O que sobra de nós quando tudo desmorona e as coisas não são mais como
eram antigamente?
por Gustavo Monteiro. publicado em 20/07/2023
Deus e o diabo moram nos detalhes. E é verdade. São pequenos olhares e
meias palavras, detalhes, que fazem com que um casal se apaixone. E são
pequenas permissões, deslises, que fazem com que o amor se traia e vire qualquer
outra coisa menos digna de nota e fadada à indiferença que é pior que o
fracasso.
Foi um detalhe, talvez (daqueles quase
imperceptíveis, justamente porque parecem óbvios demais, despretensiosos) em um
dos últimos capítulos de The Last of Us, que
me catapultou de volta para o mundo em que vivemos. Tendo mergulhado até a
cabeça na trama muito bem construída de um mundo que há vinte anos tenta
sobreviver e resistir a uma pandemia de fungos que transformam os seres humanos
em zumbis, foi fácil esquecer que tudo o que eu via não era uma leitura
possível da realidade que experimento.
Vejamos: o prólogo da série da HBO Max traz um
programa do meio do século passado, em preto e branco, em que especialistas
discutem quais seriam, provavelmente, as piores tragédias que poderiam
acontecer no futuro. Um deles levanta a hipótese de uma pandemia viral que
seria responsável pela morte de milhares de pessoas − o que de fato aconteceu
em 2020, e se você está lendo esse texto é porque sobreviveu. Outro entrevistado,
no entanto, fala sobre a possibilidade um pouco mais sofisticada, mas nem por
isso mirabolante: uma epidemia de fungos que controlam o sistema nervoso
humano. Quando questionado sobre como seria possível, visto que tais espécies
não sobrevivem à temperatura do nosso corpo, o pesquisador diz algo como:
“mutações acontecem, suponha que a temperatura do planeta suba...”
Fungos desse tipo existem, mas, até agora, controlam
insetos, como formigas. Elas viram marionetes responsáveis pela difusão do
parasita que controla todos os seus movimentos. Formigas, desde as fábulas
infantis, são sinônimo de trabalho árduo, ordem, rotinas e esforços sem fim,
produtividade mil, marcha em uniformidade. Não estamos nós vivendo como
formigas?
Em um determinado ponto da série, os dois
protagonistas entram nas ruínas de uma universidade. Ele tem quase 50 anos e já
sobreviveu a muita coisa desde o dia 1; coleciona uma série de lutos: de
pessoas e de sonhos. Ela tem 14 anos, e também coleciona decepções, mas nasceu
imune ao fungo, e, como se isso não bastasse, tem a capacidade de se admirar
com o mundo, de encontrar beleza nas coisas, mas sem breguices: apenas aquelas
típicas de qualquer pessoa aos 14 anos de idade que se permite viver. A
diferença é que faz isso durante um apocalipse zumbi.
Curiosa, vendo os prédios da cidade universitária
norte-americana, pergunta ao homem o que as pessoas faziam ali. “Eles moravam e
estudavam no mesmo lugar”. Ela acha o máximo, e ele completa: “Mas eles só iam
pra festas e tentavam entender o que fazer com a vida”. Com uma ironia
dilacerante, a menina repete: “Tentavam entender o que fazer com a vida...
hum”.
É um detalhe, eu sei. Mas por trás tem um contraste
cruel. Nesse ponto da série, já vimos tudo de bom e de ruim que o ser humano é
capaz de fazer em situações extremas. De seitas religiosas asfixiantes,
revoltas contra um sistema opressor que é dez vezes pior que o próprio sistema;
a comunidades muito bem-organizadas democraticamente e pequenos oásis, no fim
do mundo e de cerca elétrica, que protegem um forte amor. Da capacidade de se
sacrificar por alguém ou por um fiasco de esperança, a um canibalismo
disfarçado de bondade.
Tendo visto tudo isso, imaginar que alguém um dia foi
capaz de empregar alguns anos “tentando entender o que fazer com a vida”
realmente parece narrativa daquelas mesmas fábulas, história pra boi dormir.
Na série, os vilões mais aterrorizantes não são os
infectados pelo fungo, mas algumas pessoas “saudáveis” que sobraram. É mais
automático traduzir o título da série que foi inspirada em um videogame e
coproduzida pelo criador do jogo como “Os que sobraram de nós”. Mas, nesse
ponto da trama, na minha mente fez-se um click: talvez “The Last of Us” possa ser, na verdade, “O que sobra de
nós”.
O que sobra de nós quando tudo desmorona e as coisas
não são mais como eram antigamente? O que sobra quando perdemos tudo o que
acreditamos e nesse bolo vai junto até a mínima porcentagem daquilo que nos
fazia querer estar vivos? O que sobra quando vemos a injustiça e a maldade de
frente e não podemos fazer nada?
Esses dias, em um canal no youtube de crítica de cinema, me deparei com a
frase: “todo filme é um problema que virou metáfora”. É óbvio que a série The Last of Us está falando não sobre um hipotético
planeta terra destruído por um fungo, mas pelo mundo em que vivemos hoje: tendo
aparentemente superado uma pandemia e vivendo como se ela nunca tivesse
existido.
É louco pensar que hoje, exatamente agora, tem um
grande grupo de pessoas que pode se dar ao luxo de pensar o que fazer com a
vida, enquanto existe um número ainda maior de gente que precisa lutar para
sobreviver, de uma maneira selvagem mesmo, seja em desastres naturais ou
políticos.
“Crise”, “crítica” e “critério” têm o mesmo radical,
disse certa vez uma professora minha. Quando as coisas mudam, os velhos
critérios para enxergar as coisas (e poder, então, criticá-las positivamente ou
não) passam a não funcionar mais. E é aí que chega a crise. As crises são
momentos de instabilidade em que é preciso trocar os critérios de ver e de
estar no mundo.
Pois bem, tendo aparentemente superado uma pandemia,
olhando ao meu redor, percebo que ainda carrego comigo critérios antigos, da
década de 90, quando eu nasci, e é aí que a peça de lego não encaixa mais.
Dentro de mim parece que vivem dois personagens: o homem de 50 anos calejado
pela vida, apático, e a adolescente curiosa que é capaz de esquecer o próprio
luto vendo uma girafa que fugiu do zoológico. Existe a desilusão e o fio de esperança.
E eu torço para encontrar o critério certo, ou, pelo
menos, que sobre de mim a melhor parte.
Por Gustavo Monteiro, jornalista e escritor.
Fonte: https://www.cidadenova.org.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário