Translate

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Celibato eclesiástico: História e fundamentos teológicos (3/15)

Celibato eclesiástico (Presbíteros)

Celibato eclesiástico: História e fundamentos teológicos

CARD. Alfons M. Stickler

III. DESENVOLVIMENTO DO TEMA DA CONTINÊNCIA NA IGREJA LATINA

Afirmados os pressupostos necessários sobre o conceito e o método de investigação e exposição, analisaremos em primeiro lugar o tema da continência dos clérigos na Igreja Latina. 

  1. O Concílio de Elvira

Entre os testemunhos de diversos tipos que interessam para o nosso assunto, deve ser mencionado em primeiro lugar, o Concílio de Elvira. Na primeira década do século IV se reuniram bispos e sacerdotes da Igreja da Espanha, no centro diocesano de Elvira, perto da Granada para colocar sob uma regulamentação comum as diversas circunscrições eclesiásticas da Espanha, pertencente à parte ocidental do Império Romano, que gozava sob o governo do César Constâncio de uma paz religiosa relativamente boa. No período anterior, durante a perseguição dos cristãos, se havia constatado abusos em mais de um setor da vida cristã e havia sofrido danos graves na observância da disciplina eclesiástica. Em 81 cânones conciliares são emanadas disposições relativas às áreas mais importantes da vida eclesiástica, necessitadas de clarificação e de renovação, para reafirmar a antiga disciplina e para sancionar novas normas que se tinham tornado desnecessárias.

O Cânon 33 do Concílio contêm a já conhecida primeira lei sobre o celibato. Sob a rubrica: “Sobre os bispos e ministros (do altar), que devem ser continentes com suas esposas”, se encontra o seguinte texto dispositivo: “Se está de acordo sobre a proibição total, válida para bispos, sacerdotes e diáconos, ou seja, para todos os clérigos dedicados ao serviço do altar, que devem se abster de suas esposas e não gerar filhos; quem fizer isto deve ser excluído do estado clerical”. O cânon 27 já havia insistido na proibição de que habitassem com os bispos e outros eclesiásticos outras mulheres não pertencentes à sua família. Só poderiam levar para junto de si uma irmã ou uma filha consagrada virgem, mas de nenhum modo uma estranha. 

Destes primeiros e importantes textos legais se deve deduzir que muitos dos clérigos maiores da Igreja espanhola de então, talvez inclusive a maior parte, eram viri probati, quer dizer, homens casados antes de ser ordenados como diáconos, sacerdotes ou bispos. Todos, entretanto, estavam obrigados depois de ter recebido a Sagrada Ordenação a renunciar completamente do uso do matrimonio, quer dizer, à observância de uma perfeita continência. À luz dos final do Concilio de Elvira, assim como do Direito e da História do Direito do Império Romano, dotado de uma cultura jurídica que dominava naquela época também na Espanha, não é possível ver no cânon 33 (junto com o cânon 27) uma lei nova. Manifesta-se claramente, ao contrário, como uma reação contra a inobservância, muito estendida, de uma obrigação tradicional e bem conhecida a que se acrescenta, nesse momento, uma sanção: ou se aceita o cumprimento da obrigação assumida, ou se renuncia ao estado clerical. A introdução de uma novidade nesse terreno, com retroatividade geral das sanções frente a direitos adquiridos desde a Ordenação, teria causado num mundo como aquele, tão imbuído do respeito ao legal, uma verdadeira tempestade de protestos ante a evidente violação de um direito. Isto já o havia percebido Pio XI quando, na sua Encíclica sobre o sacerdócio, afirmou que essa lei escrita supunha uma práxis precedente.

         2.  A consciência da tradição do celibato nos Concílios africanos

Após a importante lei de Elvira deve ser considerada outra ainda mais importante para o nosso tema, e voltaremos a encontrar logo como ponto-chave de referência. Trata-se de uma declaração vinculante, formulada no segundo Concílio africano do ano 390 e repetida nos posteriores, que será posteriormente incluída no Código dos Cânones das Igrejas africanas (e nos cânones in causa Apiarii), formalizada no importante Concílio do ano 419. Sob o título: “que a castidade dos sacerdotes e levitas deve ser protegida”, o texto afirma: “O bispo Epigônio disse: de acordo com aquilo que o anterior Concílio afirmou sobre a continência e sobre a castidade, os três graus que estão ligados pela Ordenação a uma determinada obrigação de castidade, ou seja, bispos, sacerdotes e diáconos – devem ser instruídos de uma forma mais completa sobre o seu cumprimento. O bispo Genetlio continuou: como já mencionado, convêm que os sagrados bispos, os sacerdotes de Deus e os levitas, ou seja, aqueles que servem nos divinos sacramentos sejam continentes por completo, para que possam obter sem dificuldades o que pedem ao Senhor; para que também protejamos o que os Apóstolos ensinaram e é conservado desde antigamente”. “A isso os bispos responderam unanimemente: estamos todos de acordo que bispos, sacerdotes e diáconos, guardiães da castidade, se abstenham também de suas esposas, a fim de que em tudo e por parte de todos os que sirvam ao altar seja conservada a castidade”. 

Desta declaração dos Concílios de Cartago resulta que também na Igreja africana uma grande parte, talvez a maioria do clero maior, estava casada antes da ordenação, e que depois dela todos deviam viver em continência. Aqui esta obrigação é atribuída explicitamente ao sacramento da Ordem recebida e ao serviço do altar. Também é posta em relação explícita com um ensinamento dos Apóstolos e com uma observância praticada em todo o tempo passado (antiquitas), e se conclui com o assentimento unânime de todo o episcopado africano.  

Devido a uma disputa com Roma, que também foi abordada nestas assembleias conciliares africanas, podemos conhecer em que medida foram conhecidas e vividas naquela Igreja as tradições da Igreja antiga.

O sacerdote Apiário foi excomungado por seu bispo. Ele apelou para Roma, onde se aceitou o recurso por referência a algum cânon de Nicéia que autorizaria tais recursos. Os bispos africanos se declararam solidários com seu companheiro afirmando que não conheciam tal cânon niceno. Em diversas reuniões destes bispos, nas que também participaram delegados de Roma, se discutiu este problema e ainda se conservam os cânones in causa Apiarii. Os africanos alegavam que na sua relação dos cânones nicenos não aparecia uma disposição semelhante àquela, e tinham enviado delegados a Alexandria, Antioquia e Constantinopla para obter a informação pertinente. Mas também lá não se sabia nada sobre tais cânones. Mais tarde foi esclarecido o erro de Roma, baseado no fato de que lá se tinha adicionado aos cânones de Nicéia os do Concílio de Sárdica no ano 342, dedicado também à questão ariana e celebrado sob o mesmo presidente: o bispo Ósio de Córdoba. Por esse motivo, os cânones disciplinares de Sárdica foram acrescentados no arquivo de Roma aos de Nicéia, e todos tinham sido considerados nicenos. Em Sárdica se tinha aprovado aquele cânon (can. 3). A Igreja africana não teve dificuldade em demonstrar ao Papa Zózimo a errônea atribuição ao Concílio de Nicéia. 

A sessão principal dedicada a esta questão, que foi em 25 maio de 419, foi presidida por Aurélio, bispo de Cartago. Participavam o legado de Roma, Faustino de Fermo, com dois presbíteros romanos, Felipe e Acélio, além de 240 bispos africanos entre os quais estava Agostinho de Hipona e Alípio de Tagaste. O Presidente introduziu o debate com estas palavras: “Temos diante de nós os exemplares das disposições que nossos Padres trouxeram de Nicéia. Nós as conservamos em sua forma original e guardamos também os sucessivos decretos subscritos por nós”. Depois recitaram o Símbolo da fé na Santíssima Trindade, pronunciado por todos os Padres conciliares. 

Em terceiro lugar foi repetido o texto sobre a continência dos clérigos do Concílio de 390, ao que já aludimos, que então tinha sido recitado por Epigônio e Genetlio e que agora era pronunciado por Aurélio. O legado papal, Faustino, sob a rubrica “dos graus da Ordem Sagrada que devem abster-se de suas esposas”, acrescentou: “estamos de acordo que os bispos, sacerdotes e diáconos, quer dizer, todos os que tocam os Sacramentos como guardiães da castidade devem abster-se de suas esposas”. A isso responderam todos os bispos: “estamos de acordo que a castidade deve ser guardada em tudo e por todos os que servem ao altar”.  

Entre as normas que, tomadas do patrimônio tradicional da Igreja africana, foram em seguida relidas ou novamente decididas, se encontram no vigésimo quinto posto um texto do presidente Aurélio: “nós, queridos irmãos, acrescentamos também que em relação ao que foi dito da incontinência de alguns clérigos, que eram somente leitores, com suas próprias esposas, se decidiu o que também noutros Concílios foi confirmado: que os subdiáconos, que tocam os santos mistérios, e os diáconos, sacerdotes e bispos devem, segundo as normas vigentes para eles, abster-se da própria esposa e se comportar como se não a tivesse; e se não se aterem a isso, devem ser afastados do serviço eclesiástico. Os demais clérigos não estão obrigados até uma idade mais madura. Depois disso todo o Concílio respondeu: nós confirmamos tudo o que vossa santidade disse de maneira justa e é santo e agradável a Deus”. 

Recolhemos aqui com tanto detalhe este testemunho da Igreja africana do final do século IV e do começo do século V por causa de sua fundamental importância. Destes textos de deduz a clara consciência de uma tradição baseada não somente numa persuasão geral, que ninguém suspeitava, mas também em documentos bem conservados. Naqueles anos foram encontrados ainda no arquivo da Igreja africana as atas originais que os Padres tinham trazido do Concílio de Nicéia. Se houvesse disposições contrárias ao celibato eclesiástico tal e como o vemos afirmado, tinham sido mencionadas da mesma forma que sucedeu com o erro ou o descuido da Igreja romana a respeito dos cânones de Sárdica atribuídos a Nicéia.

Tudo isto mostra também a consciência de uma tradição comum da Igreja universal, cujas diversas partes guardam uma comunhão viva entre si. O que na Igreja Africana foi afirmado muito explícita e repetidamente sobre a origem apostólica e a observância, transmitida desde a Antiguidade, da continência dos eclesiásticos junto com as sanções aos que a desobedecessem, não teria sido certamente aceito de modo tão geral e pacífico se não houvesse tido o aval de ser um fato comumente conhecido. Sobre isso temos ainda testemunhos explícitos da Igreja Oriental, que teremos oportunidade de analisar.

Alfons M. Stickler
Cardeal Diácono de São Giorgio in Velabro
CIDADE DO VATICANO 

Tradução para o português:

Pe. Anderson Alves.
Contato: 
amralves_filo@yahoo.com.br

Fonte: https://presbiteros.org.br/

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF