
e psicológica; ao considerar a nova vida que se produz no homem podemos
tratar a mesma realidade desde uma perspectiva dogmático-espiritual.
Conversão e fé vão unidas, e contemporaneamente se enfatizou que no processo de
conversão encontra-se a totalidade das dimensões da pessoa. Sendo assim, é
preciso integrar em nossa consideração a dimensão intelectual, volitiva,
espiritual, moral etc.
Não é necessário dizer muito mais para intuir uma possível classificação
das conversões, segundo o elemento que mais esteja presente no processo que
leva uma pessoa a decidir-se por responder afirmativamente ao chamado de Deus.
Existem conversões intelectuais, enquanto que o elemento que mais
se destaca é a busca da verdade por meio do estudo, principalmente; nas conversões
morais, o que mais fica patente é o desejo de um ideal mais elevado na
própria conduta; nas conversões emocionais, há uma forte sacudida
emocional e eficaz ao mesmo tempo.
Há também os chamados itinerários de conversão ou caminhos
de conversão, que considerados teologicamente levam-nos a sistematizar
certos elementos presentes, de uma maneira ou outra, em todo itinerário rumo à
fé. Para que a decisão de crer esteja arraigada na realidade, estão os preâmbulos
da fé, que são verdades religiosas ou morais conhecidas pela razão natural:
existência de Deus, imortalidade da alma etc. Já que ninguém pode crer sem um
prévio conhecimento do que “deve” crer, está a pregação do Evangelho,
à qual uma pessoa pode responder afirmativamente (fé) ou negativamente. Dado
que o ser humano encontra-se aberto à transcendência e é um ser contingente
(não necessário), dá-se o que podemos chamar pergunta pelo sentido da
vida, que exige o interrogar-se sobre a questão “Deus”. Um momento fundamental
do processo de conversão se dá na busca das razões para crer.
Finalmente, a percepção pessoal da bondade e do dever de crer culmina
este processo teológico da conversão já que aqui se da uma relação essencial
entre fé e fim último do homem. Al falar do dever de crer não
se pense, no entanto, em assentimento obrigatório, a pessoa sempre é livre para
crer ou não, referimo-nos à percepção da necessidade de crer “para mim”.
Ao concluir, gostaria de ressaltar que, ainda que falemos de tantos
processos, a conversão é, em definitiva, obra da graça de Deus e resposta livre
do homem. Estas duas coordenadas nos dão os elementos para que façamos nossa
reflexão, que foi que o que buscamos nas presentes considerações. Um elemento
importantíssimo: cada conversão é uma história pessoal; daí a dificuldade para
sistematizar os elementos da conversão.
IV. Conclusão. Como se está mal longe de Deus! As vezes
as pessoas vão por aí como “Joãozinho feliz”, assim se expressava Joseph
Ratzinger em sua “Introdução ao Cristianismo”. Joãozinho feliz, “como ele
achasse por demais pesada e incômoda a barra de ouro que ganhara, trocou-a
primeiro por um cavalo, depois trocou o cavalo por uma vaca, a vaca por um
ganso e o ganso por uma pedra de amolar e mesmo esta ele acabou lançando na
água, pois não se dava tento do prejuízo, pelo contrário: achava que tinha
ganho, finalmente, o dom precioso da liberdade completa”[3].
Quantas pessoas trocam a barra de ouro do encontro com Deus e da vida nova em
Cristo por uma suposta liberdade mal entendida! Essa historinha dá para pensar
mais, deixo-a nas mãos do leitor.
[1] Para o presente estudo foram utilizados
os seguintes artigos e dicionários (bibliografia resumida): D. MONGILLO, Dizionario
di Omiletica 1998, 332-335; J. ALONSO, Diccionario de Teología 2006,
181-187; A. WENIN, Diccionario Akal Crítico de Teología 2007,
309-311; G. PICCOLO, Dizionario di teologia evangélica 2007,
147-148; L. M. FERNÁNDEZ, Diccionario Teológico del Catecismo de la
Iglesia Católica 2004, 70-71; X. PIKAZA, Diccionario de la
Biblia, Historia y Palabra 2007, 233.
[2] Neste caso se adverte que a palavra
“conversão” não é a mais correta, já que é o batismo que introduz na Igreja de
Cristo que subsite na Igreja Católica (cf. Constituição Dogmática Lumen
Gentium, nº 8); quando um cristão não-católico quer fazer-se católico a
Igreja fala de “entrar em plena comunhão com a Igreja Católica”. Isso é muito
importante para o ecumenismo e sem dúvida poderia ser matéria para uma futura
reflexão.
[3] Joseph RATZINGER, Introdução ao Cristianismo, São Paulo: Loyola, 2005, p. 25.
Fonte: https://presbiteros.org.br/
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