Os livros de Deus
Na Sagrada
Escritura ouvimos a Palavra de Deus. Para ajudar-nos a compreendê-la, convém
conhecer a tradição da Igreja e recorrer ao Espírito Santo.
11/12/2018
É normal em
qualquer comunidade humana que sejam relatadas histórias sobre as próprias
origens. Uma reunião familiar, como uma festa de aniversário costuma ser uma
ocasião de lembrar acontecimentos importantes ou significativos: uma história
dos avós, os méritos de algum ancestral ilustre, a fundação de uma cidade ou a
independência de uma nação. Essas narrações não são um simples passatempo ou
exercício puramente saudoso da memória, mas contribuem para a formação da
identidade da família ou grupo. Desse modo, os membros mais jovens descobrem de
onde eles vêm e compreendem melhor quem são. Assim se via o povo de Israel, e
assim transmitiu as obras do Senhor de geração em geração: “Quanto ouvimos e
aprendemos, o que os nossos pais nos contaram, não o ocultaremos aos seus
filhos; senão que contaremos à geração vindoura os louvores do Senhor, seu poder,
e as maravilhas que fez”[1]. Também a Igreja — novo povo de Deus — é uma
família que recorda e atualiza constantemente os fatos que estão na sua origem:
a história do antigo Israel e, acima de tudo, a morte e ressurreição de Jesus.
TAMBÉM A IGREJA É UMA FAMÍLIA QUE RECORDA E
ATUALIZA CONSTANTEMENTE OS FATOS QUE ESTÃO NA SUA ORIGEM
Por vezes,
esses relatos familiares ou populares são escritos e, depois de receber uma
elaboração literária mais ou menos complexa segundo os casos, podem chegar a
ser considerados obra de referência para a comunidade em que surgiram. Alguns
povos antigos atribuíam as suas próprias escrituras a uma origem divina: para
eles, esses livros tinham sido escritos diretamente pelos deuses do céu. Mas
quando a Igreja afirma que “Deus é o autor da Sagrada Escritura”[2], quer dizer com isto que também crê que os
seus livros caíram do céu? Como a fé católica explica a origem
das Escrituras? Qual é a sua relação com a Igreja?
O que
significa que Deus seja o autor da Bíblia e que nos fale por meio dela?
A fé
anuncia um Deus que criou o céu e a terra, e que respeita a autonomia da sua própria
obra. Não procura dominar a inteligência nem a liberdade das criaturas
racionais. Também não impõe a sua salvação ao homem, mas a propõe para que, se
ele quiser, acolha-a com todo o seu coração. De modo análogo, ao dar-se a
conhecer aos seres humanos, quis se servir de uma linguagem que seja
compreensível, pois a língua com que o Pai, o Filho e o Espírito Santo se
comunicam eternamente entre si — o “idioma divino” — não é acessível para nós.
Por isso, a
Igreja explica que Deus dá a conhecer o seu amor aos homens, e leva a cabo o
seu plano de salvação, agindo e falando “por meio dos homens e de modo humano”[3].
Sob a luz
do mistério de Jesus Cristo, a “plenitude de toda a revelação”[4], é mais fácil entender essa lógica divina.
Ele é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. A sua humanidade é caminho para
conhecer o mistério de Deus. Isso não impede que, pela sua dimensão humana,
tenha querido compartilhar as nossas limitações, exceto o pecado. Não somente
teve fome e sede ou ficou cansado, mas também deve ter experimentado o esforço
de aprender a ler, de instruir-se na profissão que são José lhe ensinava, etc.
Era Deus, porém não renunciou às limitações próprias do que é humano.
Jesus
Cristo quis nos falar com palavras humanas, comunicar-nos a sua mensagem de
salvação com os modos de exprimir-se de uma época concreta. Analogamente,
quando a Igreja fala de “inspiração divina” da Escritura, afirma que o Espírito
Santo é o autor principal dos livros sagrados, mas isso não quer dizer que
estejam isentos dos limites próprios de qualquer obra humana.
Na Sagrada
Escritura, “a palavra de Deus, exprimida em línguas humanas, se assemelha à
linguagem humana, como a Palavra do Pai eterno, assumindo a nossa débil
condição humana, se fez semelhante aos homens”[5].
A dimensão
humana da Bíblia torna-nos acessível a Palavra de Deus. Mas também significa
que, ao lê-la, nos deparemos com alguns limites. No entanto, nem sempre se
percebe todo o alcance, nem se aceita todas as consequências do anterior.
Concretamente, alguns têm uma visão simples demais da Bíblia, de modo que não
deixam espaço para nenhum tipo de imperfeição.
Como
explicava são João Paulo II, tais pessoas “têm a tendência a crer que, sendo
Deus o Ser absoluto, cada uma das suas palavras tem um valor absoluto,
independente de todos os condicionamentos da linguagem humana”[6]. Parece que isso é mais respeitoso com a
grandeza de Deus, porém, na realidade, equivale a iludir-se e a rejeitar “os
mistérios de inspiração relativa à Sagrada Escritura e da Encarnação aderindo a
uma falsa noção do Absoluto. O Deus da Bíblia não é um Ser absoluto que,
destruindo tudo aquilo que toca, suprimiria todas as diferenças e todos os
cambiantes”[7]. Precisamente neste moldar-se ao que é
pequeno se manifesta a misericórdia de Deus: esse amor que o leva a adaptar-se
aos nossos modos de exprimir-nos, manifestando-se de uma maneira amável, para
que a sua grandeza não nos impeça de nos aproximarmos d’Ele.
Vemos isto
na obra da Redenção, e também no modo como se dá a conhecer. “Quando se exprime
em linguagem humana, Ele não dá a cada expressão um valor uniforme, mas
utiliza-lhe os cambiantes possíveis, com uma flexibilidade extrema, e
aceita-lhe igualmente as limitações”[8].
A VIDA SANTA DOS QUE SEGUEM CRISTO VAI MANIFESTANDO
OS DIFERENTES ASPECTOS DO EVANGELHO
Para evitar
uma visão simples demais da Bíblia, é útil lembrar que os livros que a formam
forma escritos não somente em diversas épocas, mas também em três línguas
diferentes: hebraico, aramaico e grego. Os textos foram escritos por seres
humanos, por meio dos quais Deus atuou, sem que, por isso, eles deixassem de
ser verdadeiros autores dos seus livros[9].
Assim, por
exemplo, quando São Paulo manifesta a uns cristãos sua indignação com palavras
fortes, dizendo: “Ó gálatas insensatos!” (Gl 3,1; cfr. 3,3), é ele
quem está bravo, não o Espírito Santo! Com certeza, São Paulo admoesta movido
pelo Espírito Santo, mas usa um modo de se exprimir de acordo com o seu caráter
e os usos linguísticos do ambiente em que vivia.
A Tradição,
acréscimos da Igreja à Bíblia?
Outra
consequência do caráter divino e humano da Sagrada Escritura é a sua relação
com a Igreja. A Bíblia não caiu diretamente do céu, mas é a Igreja
que a apresenta a nós, assegurando-nos que Deus nos fala hoje pela Sagrada
Escritura. Voltando ao que foi dito no início, o povo de Israel e a Igreja são
a família ou comunidade na qual nasceram, tomaram forma e foram transmitidas as
narrações, profecias, orações, exortações, provérbios e outros textos que
encontramos no Antigo e no Novo Testamento.
Em sentido
próprio, a fonte, o ponto de partida ou origem da revelação, é um só: Deus, que
se manifestou de modo pleno no seu Filho feito homem, Jesus Cristo. Ele é a
Revelação de Deus. A vida e os ensinamentos de Jesus, e especialmente sua
paixão, morte e ressurreição — acontecidas “segundo as Escrituras” (cfr.
1 Cor 15, 3-4) — constituem o anúncio que Ele mesmo manda os
apóstolos pregarem em todo o mundo.
Esta boa
notícia, o Evangelho, transmitido de maneira viva na Igreja, é o conteúdo
fundamental da Tradição apostólica, que é escrita (dando origem ao Novo
Testamento) e também transmitida na vida da Igreja: o modo de ensinar a fé, a
forma que a oração assume na liturgia, o estilo de vida que propõe quando fala
de moral.
A Tradição
é a própria vida da Igreja em quanto transmite o Evangelho. Por isso, não é
correto entendê-la como se fosse somente uma parte da Revelação, que estaria
formada pelas verdades que não aparecem claramente na Bíblia. Também não se
reduz a fórmulas e práticas que foram sendo acrescentadas com o tempo, nem aos
ensinamentos dos Padres ou dos Concílios. Essa confusão se encontrava em alguns
autores que falavam da Bíblia e da Tradição como se ambas fossem as “duas
fontes” da Revelação divina. Algumas verdades da fé seriam conhecidas graças à
Escritura e outras graças à Tradição: por exemplo, o primado de Pedro se
encontra nos Evangelhos (cfr. Mt 16, 17–19; Lc 22,
31–32; Jo 21, 1–19), mas que a Assunção de Nossa Senhora não
aparece explicitamente no Novo Testamento.
Parecia um
esquema simples que resolvia muitos problemas. No entanto, pensar que dispomos
de duas fontes de Revelação, como se Deus nos falasse ou por uma ou por outra,
não corresponde à realidade. A Bíblia chega a nós dentro da
Tradição da Igreja, formando parte dela, e não de modo separado.
Todos os
católicos — pelo fato de viver e difundir a fé — são sujeitos ativos da
Tradição, tal como todos os membros de uma família participam de alguma maneira
na comunicação da sua identidade. A vida santa dos que seguem Cristo vai
manifestando os diferentes aspectos do Evangelho, como diz o Papa Francisco:
“Cada santo é uma missão; é um projeto do Pai para refletir e encarnar, em um
momento determinado da história, um aspecto do Evangelho”[10]. Nada, nem ninguém fica fora: “a Igreja, na
sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo
aquilo que ela é e tudo quanto acredita”[11].
Por que ler
tendo em conta a Tradição?
A Tradição
da Igreja é viva. Isso contrasta com a concepção que se têm às vezes da
“tradição” ou “tradições” como coisas do passado: as tradições ancestrais de um
povo, as festas tradicionais ou inclusive as roupas tradicionais. Na Igreja, a
Tradição vem do passado, mas não fica nele. Para explicá-lo, Bento XVI usa uma
comparação iluminadora: “A Tradição não é transmissão de coisas ou de palavras,
uma coleção de coisas mortas. A Tradição é o rio vivo que remonta às origens, o
rio vivo em que as origens estão sempre presentes”[12].
Dentro
desse rio vivo, que nasce de Cristo e que traz o próprio Cristo para nós, a
Igreja recebe e transmite uma coleção de livros que são lhe dados como
testemunho inspirado da Revelação divina, isto é, um conjunto de Escrituras que
comunicam o que o próprio Deus quis que ficasse consignado por escrito para a
nossa salvação. “Mediante a mesma Tradição, conhece a Igreja o cânon inteiro
dos livros sagrados, e a própria Sagrada Escritura entende-se nela mais
profundamente e torna-se incessantemente operante; e assim, Deus, que outrora
falou, dialoga sem interrupção com a esposa do seu amado Filho”[13].
A TRADIÇÃO, QUE É O LAR ONDE NASCE A SAGRADA
ESCRITURA, TORNA-SE TAMBÉM CAMINHO PARA COMPREENDÊ-LA MELHOR
A Tradição,
que é o lar onde nasce a Sagrada Escritura, torna-se também caminho para
compreendê-la melhor. Acontece algo similar ao exercício que fazemos para
apreciar toda a riqueza de uma obra literária: não é o suficiente fazer uma
leitura isolada dela, mas prestamos atenção ao contexto em que foi escrita, o
horizonte intelectual do autor, a comunidade onde teve origem.
Assim,
quando a Igreja indica que a Tradição viva é um critério de interpretação da
Bíblia,[14] ou mantém que o “lugar originário da
hermenêutica da Bíblia”[15] é a Igreja, o que está propondo é que
uma leitura realizada em comunhão com todos os que acreditaram em Cristo
abre-nos às riquezas da Sagrada Escritura. É evidente que qualquer pessoa pode
ler e, em certa medida, entender a Bíblia, mesmo sem receber o dom da fé.
A diferença
está em que, quando um batizado lê os livros bíblicos, não o faz procurando
somente decifrar o conteúdo de uns textos antigos, mas propõe-se descobrir a
mensagem que Deus quis deixar neles e que agora quer comunicar.
A partir
desta perspectiva, também se entende melhor por que para compreender a Bíblia
se aconselha tanto recorrer ao Espírito Santo. Antes da sua morte, Jesus
anunciou aos seus discípulos que o Espírito Santo lhes ensinaria e lhes
recordaria tudo o que ele lhes disse (cfr. Jo 14, 26) e que
este os levaria à verdade inteira (cfr. Jo 16, 13).
A leitura
da Sagrada Escritura é um momento privilegiado em que se torna realidade esta
promessa: o Espírito Santo, autor dos livros sagrados, faz com que entendamos
melhor a vida e ensinamentos de Cristo recolhida nos evangelhos, anunciada
pelos profetas e explicadas na pregação apostólica.
O Espírito
Santo é o vínculo de amor entre os que creem, e nos introduz à comunhão com a
Igreja de todos os tempos. O Espírito Santo é “por quem a voz do Evangelho ecoa
viva na Igreja, e por ela no mundo”[16].
Juan Carlos
Ossandón
Bibliografia
– Concilio
Vaticano II, Const. Dei Verbum (18-XI-1965).
– Catecismo
da Igreja Católica, nn. 50–141.
– São João
Paulo II, Discurso De tout coeur, 23-IV–1993.
– Bento
XVI, Audiência geral, 26-IV-2006; Ex. Ap. Verbum Domini (30-IX-2010),
especialmente a primeira parte.
* * *
– G. Aranda
Pérez, «Inspiración de la Sagrada Escritura» em C. Izquierdo (ed.), Diccionario
de teología, Eunsa, Pamplona 2014, 511-517.
– V.
Balaguer, «La Constitución dogmática Dei Verbum», Annuarium
Historiae Conciliorum 43 (2011) 271–310.
– J.
Dupont, «Écriture et Tradition», Nouvelle revue théologique 85
(1963) 337-356.
– C.
Izquierdo, «Tradición» en C. Izquierdo (ed.), Diccionario de teología,
Eunsa, Pamplona, 2014.
– J.
Ratzinger, Lembranças da minha vida (1927–1977), Paulinas,
capítulo “Começo do Concílio e mudança para Münster”.
[1] Sal 78,3-4. Cfr. Francisco, Ex.
ap. Amoris Laetitia (19-III-2016), n. 16.
[2] Catecismo da Igreja Católica, n. 105.
[3] Concilio Vaticano II, Const. Dei Verbum,
n. 12.
[4] Ibid., n. 2.
[5] Dei Verbum, n. 13. Antes da Dei
Verbum, essa analogia tinha sido proposta pelo papa Pio XII na encíclica Divino Afflante Spiritu (30-IX-1943),
n. 24 (EB 559; EB = Enchiridion Biblicum). Depois fizeram a sua São João Paulo
II (Discurso De Tout Coeur, 23-IV-1993, nn. 6-7; EB 1245-1246),
o Catecismo da Igreja Católica (n. 101) e Bento XVI (Ex. Ap.Verbum Domini,
30-IX-2010), n. 18).
[6] São João Paulo II, São João
Paulo II, Sobre a Interpretação da Bíblia na Igreja, 23-IV-1993,
n. 8 (EB 1247).
[7] Ibidem.
[8] Ibidem.
[9] Cfr. Dei Verbum, n. 11.
[10] Francisco, Exp. ap. Gaudete et
exsultate (19-III-2018), n. 19.
[11] Dei Verbum, n. 8.
[12] Bento XVI, Audiência geral, 26-IV-2006.
[13] Dei Verbum, n. 8.
[14] Cfr. Dei Verbum, n. 12.
[15] Cfr. Verbum Domini, nn.
29-30.
[16] Dei Verbum, n. 8.
Fonte: https://opusdei.org/pt-br
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