Celibato eclesiástico: História e fundamentos teológicos.
CARD. Alfons M. Stickler
1.
Orientações para a investigação sobre a origem
e desenvolvimento do celibato eclesiástico
O segundo pressuposto para alcançar um conhecimento correto da origem e
do desenvolvimento do celibato eclesiástico – ao que podemos chamar
simplesmente “continência” sexual, uma vez esclarecido o seu significado – é
tanto mais importante quanto melhor advertimos a variedade de opiniões sobre a
origem e primeiro desenvolvimento da obrigação de continência, e pode ser
explicado pelo fato do método justo de investigar e expor a questão não ser
observado.
Deve-se notar aqui que, em geral, cada campo científico tem a sua
própria autonomia em relação aos demais, com base no seu objeto próprio e no
método postulado por ele. É verdade que na investigação científica sobre ciências
relacionadas existem regras comuns que devem ser observadas. Por exemplo, em
uma investigação de caráter histórico não se pode prescindir da regra que
prescreve uma crítica preliminar das fontes, que determine a autenticidade e a
integridade destas, para se ocupar depois do seu valor intrínseco sobre essa
base, ou seja, sobre sua credibilidade e valor demonstrativo.
Neste contexto, é absolutamente necessária a capacidade e a vontade
de compreender e utilizar adequadamente documentos e o seu conteúdo. Somente
sobre essa base segura – autenticidade, integridade, credibilidade e valor – se
pode desenvolver uma adequada hermenêutica ou interpretação das fontes.
Junto a esses pressupostos metodológicos gerais, é necessário também
aplicar a metodologia especificamente requerida por cada ciência. A
historiografia filosófica competente, por exemplo, exige um conhecimento
adequado da filosofia, bem como a historiografia teológica pressupõe o
conhecimento da teologia e a historiografia da medicina ou da matemática
requerem um conhecimento suficiente destas ciências. Do mesmo modo, na
historiografia jurídica não pode faltar o conhecimento do Direito e das suas
exigências metodológicas próprias.
De acordo com o dito, deve-se ter em conta que a história do celibato
eclesiástico implica, em seu conteúdo e desenvolvimento, o Direito e a Teologia
da Igreja. Por isso, se queremos fazer uma boa hermenêutica dos testemunhos
históricos (fatos e documentos), não se pode prescindir do método próprio do
Direito Canônico e da Teologia. O significado e a necessidade destas
observações, que à primeira vista podem parecer abstratas, serão evidentes ao
aplicá-las de modo concreto à questão que agora estudamos.
2.
Raízes do recente debate sobre as origens do
celibato
No final do século passado tivemos uma áspera discussão sobre a origem
do celibato eclesiástico, ainda recordada e influente. Gustav Bickell, filho de
um jurista e ele mesmo orientalista, atribuía a origem do celibato a uma
disposição apostólica, apoiando-se principalmente em testemunhos orientais.
Respondeu-lhe Franz X. Funk, conhecido estudioso da história eclesiástica
antiga, negando que se pudesse fazer tal afirmação, já que a primeira lei
conhecida sobre o celibato remonta ao início do quarto século. Depois de um
duplo confronto de escritos sobre o assunto, Bickell fez silêncio, enquanto
Funk repetia uma vez mais, sinteticamente, seus resultados, sem receber uma
resposta do seu adversário. Recebeu, pelo contrário, importante consenso de
dois grandes estudiosos, como eram E. F. Vacandard e H. Leclercq. A autoridade
e influência de suas opiniões, difundidas amplamente pelos meios de difusão
(dicionários), concederam à tese de Funk um consenso considerável, que perdura
até hoje.
Considerando o que acabamos de dizer sobre as premissas dos princípios
metodológicos na investigação, deve-se notar que F. X. Funk, ao formular as
suas conclusões não levou em conta, sobretudo, os critérios gerais de
interpretação das fontes, que em um estudioso altamente qualificado, como ele
sem dúvida era, é realmente estranho. Aceitou como bom, e a utilizou como um
dos seus principais argumentos contra a opinião Bickell, a narração espúria
sobre a intervenção do bispo e monge egípcio Pafnucio, no Concílio de Nicéia em
325. E isto, ao contrário da crítica básica externa das fontes que, já antes
dele, tinha afirmado repetidamente a não autenticidade deste episódio (o que
está comprovado, como demonstraremos, ao falar, na quarta parte, do Concílio de
Nicéia). Funk cometeu um erro metodológico ainda maior, embora menos culpável,
ao aceitar apenas só a existência de uma obrigação oficial do celibato, que
tenha sido expressa através de uma lei escrita. O mesmo se pode dizer do
historiador da teologia Vacandard e do historiador dos concílios Leclercq.
3.
A transmissão oral do direito
Qualquer historiador do direito sabe que um dos teóricos com mais
autoridade deste século, Hans Kelsen, disse explicitamente que é equivocada a
identificação entre direito e lei, ius et lex. Direito (ius)
é toda norma jurídica obrigatória, tanto se foi dada oralmente e através do
costume, como se já foi expressa por escrito. Lei (lex) é, no entanto,
toda disposição dada por escrito e promulgada de forma legítima.
Uma peculiaridade típica da lei, testemunhada durante toda a sua
história, está na origem dos ordenamentos a partir das tradições orais e da
transmissão de normas consuetudinárias, que lentamente são postas por escrito.
Por exemplo, os romanos, expressão do gênio jurídico mais perfeito, somente
depois de séculos tiveram a lei escrita das Doze Tábuas, por razões
sociológicas. Todos os povos germânicos escreveram seus ordenamentos jurídicos
populares e consuetudinários depois de muitos séculos desde a sua existência. O
direito desses povos era, até então, não escrito e só eram transmitidos
oralmente. Ninguém se atreveria a afirmar, contudo, que por isso tal ius não
fosse obrigatório e que sua observância estivesse deixada ao livre arbítrio de
cada indivíduo.
Como em qualquer ordenamento jurídico próprio de grandes comunidades, o
da jovem da Igreja foi, em grande medida, as disposições e obrigações
transmitidas apenas oralmente; ainda mais quando – durante os três séculos de
perseguição (embora intermitente) – dificilmente poderiam ter sido fixadas as
leis por escrito. De qualquer maneira, a Igreja possuía já por escrito alguns
elementos de direito primitivo, e em maior medida de que outras sociedades
jovens. Uma prova disto nos dá a Sagrada Escritura. São Paulo escreve, na
verdade, em sua segunda carta aos Tessalonicenses (2, 15) estas palavras:
“Exorto, pois, irmãos, fiqueis firmes e guardai as tradições que haveis
aprendido, tanto oralmente, tanto através de nossas Cartas”.
Estes se referem, sem dúvida, a disposições obrigatórias expedidas não
apenas por escrito, como foi expressamente afirmado, mas também ensinadas
apenas oralmente e assim transmitidas. Então, quem somente admitisse
disposições obrigatórias as que podem ser encontradas nas leis escritas, não
estaria fazendo justiça ao método de conhecimento próprio da história dos
ordenamentos jurídicos.
4.
Os postulados do dado teológico
O método apropriado para estudar os fundamentos teológicos da
continência do clero deve ter em conta que, além de questões disciplinares e
jurídicas, a continência também está ligada, no caso deles a um carisma
intimamente relacionado com a Igreja e com Cristo. Seu conhecimento e análise
só pode ser feito, conseqüentemente, à luz da revelação e da elaboração
teológica.
Como é agora bem conhecido, a Teologia medieval não se preocupou
muito, nem do modo apropriado, com questões jurídicas e disciplinares, mas se
apropriou das discussões e das conclusões da canonística clássica – também
chamada de “glosadores” – então muito florescente. Os historiadores da Teologia
medieval constataram isto há bastante tempo, e um olhar para a obra do príncipe
do escolástica medieval o confirmando suficientemente. Esta realidade pode ser
considerada também como a principal razão de que a continência do clero não foi
tratada suficientemente, quer dizer, conforme a sua metodologia fundada na
Revelação e nas suas fontes. Embora esta falta tenha sido já reparada em grande
medida, hoje segue sendo necessário um maior aprofundamento nos fundamentos
propriamente teológicos do nosso tema. Na última parte deste trabalho
procuraremos atender a esta exigência tão legítima.
Alfons M. Stickler
Cardeal Diácono de São Giorgio in Velabro
CIDADE DO VATICANO
Tradução para o português:
Pe. Anderson Alves.
Contato: amralves_filo@yahoo.com.br
Fonte:
https://presbiteros.org.br/
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