Aumenta registro de autoagressão e de tentativa de suicídio entre
crianças e jovens
Comportamento é sinal de sofrimento e requer atenção, afirmam
especialistas; veja onde buscar ajuda.
COMPORTAMENTO
ESPECIAL
22.ago.2023
Stefhanie Piovezan e Claudinei Queiroz
SÃO PAULO
A cada dia,
a cidade de São Paulo contabiliza em média
dez casos de autoagressão e de tentativa de suicídio entre crianças e jovens de
até 19 anos. O dado corresponde aos registros dos seis primeiros meses deste
ano e acende um alerta, uma vez que repete a alta desses tipos de caso nos
últimos anos.
Ao todo,
foram 1.863 ocorrências, conforme informações das redes de saúde pública e privada reunidas pela
Secretaria Municipal da Saúde. Essa quantidade supera em 82% a verificada no
primeiro semestre de 2019, antes da pandemia de Covid-19, quando foram
constatados 1.025 casos.
O aumento
também é confirmado pelos dados anuais. Em 2019 inteiro, os episódios somaram
2.609. E, em 2022, passaram para 3.823, 46,5% a mais.
O problema não se restringe à capital
paulista. Em Curitiba, o Hospital Pequeno Príncipe, maior hospital
exclusivamente pediátrico do país, registrou 57 casos de tentativa de suicídio
em 2022. Em 2021, foram 56; em 2020, 19; e em 2019, 16.
"As
crianças estão vindo cada vez mais cedo. No ano passado, tivemos quatro
crianças de 11 anos e, em 2021, atendemos um menino de apenas sete anos",
diz Rosane Brasil, coordenadora do serviço social do hospital.
Mas o que
está levando crianças e adolescentes a tentarem o suicídio? A resposta, afirmam
especialistas ouvidas pela Folha, envolve questões psicológicas,
familiares, sociais e econômicas e demanda cuidados em falta no país.
"O
suicídio infantojuvenil é um problema de saúde pública multifatorial e de alta
complexidade. Não é um problema só de um sujeito ou de determinada
família", afirma Daniela Prestes, psicóloga no Pequeno Príncipe.
Segundo o
Ministério da Saúde, o número de suicídios de jovens cresceu no Brasil nos
últimos anos. De 2016 para 2021, a taxa de mortalidade por cem mil pessoas
relacionada a essa causa aumentou 45% na faixa de 10 a 14
anos e 49,3% na de 15 a 19 anos, contra 17,8% na população em geral.
Também não
se trata de um desafio exclusivamente brasileiro. De acor do com a OMS
(Organização Mundial da Saúde), o suicídio é a quarta causa de morte mais
recorrente entre pessoas de 15 a 29 anos.
PANDEMIA AMPLIOU O PROBLEMA ENTRE ADOLESCENTES
A depressão e a ansiedade são observadas em
parte das crianças atendidas com sinais de autolesão ou por tentativa de
suicídio, e a pandemia de Covid-19 provocou um aumento
nesses quadros. Estudo publicado na revista Jama Pediatrics mostra
que os sintomas de depressão cresceram 26% nos jovens de até 19 anos
e que a ansiedade teve um aumento próximo de 10%.
"A
pré-adolescência e a adolescência são fases de muitas mudanças e perdas",
diz Prestes. "Esse sujeito perde o corpo da infância, perde o status de
criança e perde os pais da infância, no sentido daquele imaginário de que os
pais podem tudo, para se deparar com os pais da realidade."
E são
etapas marcadas por novas exigências da família e do meio social. "A
criança não dá conta de ter um desempenho à altura da expectativa da família e
da sua própria e isso vai aumentando o grau de ansiedade. Pode alimentar ainda
um quadro depressivo pela frustração", explica a professora Valéria
Campinas Braunstein, psicóloga e conselheira do Conselho Regional de Psicologia
de São Paulo.
A pandemia
também dificultou o cotidiano daqueles que tinham na escola um escape para os
problemas domésticos e prejudicou o desenvolvimento pela redução da interação
social. Eles voltaram para a sala de aula crescidos fisicamente, mas não
emocional e socialmente.
Além disso,
o isolamento ampliou o tempo de tela,
expondo os pequenos à felicidade tóxica e ao maior risco de violência. Quanto
mais tempo a criança passa conectada, maior a chance de exposição ao
cyberbullying e a conteúdos impróprios, lembra a psicóloga Karen Scavacini,
fundadora do Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio e
criadora do Mapa da Saúde Mental, que lista serviços
públicos de saúde mental.
AMOR, DIÁLOGO E LIMITES COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Outro
aspecto indicado pelas especialistas é a dificuldade de crianças e adolescentes
de enfrentar contrariedades. "É muito importante que na família haja amor,
diálogo e autoridade para apontar que todos nós estamos submetidos a
limites", afirma Prestes. "Os jovens estão sem condições internas de
lidar com as dificuldades e não encontram suporte no meio familiar e
social."
Do mesmo
modo, conflitos familiares por questões religiosas, de identidade de gênero e
visões políticas têm sido observados como causa de distanciamento e sofrimento
nos pacientes mais novos.
"'Sou
uma menina ou um menino? Gosto de meninas ou de meninos?’. Essas questões vêm
muito fortes nos casos de tentativa de suicídio porque eles não têm com quem
conversar. Tem muita gente para julgar, mas ninguém para ajudar", diz Rosane
Brasil.
Adicionalmente,
há a violência física, psicológica ou sexual. Levantamento do Ministério da Saúde aponta
que, de 2015 a 2021, foram notificados 202.948 casos de violência sexual com
vítimas de até 19 anos. Apenas em 2021, foram 14.269 casos envolvendo crianças
e 20.927 relacionados a adolescentes, um triste recorde.
"Nem
todas as crianças passam por tratamento psicológico assim que a violência
acontece e vão carregando esse sofrimento com elas. Muitas vezes, elas nem
entendem que aquilo foi uma violência e, quando chegam à adolescência, começam
a entender", acrescenta Brasil.
O racismo e aspectos
como desemprego dos pais e falta de moradia também são fatores importantes.
"Com crianças, especificamente, a questão social tem um peso enorme",
afirma Scavacini.
OS 3 ‘IS’ DO SOFRIMENTO
A
combinação dos fatores leva os jovens a uma sensação de desamparo e desespero.
"Eles pensam: ‘Para quê eu vou viver se a dor que estou sentindo não vai
passar?’", conta Scavacini. "Eles sentem o que chamamos de três ‘is’:
uma dor interminável, inescapável e intolerável’."
As
especialistas ressaltam que frequentemente os pacientes não querem acabar com a
própria vida, mas sim com o sofrimento. "As autolesões e as tentativas de
suicídio são sintomas de um sofrimento psíquico insuportável, são manifestações
endereçadas ao outro procurando amor, procurando resolver essas questões",
salienta Peres.
Na
autolesão, a criança busca alívio momentâneo por meio de cortes na pele. Os
machucados, porém, suscitam culpa e vergonha, aumentando a dor e levando a
novas lesões. Nas tentativas de suicídio, por outro lado, o intuito é acabar
com a dor.
Assim, há uma diferença na intencionalidade, mas ambos são considerados autodestrutivos e demandam atenção. Não são manha, rebeldia ou besteira, enfatizam as entrevistadas. "São comportamentos que representam sofrimento, precisam ser acolhidos e requerem atendimento profissional", afirma Prestes.
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/
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