Celibato eclesiástico: História e fundamentos teológicos
CARD. Alfons M. Stickler
7. O Celibato no direito canônico clássico.
Quase ao mesmo tempo começou a vida e a atividade do direito da Igreja
direito. O monge camaldulense João Graciano compôs aproximadamente em 1142 em
Bolonha seu “Concórdia discordantium canonum” em seguida
simplesmente chamado de “Decreto de Graciano”, no qual foi recolhido todo o
material jurídico do primeiro milênio da Igreja e harmonizou, pelo menos tentou
fazê-lo, as mais variadas normas. Com ele começava a escola do Direito da
Igreja, associada à sua paralela do Direito Romano, e que será chamada de
escola dos glossistas ou glossadores, ou seja, dos intérpretes das compilações
do direito eclesiástico (e do Direito Romano) e dos seus textos legais.
O decreto de Graciano trata também, naturalmente, a questão e a
obrigação da continência dos clérigos, especificamente, nas distinções 26 – 34
e mais adiante nas distinções 81 – 84, da primeira parte. O mesmo irá acontecer
também em outras partes do Corpus Juris (Canonici), que desde
então vai se formando, com a promulgação das respectivas leis.
Para compreender corretamente as explicações que os canonistas deram
destas leis devemos considerar que, tal como os seus colegas romanistas, não
realizaram a investigações e estudos histórico-jurídicos, o que só ocorreu mais
tarde na escola dos cultos, ou seja, na escola jurídica humanística dos séculos
XVI em diante. Não devemos, portanto, nos surpreender que os glossadores, ou
seja, a escola jurídica clássica, haja desconhecido – também no domínio da
canonística – uma crítica em sentido próprio das fontes e dos textos.
Isto é importante para o nosso assunto, pois ao falar de Graciano
imediatamente encontramos o fato de que na questão do celibato eclesiástico
aceitou como algo realmente ocorrido no Concílio de Nicéia a fábula histórica
de Pafnucio, e a assumiu acriticamente, junto com o cânon 13 do Concílio
Trullano II de 691, a diferença da práxis celibatária da Igreja ocidental e da
oriental. Embora esta não fosse uma ocasião para ele justificar a razão as
diferentes práticas da Igreja Latina, tanto ele como a escola clássica de
Direito Canônico colocam a atenção no motivo da diferente obrigação na questão
da continência do clero maior oriental. Voltaremos a falar deste diferente
tratamento histórico do celibato na Igreja Oriental.
Temos de dizer agora, no entanto, que, precisamente devido a esta
negligência crítica as dúvidas já existentes no Ocidente sobre este assunto, e
que Gregório VII e outros reformadores, incluindo especialmente Bernoldo de
Constança, tinham reconhecido, não produziram uma impressão decisiva sobre a
escola canonística, que reconheceu também as deliberações do Concílio Trulano II
como plenamente válidas para a Igreja Oriental. Nesse mesmo Concílio, como
veremos, foi fixada a disciplina celibatária da Igreja bizantina e das
dependentes dela.
No entanto, como já mencionamos, não existia entre os
canonistas medievais nenhuma dúvida sobre a obrigação para a Igreja Ocidental,
da continência de todo o clero maior. E isto, na verdade, porque conheciam bem
os documentos dos Concílios ocidentais, os já tratados anteriormente, sobretudo
dos Concílios africanos (Graciano, no entanto, não demonstra conhecer o cânon
33 de Elvira), dos Pontífices Romanos e dos Padres. Todos os canonistas
estavam, em geral, de acordo com que a proibição do casamento para os clérigos
maiores devia ser atribuída aos Apóstolos: tanto ao exemplo deles como às suas disposições.
Alguns atribuíam aos Apóstolos a proibição do uso do matrimonio contraído antes
da Ordenação, outros a disposições legislativas posteriores, sobretudo dos
Romanos Pontífices, começando por Siríaco. Tentavam explicar as razões sobre as
que se baseia tal proibição, ainda que com argumentos em parte contrapostos.
Uns o relacionavam com um voto, expresso ou tácito, ou com a Ordem anexa, ou
com uma disposição solene da legítima autoridade. Frente à dificuldade de que
ninguém pode impor a outro um votum, se tratava de encontrar a
solução na constatação de que não se tentava impor à pessoa, mas somente ao
ofício, que trazia anexa esta condição. Que a Igreja pudesse fazê-lo não
oferecia nenhuma dúvida a qualquer canonista, que o explicavam com argumentos bem
interessantes e convincentes.
A doutrina que mais convence afirma que esta disposição podia ficar
unida através de uma lei, sobretudo Pontifica, à Ordem Sagrada, e que isso era
o que realmente tinha sido realizado desde os primeiros tempos da Igreja pelos
Concílios e pelos Romanos Pontífices, tanto para o caso dos bispos, como para
os sacerdotes e diáconos. No caso dos subdiáconos só havia sido decidido
definitivamente a partir do Papa Gregório I. Nenhum canonista medieval
duvidada, por outro lado, que esta obrigação vinculava ilimitadamente desde o
momento de sua introdução. É particularmente destacável o fato de que alguns
glossadores façam referência explícita, como fontes da obrigação da continência
clerical, a normas meramente tradicionais, que já existiam antes de sua
prescrição legal, e a que uma obrigação originada por m voto não era
dispensável nem mesmo pelo Papa. Por este motivo se inclinavam pela teoria que
punha a causa eficiente da obrigação numa lei, pois o Papa sim podia dispensar
de uma lei geral. De todos os modos, um bom número deles eram da opinião de que
uma dispensa deste tipo podia ocorrer somente em alguns casos particulares e
não em geral, porque isso equivalia à abolição de uma obrigação contrária ao status
ecclesiae, coisa que nem para o Papa era possível.
Após esta exposição sintética do pensamento dos glossistas sobre o
celibato eclesiástico, corretamente entendido, vigente na Igreja, vale à pena
mencionar alguns dos mais importantes textos sobre nosso tema, que podem ser
considerados especialmente representativos dessa doutrina.
Primeiro devemos mencionar Raimundo de Peñafort. Esse autor compôs
também o Liber Extra do Papa Gregório IX (parte central
do Corpus Iuris Canonici) e pode pois ser considerado como homem de
confiança do Papa, e é também representante qualificado da ciência canonística,
já então bem madura. No que diz respeito à origem e ao conteúdo da obrigação de
continência dos homens casados antes da sagrada Ordenação diz: “Os bispos,
sacerdotes e diáconos devem observar a continência também com sua esposa (de
antes). Isto é o que os Apóstolos ensinaram com seu exemplo e também com suas
disposições, como alguns dizem, para quem a palavra “ensinamento” (Dist. 84,
can. 3) pode ser interpretada de maneira diversa. Isto foi renovado no Concílio
de Cartago, como na citada disposição Cum in merito do Papa
Siríaco”. Depois de resumir outras explicações, se refere Raimundo às razões
para a introdução de tal obrigação: “a razão era dupla: uma, a pureza
sacerdotal, para que possam obter com toda sinceridade o que com sua oração
pedem a Deus” (Dist. 84 , cap. 3 e dict. 1 p. c. 1 Dist. 31); “a segunda razão
é que possam orar sem impedimentos (1 Cor 7, 5) e exercer seu ofício, pois não
podem fazer as duas coisas: servir à mulher e à Igreja, ao mesmo tempo”.
Alfons M. Stickler
Cardeal Diácono de São Giorgio in Velabro
CIDADE DO VATICANO
Tradução para o português:
Pe. Anderson Alves.
Contato: amralves_filo@yahoo.com.br
Fonte:
https://presbiteros.org.br/
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