Celibato eclesiástico: História e fundamentos teológicos
CARD. Alfons M. Stickler
III. DESENVOLVIMENTO DO TEMA DA CONTINÊNCIA NA IGREJA LATINA
Afirmados os pressupostos necessários sobre o conceito e o método de
investigação e exposição, analisaremos em primeiro lugar o tema da continência
dos clérigos na Igreja Latina.
- O Concílio de Elvira
Entre os testemunhos de diversos tipos que interessam para o nosso
assunto, deve ser mencionado em primeiro lugar, o Concílio de Elvira. Na
primeira década do século IV se reuniram bispos e sacerdotes da Igreja da
Espanha, no centro diocesano de Elvira, perto da Granada para colocar sob uma
regulamentação comum as diversas circunscrições eclesiásticas da Espanha,
pertencente à parte ocidental do Império Romano, que gozava sob o governo do
César Constâncio de uma paz religiosa relativamente boa. No período anterior,
durante a perseguição dos cristãos, se havia constatado abusos em mais de um
setor da vida cristã e havia sofrido danos graves na observância da disciplina
eclesiástica. Em 81 cânones conciliares são emanadas disposições relativas às
áreas mais importantes da vida eclesiástica, necessitadas de clarificação e de
renovação, para reafirmar a antiga disciplina e para sancionar novas normas que
se tinham tornado desnecessárias.
O Cânon 33 do Concílio contêm a já conhecida primeira lei sobre o celibato.
Sob a rubrica: “Sobre os bispos e ministros (do altar), que devem ser
continentes com suas esposas”, se encontra o seguinte texto dispositivo: “Se
está de acordo sobre a proibição total, válida para bispos, sacerdotes e
diáconos, ou seja, para todos os clérigos dedicados ao serviço do altar, que
devem se abster de suas esposas e não gerar filhos; quem fizer isto deve ser
excluído do estado clerical”. O cânon 27 já havia insistido na proibição de que
habitassem com os bispos e outros eclesiásticos outras mulheres não
pertencentes à sua família. Só poderiam levar para junto de si uma irmã ou uma
filha consagrada virgem, mas de nenhum modo uma estranha.
Destes primeiros e importantes textos legais se deve deduzir que muitos
dos clérigos maiores da Igreja espanhola de então, talvez inclusive a maior
parte, eram viri probati, quer dizer, homens casados antes de
ser ordenados como diáconos, sacerdotes ou bispos. Todos, entretanto, estavam
obrigados depois de ter recebido a Sagrada Ordenação a renunciar completamente
do uso do matrimonio, quer dizer, à observância de uma perfeita continência. À
luz dos final do Concilio de Elvira, assim como do Direito e da História do
Direito do Império Romano, dotado de uma cultura jurídica que dominava naquela
época também na Espanha, não é possível ver no cânon 33 (junto com o cânon 27)
uma lei nova. Manifesta-se claramente, ao contrário, como uma reação contra a
inobservância, muito estendida, de uma obrigação tradicional e bem conhecida a
que se acrescenta, nesse momento, uma sanção: ou se aceita o cumprimento da
obrigação assumida, ou se renuncia ao estado clerical. A introdução de uma
novidade nesse terreno, com retroatividade geral das sanções frente a direitos
adquiridos desde a Ordenação, teria causado num mundo como aquele, tão imbuído
do respeito ao legal, uma verdadeira tempestade de protestos ante a evidente
violação de um direito. Isto já o havia percebido Pio XI quando, na sua
Encíclica sobre o sacerdócio, afirmou que essa lei escrita supunha uma práxis
precedente.
2. A consciência da tradição do celibato nos
Concílios africanos
Após a importante lei de Elvira deve ser considerada outra ainda mais
importante para o nosso tema, e voltaremos a encontrar logo como ponto-chave de
referência. Trata-se de uma declaração vinculante, formulada no segundo
Concílio africano do ano 390 e repetida nos posteriores, que será
posteriormente incluída no Código dos Cânones das Igrejas africanas (e nos
cânones in causa Apiarii), formalizada no importante Concílio do
ano 419. Sob o título: “que a castidade dos sacerdotes e levitas deve ser
protegida”, o texto afirma: “O bispo Epigônio disse: de acordo com aquilo que o
anterior Concílio afirmou sobre a continência e sobre a castidade, os três
graus que estão ligados pela Ordenação a uma determinada obrigação de
castidade, ou seja, bispos, sacerdotes e diáconos – devem ser instruídos de uma
forma mais completa sobre o seu cumprimento. O bispo Genetlio continuou: como
já mencionado, convêm que os sagrados bispos, os sacerdotes de Deus e os
levitas, ou seja, aqueles que servem nos divinos sacramentos sejam continentes
por completo, para que possam obter sem dificuldades o que pedem ao Senhor;
para que também protejamos o que os Apóstolos ensinaram e é conservado desde
antigamente”. “A isso os bispos responderam unanimemente: estamos todos de
acordo que bispos, sacerdotes e diáconos, guardiães da castidade, se abstenham
também de suas esposas, a fim de que em tudo e por parte de todos os que sirvam
ao altar seja conservada a castidade”.
Desta declaração dos Concílios de Cartago resulta que também na Igreja
africana uma grande parte, talvez a maioria do clero maior, estava casada antes
da ordenação, e que depois dela todos deviam viver em continência. Aqui esta
obrigação é atribuída explicitamente ao sacramento da Ordem recebida e ao
serviço do altar. Também é posta em relação explícita com um ensinamento dos
Apóstolos e com uma observância praticada em todo o tempo passado (antiquitas),
e se conclui com o assentimento unânime de todo o episcopado
africano.
Devido a uma disputa com Roma, que também foi abordada nestas assembleias
conciliares africanas, podemos conhecer em que medida foram conhecidas e
vividas naquela Igreja as tradições da Igreja antiga.
O sacerdote Apiário foi excomungado por seu bispo. Ele apelou para Roma,
onde se aceitou o recurso por referência a algum cânon de Nicéia que
autorizaria tais recursos. Os bispos africanos se declararam solidários com seu
companheiro afirmando que não conheciam tal cânon niceno. Em diversas reuniões
destes bispos, nas que também participaram delegados de Roma, se discutiu este
problema e ainda se conservam os cânones in causa Apiarii. Os
africanos alegavam que na sua relação dos cânones nicenos não aparecia uma
disposição semelhante àquela, e tinham enviado delegados a Alexandria,
Antioquia e Constantinopla para obter a informação pertinente. Mas também lá
não se sabia nada sobre tais cânones. Mais tarde foi esclarecido o erro de
Roma, baseado no fato de que lá se tinha adicionado aos cânones de Nicéia os do
Concílio de Sárdica no ano 342, dedicado também à questão ariana e celebrado
sob o mesmo presidente: o bispo Ósio de Córdoba. Por esse motivo, os cânones
disciplinares de Sárdica foram acrescentados no arquivo de Roma aos de Nicéia,
e todos tinham sido considerados nicenos. Em Sárdica se tinha aprovado aquele
cânon (can. 3). A Igreja africana não teve dificuldade em demonstrar ao Papa Zózimo
a errônea atribuição ao Concílio de Nicéia.
A sessão principal dedicada a esta questão, que foi em 25 maio de 419,
foi presidida por Aurélio, bispo de Cartago. Participavam o legado de Roma,
Faustino de Fermo, com dois presbíteros romanos, Felipe e Acélio, além de 240
bispos africanos entre os quais estava Agostinho de Hipona e Alípio de Tagaste.
O Presidente introduziu o debate com estas palavras: “Temos diante de nós os
exemplares das disposições que nossos Padres trouxeram de Nicéia. Nós as
conservamos em sua forma original e guardamos também os sucessivos decretos
subscritos por nós”. Depois recitaram o Símbolo da fé na Santíssima Trindade,
pronunciado por todos os Padres conciliares.
Em terceiro lugar foi repetido o texto sobre a continência dos clérigos
do Concílio de 390, ao que já aludimos, que então tinha sido recitado por
Epigônio e Genetlio e que agora era pronunciado por Aurélio. O legado papal,
Faustino, sob a rubrica “dos graus da Ordem Sagrada que devem abster-se de suas
esposas”, acrescentou: “estamos de acordo que os bispos, sacerdotes e diáconos,
quer dizer, todos os que tocam os Sacramentos como guardiães da castidade devem
abster-se de suas esposas”. A isso responderam todos os bispos: “estamos de
acordo que a castidade deve ser guardada em tudo e por todos os que servem ao
altar”.
Entre as normas que, tomadas do patrimônio tradicional da Igreja
africana, foram em seguida relidas ou novamente decididas, se encontram no
vigésimo quinto posto um texto do presidente Aurélio: “nós, queridos irmãos,
acrescentamos também que em relação ao que foi dito da incontinência de alguns
clérigos, que eram somente leitores, com suas próprias esposas, se decidiu o
que também noutros Concílios foi confirmado: que os subdiáconos, que tocam os
santos mistérios, e os diáconos, sacerdotes e bispos devem, segundo as normas
vigentes para eles, abster-se da própria esposa e se comportar como se não a
tivesse; e se não se aterem a isso, devem ser afastados do serviço
eclesiástico. Os demais clérigos não estão obrigados até uma idade mais madura.
Depois disso todo o Concílio respondeu: nós confirmamos tudo o que vossa
santidade disse de maneira justa e é santo e agradável a Deus”.
Recolhemos aqui com tanto detalhe este testemunho da Igreja africana do
final do século IV e do começo do século V por causa de sua fundamental
importância. Destes textos de deduz a clara consciência de uma tradição baseada
não somente numa persuasão geral, que ninguém suspeitava, mas também em
documentos bem conservados. Naqueles anos foram encontrados ainda no arquivo da
Igreja africana as atas originais que os Padres tinham trazido do Concílio de
Nicéia. Se houvesse disposições contrárias ao celibato eclesiástico tal e como
o vemos afirmado, tinham sido mencionadas da mesma forma que sucedeu com o erro
ou o descuido da Igreja romana a respeito dos cânones de Sárdica atribuídos a
Nicéia.
Tudo isto mostra também a consciência de uma tradição comum da Igreja
universal, cujas diversas partes guardam uma comunhão viva entre si. O que na
Igreja Africana foi afirmado muito explícita e repetidamente sobre a origem
apostólica e a observância, transmitida desde a Antiguidade, da continência dos
eclesiásticos junto com as sanções aos que a desobedecessem, não teria sido
certamente aceito de modo tão geral e pacífico se não houvesse tido o aval de
ser um fato comumente conhecido. Sobre isso temos ainda testemunhos explícitos
da Igreja Oriental, que teremos oportunidade de analisar.
Alfons M. Stickler
Cardeal Diácono de São Giorgio in Velabro
CIDADE DO VATICANO
Tradução para o português:
Pe. Anderson Alves.
Contato: amralves_filo@yahoo.com.br
Fonte:
https://presbiteros.org.br/
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