Celibato eclesiástico: História e fundamentos teológicos
CARD. Alfons M. Stickler
3. O ensinamento do Antigo Testamento
É necessário agora que tratemos outro ponto, que é muitas vezes
invocado como um argumento contra a continência dos ministros nos primeiros
séculos. Costuma-se apelar, como muitas vezes já afirmamos, ao Antigo
Testamento, que, como sabemos, era legítimo e até mesmo necessário o uso pleno
do matrimônio por parte dos sacerdotes e levitas, nos dias em que viviam em
suas casas, livres do serviço do Templo. A essa objeção se pode responder de
duas maneiras.
Antes de tudo deve-se assinalar que o sacerdócio vétero-testamentário
havia sido confiado a uma única tribo que devia ser conservada, e isso fazia
necessário o matrimônio. O sacerdócio do Novo Testamento não foi definido, no
entanto, como o sacerdócio de sucessão pelo sangue e não se baseia na
descendência familiar. Um segundo e mais importante argumento a favor da distinção
entre um sacerdócio e outro diz: os sacerdotes do Antigo Testamento prestavam
um serviço temporal limitado no templo, enquanto que os sacerdotes do Novo
Testamento mantêm um serviço permanente, por isso a obrigação temporal de
continência e de pureza se estendeu a uma observância ilimitada e
contínua.
Como explicação convincente se recorre à passagem de São Paulo em I Cor
7, 5, na qual o Apóstolo aconselha aos esposos que não se recusem um ao outro,
a não ser de comum acordo, por um tempo determinado e para dedicar-se à oração.
Os sacerdotes do Novo Testamento, no entanto, devem rezar continuamente e
dedicar-se a um serviço diário ininterrupto, no qual, através de suas mãos, é
dada a graça do perdão e é oferecido o Corpo de Cristo. A Sagrada Escritura
lhes exorta a ser em tudo puros para este serviço e os Padres mandavam
conservar a abstinência corporal.
Os mesmos documentos também oferecem outros motivos de caráter pastoral:
como poderia um padre pregar sobre a continência e sobre a pureza a uma viúva
ou a uma virgem, se ele mesmo desse maior valor o trazer filhos ao mundo que a
Deus? Assim, a objeção contrária torna-se argumento a favor da continência
ministerial.
A partir dessas considerações se deduz uma imagem do sacerdote do Novo
Testamento modelado sobre a vontade de Cristo, e distinta substancialmente
daquela imagem do Antigo Testamento. Esta última foi configurada apenas como
uma função, limitada no tempo e puramente externa. Aquela, ao contrário,
implica por natureza a toda a pessoa do sacerdote, no externo e no interno, e,
portanto, o seu serviço. Cristo exige ao seu sacerdote alma, coração e corpo e
pureza e continência em todo seu ministério como um testemunho de que já não
vive segundo a carne, mas pelo Espírito (Rom 8, 8). O sacerdócio funcional do
Antigo Testamento nunca pode ser um modelo do sacerdócio ontológico do Novo,
configurado com o de Cristo. Este supera o antigo sacerdócio
essencialmente.
Assim, aqueles que receberam a mensagem da salvação de Cristo
compreenderam, já desde o início, a exigência de Mestre aos seus Apóstolos de
chegar a renunciar inclusive o casamento pelo Reino dos Céus (Mt 19, 12), e
que, como um discípulo em sentido rigoroso e pleno deve estar disposto para
deixar pai, mãe, esposa, filhos, irmão e irmã (Lc 18, 29; 14, 26). Também se
entende assim as palavras de São Paulo sobre a diversa relação com Deus dos
celibatários e dos casados (1 Cor 7, 32-33), e o seu significado no que diz
respeito ao celibato eclesiástico.
Foi tarefa da escola, ou seja, da canonística clássica a partir do
décimo segundo século em diante, descobrir, explicar e desenvolver as razões
que ligam continência e sacerdócio neo-testamentário. Na história do
desenvolvimento científico do tema, brevemente descrito na segunda parte deste
trabalho, se mencionou as dificuldades existentes então para se chegar à
elaboração de uma teoria satisfatória. Embora os antigos Padres tivessem já
entendido que a continência pertencia à essência do sacerdócio novo – como, por
exemplo, quando Epifânio disse que o carisma do sacerdócio consiste na
continência; ou Santo Ambrósio que apontava a obrigação de rezar continuamente
como o mandamento da Nova Aliança -, os glossistas, no entanto, foram incapazes
de construir uma teologia do celibato, talvez porque eram demasiado pouco
teólogos. Em seus trabalhos sobre a disciplina celibatária no Ocidente
estiveram também muito influenciadas pela disciplina oriental, cuja
legitimidade tomaram por boa, ao aceitar tanto a lenda de Pafnucio como a
legislação trullana.
No entanto, a partir dos documentos da Igreja Católica sobre este
assunto, tentaram desenvolver uma teoria na qual se continham os elementos
essenciais para uma Teologia válida. Compreenderam, sobretudo, que a
continência está em relação estreita com o ordo sacer, e que essa
lei tinha sido dada à Igreja propter ordinis reverentiam, pela
reverência que é devida à Ordem. Também entenderam que a continência está mais
unida ao Sacramento da Ordem recebido que ao homem ordenado, o qual era livre
de aceitar a Ordenação, sabendo que aceitava também a obrigação anexa.
Desde a síntese realizada por São Raimundo de Peñafort, já mencionado,
se deriva com toda certeza que naquele tempo se tinha como verdadeiro motivo da
continência clerical não tanto a pureza do ministro – que se adequaria muito
bem com a práxis oriental estabelecida no Concílio Trullano – quanto à eficácia
da oração mediadora do ministro sagrado, que procedia da sua total dedicação a
Deus. De um modo geral eram apresentadas já então as verdadeiras razões da
perfeita continência: a possibilidade de rezar com liberdade, assim como a
também completa liberdade de desenvolver o próprio ministério e para dedicar-se
ao serviço da Igreja.
Embora a Teologia dos séculos posteriores, até hoje, não desatendeu a
reflexão sobre o sacerdócio do Novo Testamento, a crise dos sacerdotes e das
vocações ao sacerdócio nestas últimas décadas – difundidas e ampliadas através
dos meios de comunicação social – exigiu com urgência um especial
aprofundamento na matéria. O fundamento para isso tinha sido posto pelo
Concílio Vaticano II, sobre o que se baseou o ensinamento do Papa João Paulo
II, que fez do sacerdócio um motivo particular do seu programa doutrinal e
pastoral desde o começo do seu pontificado. É significativo nesse sentido, que
já na sua primeira mensagem aos sacerdotes, por ocasião da quinta-feira santa,
dissesse sobre o celibato que a Igreja ocidental o quis no passado e o quer no
futuro enquanto que se “inspira no exemplo mesmo de Nosso Senhor Jesus Cristo,
na doutrina apostólica e em toda a Tradição que lhe é própria”. Nos anos
seguintes voltou várias vezes a tratar o tema do sacerdócio e do celibato unido
a ele e tem posto um grande empenho em frear as demasiado fáceis dispensas
nesta matéria.
O ponto mais alto destas preocupações de sua elevadíssima consciência
pastoral constituiu a convocatória, para outubro de 1990 do oitavo Sínodo dos
Bispos, que devia abordar a questão da formação sacerdotal no contexto das
circunstâncias atuais. Isto foi feito de uma forma exaustiva através das vozes
dos representantes do episcopado mundial, e esta questão encontrou a sua mais
perfeita expressão na Exortação Apostólica Pós-sinodal Pastores Dabo
Vobis, que pode ser considerada uma “Carta Magna” da Teologia
do sacerdócio, e que permanecerá como norma autorizada no futuro da
Igreja.
Alfons M. Stickler
Cardeal Diácono de São Giorgio in Velabro
CIDADE DO VATICANO
Tradução para o português:
Pe. Anderson Alves.
Contato: amralves_filo@yahoo.com.br
Fonte:
https://presbiteros.org.br/
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