As causas de uma “crise eucarística”
A interface litúrgico-sacramental dessa teologia
O melhor de todos os teólogos que sintetizou o problema foi Rudolf
Bultmann. Partindo da noção de “mito” na antiguidade, dos preconceitos
racionalistas que negavam a priori a realidade do sobrenatural, da crítica
histórico-textual das Escrituras e do existencialismo heideggeriano, criou uma
teologia bíblica em que toda a Escritura é apresentada como construção mítica a
ser desmitologizada pelo teólogo, em busca do seu núcleo fundamental.
Como, por este caminho, a consequência seria a completa implosão da
Igreja, Bultmann encontrou uma solução pitoresca. Valendo-se das cerimônias das
religiões pagãs, que realizavam seus cultos cosmogônicos através da encenação,
pensando que tais encenações reproduziam efetivamente a realidade, ele
interpreta em chave dramatológica e simbólica a ação litúrgica; em outras
palavras, se tudo é mito, na liturgia, a encenação do mito o torna presente, de
algum modo real.
“Assim como o batismo, também a ceia do Senhor foi derivada, segundo o
modo de pensar dos mistérios, do destino do kyrios como fundamento instituinte;
e especialmente da última ceia de Jesus com seus discípulos. É isso que dizem
as palavras introdutórias de lCor 11,23: ‘O Senhor Jesus, na noite em que foi
entregue…’ E assim Marcos transformou o relato da última ceia em relato
etiológico de um culto, entrançando a liturgia eucarística num relato mais
antigo da última ceia de Jesus como uma ceia pascal.
No fundo, derivando a ceia cúltica da última ceia de Jesus, ele indica
como sua verdadeira fundamentação a morte do Kyrios; pois corpo e sangue de
Jesus, que são distribuídos por ele nessa ceia,
naturalmente são (como o confirmam justamente os elementos interpretativos secundários),
em misteriosa antecipação, corpo e sangue do crucificado, do sacrificado. Paulo
deixa entrever isso claramente na frase por ele acrescentada em 1Cor 11,26:
‘pois todas as vezes que comerdes este pão e beberdes do cálice, anunciais a
morte do Senhor’.
Portanto, ele compreende a refeição eucarística como uma dramatização,
nos moldes dos cultos de mistérios: a celebração representa a morte do Kyrios” (Bultmann, R., Teologia do Novo Testamento, Academia Cristã, Santo
André: 2015, p. 201). Bultmann ilustra bem o fundamento dessa sua concepção do
culto através do conceito de “espírito”, tomado desde uma perspectiva
humanística:
“Para ilustrar o que acabo de dizer, podemos tomar como exemplo a noção
neotestamentária de ‘espírito’. Durante o Século XIX, as filosofias de Kant e
Hegel exerceram uma profunda influência sobre os teólogos que modelaram suas
concepções antropológicas e éticas a partir destas filosofias. Por conseguinte,
a noção neotestamentária de ‘espírito’ foi concebida num sentido idealista, segundo
a tradição do pensamento humanístico cuja origem se remonta à filosofia
idealista grega.
Considerava-se, pois, o ‘espírito’ como o poder da razão, no sentido
amplo de um poder que atua, não só na lógica e no pensamento racional, senão
também na ética, nos juízos morais e na conduta, como também no campo da arte e
da poesia. (…) Graças a seus conhecimentos dos fenômenos psicológicos, os
eruditos desta escola subtraíram algumas importantes ideias do Novo Testamento
que até então haviam sido subestimadas ou passadas por alto. Reconheceram, por
exemplo, a importância da piedade’ cultual e entusiástica, e das assembleias do
culto; entenderam de um modo novo a noção de conhecimento que em geral não
significa um conhecimento racional e teórico, senão uma intuição ou visão
mística, uma união mística com Cristo” (Idem,
Jesus Cristo e Mitologia, Novo Século, São Paulo: 203, pp. 38-39).
Quando essa concepção do culto a partir da performance e da dramatização
se encontraram com a mistagogia de Jean Danielou, a alquimia estava feita. Em
sua obra, Bíblia e liturgia: a teologia bíblica dos sacramentos e das festas
segundo os Padres da Igreja (Bibbia e liturgia: la teologia biblica dei
sacramenti e delle feste secondo i Padri della Chiesa, Società Editrice Vita e
Pensiero, Milano 1958), Danielou introduz uma nova perspectiva na teologia
sacramentária: se antes esta se preocupava sobretudo com a forma sacramental
incutida na matéria, agora ele deslocava essa preocupação para o significado da
própria matéria sacramental, para, a partir deste, compor a sua análise dos
sacramentos (aqui fundava-se a nova mistagogia que fez com que os ritos
litúrgicos fossem muito mais abordados a partir da valorização dos símbolos
para uma espécie de catequese de proveito subjetivo que propriamente da
eficácia sacramental, como a Igreja fizera tradicionalmente).
Pe. Dr. José Eduardo de Oliveira e Silva
Fonte:
https://presbiteros.org.br/
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