Arquivo 30Dias – 07/08 - 2011
“Tudo o que São Carlos fez e realizou, o edificou sobre a rocha indestrutível que é Cristo, na plena coerência e fidelidade ao Evangelho, no amor incondicionado pela Igreja do Senhor”. O discurso do arcebispo emérito de Milão no Meeting de Rímini
pelo Cardeal Dionigi Tettamanzi
A inatualidade profética e benéfica para o nosso
tempo
Nessa linha, tomando-os da biografia de São Carlos,
apresento três exemplos, procurando aplicar-lhes aos nossos tempos “atuais”.
O primeiro refere-se à fidelidade ao dever
do próprio estado de vida como forma própria da identidade do cristão.
Borromeu teve a consciência muito viva do que poderia significar ser bispo de
uma importante diocese em tempos difíceis de transição, de reforma e de
mudança: e justamente por isso procurou sempre adequar as suas escolhas e as
suas ações a uma verdadeira “deontologia”, à qual permaneceu fiel de maneira
heroica e diante da qual soube sacrificar todo o resto.
São Carlos solicitava este sentido de dever também
aos seus padres, pelos ofícios que estes deveriam cumprir; e o solicitava aos
fiéis leigos, homens e mulheres, segundo a sua condição. Era o primeiro que não
aceitava os meios-termos e os acomodamentos, com um fácil rebaixamento em nome
de uma pálida mediocridade.
Os historiadores nos recordam que quando era jovem
cardeal em Roma, antes da sua chamada “conversão”, tinha vivido um
“cristianismo sem infâmias e sem louvores”. Este é justamente o risco que todos
nós cristãos corremos, os próprios padres e bispos: contentar-se de uma vida
cristã insípida, na qual evita-se justamente o mal “macroscópico” (que poderia
causar-nos infâmias), mas que se reduz ao mínimo indispensável para colocar em
ordem a própria consciência, sem muitos abalos.
Hoje, quando todos nós sentimo-nos já prontos e não
queremos saber de muitos desassossegos, falar de “conversão” poderia,
justamente, parecer “inatual”, ou pelo menos inoportuno. Ao contrário o exemplo
de São Carlos é atualíssimo e particularmente urgente, porque sempre na Igreja
os cristãos, todos os cristãos, de todos os níveis, são chamados a
“converterem-se” de um cristianismo “sem infâmia e sem louvores”, de um
cristianismo incolor e insípido (ou seja, sem a luz e o sal do Evangelho), a
uma vida cristã convicta, lúcida e vigilante, no exercício fiel do próprio
dever sempre e em todos os lugares, à busca de um caminho de perfeição que nos
conforma sempre mais ao modelo de toda a perfeição: Cristo Jesus, nosso Senhor.
É exatamente o que São Carlos fez de modo programático e sistemático: o seu
exemplo não nos permite desculpas ou diversivos. Ele é realmente sempre atual,
porque chama os cristãos de todos os tempos, chama também a nós cristãos do
terceiro milênio à perene e irrenunciável necessidade de nos colocarmos em
discussão. Particularmente devo dizer que da leitura dos escritos de São Carlos
e das suas indicações pastorais tive bem clara a impressão de que ele vivesse
com uma grande inquietude a distância – que por outro lado sempre existe –
entre a meta altíssima à qual o Senhor nos chama (a santidade) e a nossa
concreta resposta. Se São Carlos sentia-se em falta – e disso nascia a sua
inquietude, o seu não sentir-se com a consciência tranquila –, o que nós
podemos dizer ou fazer? Então surge uma pergunta à qual não podemos nos
subtrair: onde, em quais âmbitos da nossa vida, do nosso dever de estado,
devemos ainda “converter-nos”, imitando São Carlos, para sair de uma vida
cristã medíocre, “sem infâmia e sem louvores”?
Carlos Borromeu é atual também por um outro
aspecto: a formidável capacidade de saber conjugar de modo equilibrado
a ação e a contemplação. Todos conhecemos as muitas imagens de São Carlos
absorvido na oração, principalmente diante do Crucifixo, imerso em verdadeiras
e próprias experiências místicas. Mas a forte dimensão contemplativa que ele
sempre soube incutir à própria vida jamais afastou-o do próprio dever de pastor
de almas. Ao contrário, podemos afirmar que ele tornou-se um dos grandes
modelos de bispo e de pastor justamente porque a sua atividade pastoral era
profundamente permeada de oração e de contemplação. São Carlos “fez” muito na
sua vida, foram inúmeras as obras que levou a termo; aliás perguntamo-nos
maravilhados como fazia para encontrar tempo e forças para fazer tudo o que
fez. Vem-nos espontâneo dizer que tudo o que fez tem algo milagroso: é isso
mesmo! Realmente há algo milagroso porque tudo era pleno de oração, de conversa
com Deus, permeado de contemplação amorosa dos mistérios da salvação de Cristo,
começando pela Sua paixão, morte e ressurreição. Essa é a mensagem sempre atual
que nos vem de São Carlos: a comunhão com Deus, a oração, a contemplação não
nos arrancam da história, mas nela nos imergem em profundidade, dando-nos a
força de fazer também milagres no mundo e para o mundo. No entanto o nosso é um
tempo adoecido pelo ativismo, frenético em fazer, comprometido em produzir bens
e serviços se não se quer desperdiçá-lo. Desse modo o nosso tempo acaba por
avaliar a pessoa não pelo que é mas pelo que produz. Em semelhante contexto,
não se deve talvez falar de contemplação, de meditação, de oração e de
silêncio, como o que de mais “inatual” o nosso tempo poderia experimentar?
Porém a verdade é exatamente o contrário. São Carlos apela para que não nos
deixemos enganar por essa espécie de droga, mas para que reportemos ordem na
nossa vida, recuperando o primado de Deus sobretudo, na certeza de que o resto
virá como consequência. É a mesma advertência do Senhor: “Buscai em primeiro
lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão dadas por
acréscimo” (Mt 6, 33).
E se há um aspecto de atividade pastoral de São
Carlos que mais do que outro impressionou os seus contemporâneos a ponto de que
justamente por isso começaram a considerá-lo excepcional, foi a sua atividade
caritativa. Principalmente durante a terrível peste de 1576 ele privou-se
literalmente de tudo, dos bens de família, dos bens pessoais, não apenas das
coisas supérfluas, mas mesmo das coisas indispensáveis desde que pudesse ajudar
o povo de Milão atingido pela epidemia. E não se prodigou apenas nos momentos
de emergência, fez com que algumas instituições caritativas se mantivessem além
do da emergência da peste, consciente de que a pobreza, a necessidade, a marginalização,
a degradação social e moral são uma emergência de sempre, de todos os momentos.
De fato, em todos os momentos São Carlos brilhou como paterno socorredor dos
pobres, de cada pobre, de qualquer um que estendesse a mão para pedir-lhe
ajuda. E foi também – para usar uma terminologia da nossa cultura atual – um
“santo social”: soube ler à luz do Evangelho os problemas sociais do seu tempo,
indicou algumas soluções concretas, não teve nenhum medo de denunciar as pragas
da sociedade, como a corrupção pública, a prática da usura, os privilégios de
algumas castas, a falta do que hoje chamaríamos “consciência cívica” ou
“atenção ao bem comum”.
Mas há ainda um outro aspecto da santidade de Borromeu que merece ser evidenciado: é a dimensão ascética da sua vida. Neste ponto ele foi muito rigoroso, a ponto de causar fortes críticas e mal-entendidos entre os que viviam ao seu lado. Foi pobre, casto, humilde, penitente, praticava com grande seriedade o jejum, prolongava a oração nas horas noturnas para não diminuir o tempo diurno dos compromissos pastorais, reduzia seu repouso ao mínimo, aliás tinha a tendência de não repousar por nada. Sabemos que os médicos sempre o repreendiam por não cuidar-se suficientemente, e ele, como resposta, dizia que, se alguém obedece aos médicos, não pode ser um bom bispo! A morte chegou quando tinha apenas 46 anos, selou uma vida que se tinha consumido literalmente nas práticas ascéticas. Esse é um aspecto que nos deixa maravilhados, como ficaram seus contemporâneos que justamente perguntavam-se se São Carlos fosse imitável nestas virtudes devido a seu caráter de heroicidade. E hoje também nós nos perguntamos, porém sem cair na insídia de julgar excessivo o exercício das virtudes ascéticas assim como as viveu São Carlos, ou seja, julgá-lo “inatual” segundo os parâmetros da nossa sensibilidade atual. Semelhante juízo não poderia ser um modo tranquilizante de autoeximir-se da tarefa de imitá-lo? É-nos solicitando, antes de mais nada, a honestidade de descobrir nisso um aspecto de grande atualidade: com efeito, falar hoje de “ascese”, de “penitência”, de “renúncia”, expõe-nos ao risco de sermos zombados e julgados pessoas fora do tempo e do mundo, justamente pertencentes a um mundo de muitos séculos atrás. E no entanto, exatamente nós temos necessidade de uma chamada intensa para purificar o nosso estilo de vida e torná-lo mais sóbrio, a redescobrir o autocontrole e o domínio dos sentidos, dos instintos e das paixões incontroladas: como caminho de uma liberdade interior que nos torna donos de nós mesmos e do nosso autêntico caminho para o verdadeiro, o bem, o justo e o belo.
Fonte: http://www.30giorni.it/
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