Celibato eclesiástico: História e fundamentos teológicos
CARD. Alfons M. Stickler
2. Fundamento histórico doutrinal
Um olhar para trás na Tradição da Igreja pode nos informar, também nesta
ocasião, o desenvolvimento desta Teologia. O que se pode dizer, em síntese,
sobre este aspecto já dissemos, em parte, ao analisar os testemunhos da Igreja
primitiva sobre a continência dos ministros sagrados. Continuar com as
referências históricas sobre o celibato, as referências à Sagrada Escritura e
sua interpretação é certamente uma ajuda que pode ser fornecida à argumentação
teológica dos Padres sinodais e do Santo Padre, porque na Exortação Apostólica
abunda as referências à Sagrada Escritura. A visão do celibato, do ponto de
vista das Escrituras adquiriu, por outro lado, uma crescente importância na
literatura recente sobre o assunto.
Já na primeira lei escrita que conhecemos, no cânon 33 do Concílio
de Elvira, estão obrigados à continência os clérigos positi in
ministerio, ou seja, aqueles que servem ao altar. Também os cânones
africanos falam continuamente dos que servem ao altar e, por ser responsável
pelo seu serviço, tocam os sacramentos; estes estão obrigados, por causa da
consagração recebida, à castidade, o que, por sua vez, garante a eficácia da
oração de petição (impetratória) diante de Deus.
A este respeito, são particularmente importantes e instrutivos os
documentos do Romano Pontífice que tratam da continência celibatária. São
constantemente consideradas e refutadas nos textos deles, a partir da Sagrada
Escritura, duas objeções. A primeira é a norma que indica São Paulo a Timóteo
(1 Tim 3, 2 e 3, 12) e Tito (1, 6): os candidatos casados devem ser só unius
uxoris, ou seja, ter sido casado apenas uma vez e também com uma mulher
virgem. Tanto o Papa Sirício como Inocêncio I insistiram repetidamente em que
esta expressão não significa que eles possam continuar com o desejo de gerar
filhos, mas, pelo contrário, foi estabelecida propter continentiam
futuram, ou seja, devido à continência que deveria ser vivida desde
então.
Esta interpretação feita pelos Pontífices da conhecida passagem da
Escritura, que foi assumida pelos Concílios, diz que quem tivesse a necessidade
de se casar novamente, demonstrava com isso que não era capaz de viver a
continência exigida aos ministros sagrados e não podia, portanto, ser ordenado.
Assim, essa norma da Escritura, em vez de uma prova contrária ao celibato, era uma
demonstração a favor da continência celibatária e ainda uma exigência dos
Apóstolos. Essa disposição se manteve viva no futuro. Na Glossa ordinária ao
decreto de Graciano, isto é, no comentário comumente aceito desta passagem
(princípio da Dist. 26), explica que existem quatro razões para que um que foi
casado duas vezes não pode ser ordenados. Depois de assinalar três razões
espirituais, a quarta, de caráter prático, diz que seria um sinal de
incontinência que um homem passasse de uma mulher para outra. E o grande cheio
de autoridade decretalista Hostiensis, o Cardeal decano Henrique de Susa,
explica no seu comentário às decretais de Gregório IX (X, I, 21, 3 à
palavra alienum), que a terceira razão das quatro dessa proibição
foi “porque se deve temer (neste caso) a incontinência”.
Esta interpretação do unius uxoris vir também era
aceita no Oriente; isso é provado pelo grande historiador da Igreja antiga
Eusébio de Cesaréia, que deve ser considerado bem informado, já que, como já
afirmamos, participou no Concílio de Nicéia e, como amigo dos arianos, tinha
defendido o uso do matrimônio por parte dos padres já casados. No entanto diz
expressamente que, comparando o sacerdote do Antigo Testamento com o do Novo,
se confronta a geração corporal com a espiritual, e que nisso consiste o
sentido do unius uxoris vir: em que aqueles que foram consagrados e
dedicados ao culto divino devem abster-se convenientemente, do momento da
Ordenação em adiante das relações sexuais com a esposa.
A proibição apostólica de que nenhum casado duas vezes devia ser
admitido às Sagradas Ordens tem sido observada, com todo rigor, através dos
séculos e se encontrava entre as irregularidades no Código de 1917 (cân. 984,
4). Na canonística clássica se ensinava que a dispensa desta proibição não era
possível nem pelo Sumo Pontífice, pois nem sequer ele poderia dispensar contra
apostolum, isto é, contra a Sagrada Escritura.
Deve-se notar que também a legislação do Concílio de Trullo mantém no
seu cânon 3 a mesma proibição para sacerdotes, diáconos e sub-diáconos, ou
seja, que os candidatos à estas ordens não podiam estar casados com uma viúva
ou com uma mulher que havia sido casada. Só se queria – diziam os padres
trullanos – atenuar a gravidade da Igreja romana neste ponto, concedendo àqueles
que tinham pecado contra dita proibição a possibilidade de arrependimento e
penitência. Se antes de uma data posterior ao Sínodo tivessem renunciado a esse
(segundo) casamento, poderiam permanecer no exercício do ministério.
A falta de lógica nesta disposição do cânon 3, em comparação com o cânon
13 que permite aos sacerdotes e diáconos o uso do matrimônio contraído antes da
Ordenação, só pode ser explicado pelo fato de que aquela proibição apostólica
estava também profundamente enraizada na tradição oriental, mas sem que se
perceba já o seu sentido original. Daí surge outra prova tácita do autêntico
significado original, como garantia da total continência após a Ordenação, tal
como permaneceu vivo no Ocidente, sempre aceito com fiel observância por parte de
Roma.
Deve-se mencionar neste contexto de duas outras passagens das Escrituras
que não se encontram explicitamente nos testemunhos antigos, a segunda das
quais vem hoje invocada contra a continência dos mesmos Apóstolos.
Entre as qualidades que São Paulo exigia ao ministro da Igreja se
encontra também a de ser “Encratés“, ou seja, continente. Este termo
significa a continência sexual, como se deduz do texto paralelo no qual São
Paulo exorta os fiéis casados continência a necessária abstinência para dedicar-se
à oração, e também dos posteriores textos gregos sobre o celibato, reunidos,
por exemplo, na coleção oficial do Pedalion.
A segunda passagem da Escritura é encontrada em 1 Coríntios 9, 5, onde São
Paulo diz que também ele tem o direito de levar consigo uma mulher, como fazem
os outros apóstolos, os irmãos do Senhor e Cefas. Muitos interpretaram a
expressão “mulher” como a “esposa” dos Apóstolos, que no caso de Pedro poderia
ser verdade. Mas é preciso se ter claramente presente o fato do texto original
grego não falar simplesmente de “Ginaika“, que podia perfeitamente
significar também esposa. Certamente não sem intenção, São Paulo acrescenta a
palavra “adelfén“, ou seja, mulher “irmã”, o que exclui qualquer confuso
mal-entendido com esposa.
Somos convencidos facilmente deste sentido retificador que, de aqui em
adiante, os testemunhos mais importantes da continência dos ministros sagrados
mostram que ao falar da esposa de tais ministros, no contexto da posterior
continência sexual, sempre se usa a palavra “sóror“, irmã. Do mesmo
modo, a relação entre marido e mulher depois da Ordenação do marido é visto
como o de um irmão com sua irmã. São Gregório Magno, por exemplo, diz: “Desde
sua Ordenação, o sacerdote amará sua sacerdotisa (ou seja, sua esposa) como a
uma irmã”. O Concílio de Gerona (ano 517) decidiu que “se tiverem sido
ordenados aqueles que antes estiveram casados, não devem viver junto com a que
de esposa se se tornou irmã”. E o Concílio de Auvergne (ano 535), por sua vez,
dispôs que: “quando um sacerdote ou um diácono recebeu a Ordenação ao serviço
divino passa imediatamente de ser marido a ser irmão da sua esposa”. Este uso
das palavras é encontrado em muitos textos patrísticos e conciliares.
Alfons M. Stickler
Cardeal Diácono de São Giorgio in Velabro
CIDADE DO VATICANO
Tradução para o português:
Pe. Anderson Alves.
Contato: amralves_filo@yahoo.com.br
Fonte: https://presbiteros.org.br/
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