Celibato eclesiástico: História e fundamentos teológicos
CARD. Alfons M. Stickler
IV. O CELIBATO NA DISCIPLINA DAS IGREJAS ORIENTAIS.
Foi dirigida contra a Igreja Latina a crítica de que, contra uma suposta
atitude mais liberal no início, foi evoluindo a posições cada vez mais severas
na sua disciplina celibatária. Como prova desta afirmação se apela para a
prática da Igreja Oriental, que teria mantido a original disciplina da Igreja
primitiva. Por esta razão, se diz, a Igreja Latina deveria retornar à
disciplina original, especialmente por causa do grave peso que celibato é hoje
para a situação pastoral da Igreja universal.
A resposta a esta declaração e às correspondentes propostas depende da
verdade ou não dessa condição da Igreja primitiva. O resultado da análise
histórica que temos feito sobre a prática real celibatária no Ocidente, suscita
sérias dúvidas sobre a suposta exatidão de tal parecer. Devemos, portanto,
procurar uma clarificação do verdadeiro desenvolvimento do celibato na Igreja
Oriental. E é isso que tentamos fazer nesta quarta parte da nossa
exposição.
- O testemunho de Epifânio de Salamina
Em sua defesa da origem apostólica do celibato, C. Bickell recorreu
principalmente a testemunhos orientais. Vamos agora olhar para a história
celibatária no Oriente, apenas em linhas gerais, já que não podemos analisar
todos os testemunhos disponíveis. Mas de tudo o que se disse até agora (e do
que acrescentaremos adiante) podemos ter um panorama aceitável da verdadeira
situação naquela Igreja.
Uma importante testemunha é o bispo de Salamina (posteriormente
denominada Constância) na ilha de Chipre, Epifânio (315 403). Ele é considerado
um bom conhecedor e defensor da ortodoxia e da Tradição da Igreja, uma vez que
ele viveu quase todo o século quarto. Embora em alguns pontos, especialmente na
luta contra as idéias, como na questão de Orígenes, demonstrou um menor zelo,
seus testemunhos sobre os fatos e condições de seu tempo, especialmente sobre
questões disciplinares da Igreja, não pode ser facilmente posta em dúvida.
Sobre a questão do celibato, ou continência dos ministros sagrados, faz
um típico relato dos acontecimentos. Em sua obra principal, chamado Pananon, escrita
na segunda metade do século IV, afirma que Deus mostrou o carisma do sacerdócio
novo por meio de homens que tinham renunciado ao uso do único casamento antes
da Ordenação, ou que sempre viveram virginalmente. Isso, diz ele, é a norma
estabelecida pelos Apóstolos com sabedoria e santidade.
No entanto, mais importante ainda é a constatação que faz no “Expositio
fidei” acrescentada à obra principal. A Igreja, diz ele, apenas admite
ao ministério episcopal e sacerdotal, (também diaconal), aos que renunciam,
através da continência, à sua própria esposa ou ficam viúvos. Assim, continua,
se vive onde se mantém fielmente as disposições da Igreja. Pode-se constatar
que, em diferentes lugares, sacerdotes, diáconos e subdiáconos continuam
gerando filhos. Mas isso não está em conformidade com a norma vigente, mas é
uma conseqüência da debilidade humana, que sempre tende ao que é mais fácil. E
depois, segue explicando, os sacerdotes são escolhidos especialmente entre os
que são celibatários ou monges. Se entre eles não se encontram suficientes
candidatos, são eleitos entre os casados que tenham renunciado ao uso do
casamento, ou entre aqueles que, após um único matrimônio, ficaram viúvos.
Estas afirmações de um homem conhecedor de muitas línguas e que viajou muito para o Oriente – dividido já por muitas doutrinas – no primeiro século de liberdade da Igreja são um bom testemunho tanto da norma como da situação real da questão do celibato na Igreja Oriental dos primeiros séculos.
2. São Jerônimo
A segunda testemunha é já conhecida. São Jerônimo foi ordenado
sacerdote na Ásia Menor por volta do ano 379 e ao longo de seis anos conheceu a
doutrina e a disciplina oriental, bem como eclesiásticos e comunidades
monásticas. Após ter vivido três anos em Roma, ele retornou através do Egito à
Palestina, onde permaneceu até a sua morte, por volta do ano 420. Esteve sempre
em contato estreito e ativo com a vida de toda a Igreja, graças às suas
relações com muitos homens importantes do Ocidente e Oriente, e também graças
ao seu vasto conhecimento de várias línguas.
Seu testemunho explícito sobre a continência do clero já foram
ilustrados na terceira parte. Recordemos agora novamente sua obra Adversus
Vigilantium, que, contrariamente àquele sacerdote da Gália meridional que
desprezava o celibato, invocou a prática das Igrejas do Oriente, do Egito e da
Sé Apostólica, nas que, segundo afirma, só aceita clérigos virgens,
continentes, e, se são casados, que tenham renunciado ao uso de casamento. Com
isto conhecemos um testemunho sobre a posição oficial também da Igreja, sobre a
continência dos ministros sagrados.
No que diz respeito à legislação dos Sínodos orientais, deve-se
salientar que os Concílios regionais anteriores a Nicéia, ou seja, os de Ancira
e Neo-Cesaréia e o post-niceno de Gangra, falam efetivamente de ministros
casados, mas não nos dão informações confiáveis sobre a licitude de uma vida
não continente após a Ordenação, que vai mais além de uma situação
excepcional.
Também nos sínodos particulares das diversas Igrejas cismáticas do Oriente, que foram estabelecidas depois das controvérsias cristológicas, nas quais – como no Ocidente – houve um claro afastamento da prática da disciplina celibatária, encontramos assim um testemunho por sua atitude oficial contrária à ortodoxia.
3. A questão do eremita Pafnucio.
O Concílio de que devemos ocupar mais amplamente, em relação ao nosso
tema, é o primeiro Concílio Ecumênico, realizado em Nicéia, no ano 325.
A única disposição sobre o celibato dos ministros neste primeiro Sínodo
da Igreja universal é o cânon 3, que proíbe que aos bispos, sacerdotes,
diáconos, e, em geral, todos os clérigos, que tenham em sua casa mulheres,
introduzidas ali por subterfúgio. A única exceção é para a mãe, a irmã, a tia e
outras que estejam para além de qualquer suspeita. Como sempre, entre as
mulheres que estão autorizadas à convivência com os sacerdotes não se encontram
as esposas. O fato de que no primeiro posto dos eclesiásticos sujeitos à
proibição de coabitação estavam os bispos – para os quais, na Igreja Oriental,
era sempre obrigatória a continência no uso de um casamento anterior (o que
continua válido até hoje) – podemos perguntar se entre os Padres do Concílio
era firme a convicção de tal obrigação de continência.
Em favor de uma convicção e situação contrária para o caso dos
sacerdotes, diáconos e subdiáconos se invoca uma notícia sobre um eremita e
bispo do deserto no Egito chamado Pafnucio. Diz-se que esse personagem teria
levantado sua voz no Concílio para dissuadir aos Padres de sancionar uma
obrigação geral de continência. Isso deveria ser deixado, segundo sua opinião,
para a decisão das Igrejas particulares; e se diz que tal conselho teria sido
aceito pela assembléia.
Embora o conhecido historiador da Igreja, Eusébio de Cesaréia, que
esteve presente como Padre conciliar e era favorável aos arianos, não refere
nada deste episódio, certamente não de menor importância para toda a Igreja, as
primeiras notícias do fato nos chegam cem anos depois do Concílio, e através de
dois escritores eclesiásticos bizantinos, Sócrates e Sozómeno. Sócrates indica
que a sua fonte é um homem muito idoso, que tinha estado presente no Concílio e
que teria contado vários episódios sobre fatos e personagens do mesmo. Crê-se
que Sócrates nasceu em torno de 380 e escutou essa narração quando ele mesmo
era bastante jovem de uma pessoa que no ano 325 não podia ser uma criança, que
não pode ser considerado como um testemunho consciente dos eventos do Concílio.
Disso podemos concluir facilmente a mais natural crítica das fontes traz sérias
dúvidas sobre a autenticidade desta narração, necessitada de garantias mais
firmes.
Estas dúvidas, na verdade, já foram levantadas precocemente, no
Ocidente, como já foi dito, pelo Papa Gregório VII e Bernoldo de Constança. Em
tempos mais recentes merece atenção o comentário de Valésio, editor das obras
de Sócrates e Sozómeno, que fez esta história em 1668 e que Migne imprimiu em
sua Patrologia Grega, vol. 67. O humanista de Valois, membro de uma família de
pessoas doutas, diz explicitamente que a história de Pafnucio é suspeita porque
entre os Padres do Concílio provenientes do Egito não aparece tal bispo. E a
correspondente passagem de Sozómeno repete que a história de Pafnucio deve ser
uma fábula inventada, principalmente porque entre os Padres que assinaram as
Atas do Concílio de Nicéia não existe nenhum com este nome. Na tradução latina
de Casiodoro-Epifanio (História Tripartida) deste episódio é recolhida apenas
um fragmento de dezesseis linhas da História da Sozómeno.
Recentemente, o estudioso alemão Friedhelm Winckelmann investigou esse
incidente e concluiu que ele foi inventado, pois a referência à pessoa de
Pafnucio apareceu mais tarde; o nome dele só aparece em manuscritos tardios das
Atas do Concílio, e alguns textos do século IV apenas o conhecem como confessor
da fé; posteriormente algumas lendas hagiográficas o elevaram a mestre e foi
citado como Padre do Concílio de Nicéia.
Mas o argumento mais convincente contra a autenticidade desse relato parece
residir no fato de que, precisamente a Igreja Oriental, que deveria ter o maior
interesse nele, ou não tinha conhecimento do mesmo, ou não o usou em nenhum
documento oficial, por estar convencida da sua falsidade. E o mesmo pode ser
deduzido do fato de que não haja qualquer menção ou utilização sobre Pafnucio,
tanto nos escritos polêmicos sobre o celibato dos ministros sagrados, como nos
grandes comentadores do Século XII – Aristeno, Zonaras, Balsamon – do Syntagma
canonum adauctum – ou seja, do códice maior de direito da Igreja
Oriental, estabelecido pelo Concílio Trullano de 691. Isso seria, de fato, mais
fácil do que recorrer à manipulação de textos históricos bem conhecidos, como
veremos adiante.
Será necessário esperar até o décimo quarto século para que apareça
o relato no Syntagma alfabetcum de Mateus
Blastares, que, contudo, parece que o considerou interessante para o Oriente só
através do Decreto de Graciano. No Ocidente, essa falsificação foi recebida de
modo completamente acrítico, ao menos pela canonística, que se baseou, em
parte, para reconhecer uma determinada disciplina celibatária particular,
diferente da Igreja Oriental. O Concílio Trullano II, ao fixar oficialmente as
regras sobre celibato válido na Igreja oriental, não fez qualquer referência à
Pafnucio.
Alfons M. Stickler
Cardeal Diácono de São Giorgio in Velabro
CIDADE DO VATICANO
Tradução para o português:
Pe. Anderson Alves.
Contato: amralves_filo@yahoo.com.br
Fonte: https://presbiteros.org.br/
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