Saber quem de fato foi Dimas e se ele existiu mesmo envolve cruzar
informações de duas fontes: de um lado, os textos apócrifos que falam um pouco
sobre ele — considerando, é claro, que neles é difícil saber onde acabam os
fatos e começam os mitos; de outro, o que se sabe sobre a prática da
crucificação na Roma antiga.
Por BBC
17/08/2023
Nominalmente, ele não é citado
em nenhum dos quatro evangelhos canônicos — Mateus, Marcos, Lucas e João, os
que constam da Bíblia.
Mas na passagem que descreve a
morte de Jesus, os quatro evangelistas mencionam que, naquele dia, três pessoas
foram crucificadas lado a lado.
João é o mais lacônico sobre
isso. Ao nominar o local da execução, o lugar chamado Gólgota, ele afirma que
"foi lá que eles o crucificaram juntamente com dois outros, um de cada
lado e Jesus no meio". E nada é dito sobre os outros dois.
Mateus e Marcos são praticamente
idênticos nessa passagem. Afirmam que Jesus foi crucificado com "dois
bandidos, um à direita, outro à esquerda".
Em ambos, o trecho prossegue
citando que o povo e as autoridades passaram a insultar Jesus. E termina
ressaltando que “até os bandidos crucificados com ele o injuriavam da mesma
forma”.
O evangelho de Lucas é o que
traz a descrição mais curiosa sobre a interação que Jesus teria tido com os
outros dois condenados.
Após enfatizar que o protagonista
da história havia sido crucificado no centro, entre "dois
malfeitores", o evangelista também cita as zombarias da população e até de
soldados.
Mas prossegue a narração
incluindo os outros dois crucificados.
"Um dos malfeitores
crucificados o insultava: 'Não és tu o Messias? Salva-te a ti mesmo e a nós
também!' Mas o outro o repreendeu, dizendo: 'Tu nem sequer tens o temor de
Deus, tu que sofres a mesma pena! Para nós, é justo: nós recebemos o que os
nossos atos mereceram; mas ele não fez nada de mal'", diz o trecho.
"E dizia: 'Jesus, lembra-te
de mim quando vieres como rei'. Jesus lhe respondeu: 'Em verdade eu te digo,
hoje estarás comigo no paraíso'", complementa a passagem do evangelho de
João.
Para a tradição cristã, este
criminoso acabou sendo classificado como "o bom ladrão".
E tanto a tradição como
pesquisas em alguns evangelhos apócrifos chegaram ao nome de Dimas como sendo a
identidade deste cidadão.
O Martirológio Romano, o
catálogo dos santos considerados oficiais pelo Vaticano, registra-o como o
"santo ladrão, chamado Dimas, segundo a tradição". E o define como
aquele "que na cruz professou a fé em Cristo e mereceu ouvir dele estas
palavras: 'Hoje estarás comigo no paraíso'".
Canonizado pelo próprio Jesus
"A tradição o faz padroeiro
dos prisioneiros, condenados e ladrões arrependidos", conta à BBC News
Brasil o pesquisador José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de
Hagiologia e professor na Universidade Estadual Vale do Acaraú, no Ceará.
Para religiosos e estudiosos de
hagiologias, ele foi o primeiro santo da história.
"É interessante comparar um
processo de canonização com a sagração de São Dimas", comenta o
pesquisador Thiago Maerki, associado da Hagiography Society, dos Estados
Unidos.
"Porque ele foi declarado
santo pelo próprio Cristo, foi Cristo quem o canonizou. Seguindo essa linha
eclesiológica, embora não tenha sido uma canonização nos moldes convencionais,
sua sagração seria de causar inveja a qualquer santo, a qualquer cristão",
acrescenta ele.
"Mesmo sendo a inveja um
sentimento não aceitável para um cristão, estou falando só de brincadeira. Mas
ser declarado pelo próprio Jesus é uma coisa única. E São Dimas recebeu
isso."
Lira concorda que "a pessoa
representada no nome de Dimas" deve ser considerada o primeiro santo da
história.
"É o bom ladrão. Uma das
testemunhas do sacrifício maior de Jesus, a crucificação", diz.
"Ele pediu a Jesus que se
lembrasse dele quando estivesse no paraíso e Jesus confirmou que ainda naquele
dia ele estaria 'comigo no paraíso'. Podemos dizer que o próprio Cristo o
canonizou, o elegeu, levando-o consigo ao seu reino."
Saber quem de fato foi Dimas e
se ele existiu mesmo envolve cruzar informações de duas fontes: de um lado, os
textos apócrifos que falam um pouco sobre ele — considerando, é claro, que
neles é difícil saber onde acabam os fatos e começam os mitos; de outro, o que
se sabe sobre a prática da crucificação na Roma antiga.
Nos apócrifo
"Os evangelhos canônicos
não registram seu nome. Somente a tradição e os apócrifos e, a partir dos
apócrifos tem muitas histórias sobre ele, mas carecem de comprovação",
ressalva Lira.
"Ele não foi discípulo nem
apóstolo de Jesus, contudo, na hora áurea em que Jesus disse 'tudo está
consumado', ele estava ali bem próximo e, ao contrário do outro crucificado que
pedia a Jesus para livrar-lhe da morte, ele pediu a salvação, diríamos, a
melhor parte, no que foi atendido pelo próprio Deus filho, de imediato."
Considerando os quatro
evangelhos canônicos, é curioso o fato de que a menção aos dois ladrões não é
equivalente.
"Em Marcos e em Mateus,
dois criminosos foram crucificados com Jesus e ambos o ultrajaram e o
insultaram. Diferentemente daquilo narrado em Lucas, em que um deles [o que
seria Dimas] o defendeu", compara Maerki.
"Já João fala sobre duas pessoas
que foram crucificadas com Jesus, mas não faz qualquer menção aos
insultos."
O mais antigo registro de que se
tem conhecimento do nome do bom ladrão remonta ao século IV. Está no Evangelho
de Nicodemos. Ali são apresentados Dimas e também o mau ladrão, Gestas.
"Na verdade, nesse texto
ele é chamado de Disma", atenta Maerki, ressaltando que outras tradições
cristãs conferem a ele outros nomes, como Demas, para os coptas, e Rakh, para
os ortodoxos russos.
Nesse evangelho, há inclusive
menções aos crimes cometidos por ele.
"Diz-se que ele era
originário da Galileia e que lá era dono de uma pousada", complementa o
pesquisador.
"Ele atacava os ricos, mas
se preocupava com os pobres, favorecia os pobres, seria uma espécie de Robin
Hood cristão."
"No chamado Evangelho Árabe
da Infância de Jesus ele é Tito e o outro ladrão, Dímaco", conta Maerki,
citando o texto apócrifo do século 6.
Neste documento, aliás, está a
mais curiosa narrativa incluindo os dois companheiros de execução de Jesus.
"Ele [o evangelho] diz que
Tito e Dímaco, juntamente a outros ladrões do seu bando, teriam tentado roubar
Maria e José [os pais de Jesus], durante a fuga para o Egito [episódio ocorrido
logo após que Jesus nasceu, segundo o evangelho de Mateus], mas Tito impediu que
isso acontecesse, o que configuraria um prenúncio de que ele era um homem que
se tornaria santo", conta o pesquisador.
Segundo a narrativa, o então
bebê Jesus teria visto os bandidos e profetizado que, 30 anos mais tarde, os
três morreriam juntos, condenados à execução na cruz.
Maerki enfatiza que, conforme
esse texto, Jesus teria dito que Tito o "precederia no paraíso".
"Isso é muito
interessante", comenta ele.
Crucificação
É preciso lembrar, contudo, que
a crucificação de Jesus, seja ao lado de outros dois considerados criminosos,
seja em outra configuração, não foi uma exceção. Era o modus operandi
condenatório da Roma antiga.
"Crucificar alguém era uma
decisão do Estado", frisa à BBC News Brasil o historiador André Leonardo
Chevitarese, professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ) e autor de, entre outros livros, Jesus de Nazaré: o que a
história tem a dizer sobre ele.
Este ponto é importante porque,
segundo o pesquisador, promove uma leitura que aceita a ideia de que Jesus
tenha sido executado na companhia de outros dois.
"A prática das
crucificações culminou com a execução de 6 mil escravos ao longo da Via Ápia. A
média de crucificações na guerra judaico-romana era de 500 pessoas por dia.
Então, a ideia de três indivíduos crucificados simultaneamente não é estranha,
fazia parte da rotina", pondera.
O pesquisador diz que, partindo
dos relatos tanto dos evangelhos canônicos quanto dos apócrifos, é possível
entender que aqueles três condenados, inclusive Jesus, eram na verdade
"bons ladrões".
"Todos foram crucificados
sob o argumento de que eram 'bandidos sociais', ou seja, ao estilo de Lampião e
de tantos outros."
Para Chevitarese, se há um
problema histórico na menção aos outros dois condenados, isto não reside no
fato de haver ou não crucificações coletivas.
Mas sim no ponto de que a menção
ao número de três condenados só aparece em narrativas da segunda metade do
século I, ou seja, muito após a morte de Jesus.
"Paulo [cujas cartas são os
textos mais antigos, cronologicamente, do Novo Testamento], que escreveu nos
anos 50 [do primeiro século], não faz menção a dois outros indivíduos
crucificados com Jesus. Ele apenas diz que Jesus havia sido crucificado",
salienta o historiador.
Um trio na cruz
"Não estou dizendo que
historicamente aquele fato se deu ou não, mas estou dizendo que historicamente
o Estado romano podia, sim, crucificar, um indivíduo, três indivíduos, cinco ou
dez ou 6 mil", comenta.
Mas quando o olhar se detém
minuciosamente nos textos sagrados há discrepâncias e incongruências que botam
em xeque a própria existência de São Dimas. "É quando [a autoridade]
Pilatos argumenta que faz parte da tradição romana libertar um prisioneiro
durante o dia de festa, à época de festa", atenta Chevitarese, ressaltando
que tal "costume" não encontra endosso em outros documentos antigos.
Na sequência dessa narrativa,
são apresentados à multidão Jesus e outro condenado, Barrabás, para que o
escrutínio popular escolhesse qual dos dois deveria ser executado e qual ganharia
a absolvição. "Este é ponto de partida", diz Chevitarese.
"Atente para o fato de que
só dois foram chamados para essa escolha, os outros dois [supostamente mortos
ao lado de Jesus] não foram chamados. Há, portanto, uma incongruência."
A figura de Barrabás, o bandido
libertado depois da a popular, é ainda mais difícil de ser confirmada.
"Nunca encontramos qualquer
vestígio ou indício de que era da tradição romana libertar um prisioneiro em
época de festa, em qualquer província romana", salienta.
"Se existiam quatro
prisioneiros, Jesus, Barrabás, Dimas e o outro bandido social, por que eles
todos não foram perfilados um ao lado do outro, de modo que o povo pudesse
escolher?", questiona o pesquisador.
"Talvez porque nunca tenha
existido de fato essa cena. Um crucificado indo parar diante de alguém como
Pilatos, uma autoridade como Pilatos perdendo tempo com esses caras… Isso é
pura ficção."
Para Chevitarese, essa passagem
"não tem nada de história", mas sim é "um discurso antissemita,
o momento em que se constrói a narrativa de que de um lado está Jesus, de outro
Barrabás, o povo judaico". "Nessa passagem está a ideia de que os
judeus mataram o próprio Deus. E daí para a frente é só ladeira abaixo",
argumenta.
Considerando tudo isso, o
historiador explica que, no âmbito das narrativas neotestamentárias, “quando
ocorre de se deparar com um personagem cuja menção não traz sua história
pregressa, tampouco sua história após do fato que justifica sua inserção no
texto, a probabilidade de ele ser um personagem meramente literário é
gigantesca".
"Dimas é exatamente isso.
Seu nome já é tradição pura. Essa figura, a ideia do bom e do mau ladrão, é
literatura, não tem fundo histórico, não tem nada. A ideia é mostrar que até o
último segundo Deus tem o poder de salvar o pecador", contextualiza
Chevitarese.
Última conversa
Tudo isso precisa ser levado em
conta. Mas considerando que os crucificados sofriam dor e humilhação
descomunais, faz sentido imaginar que Jesus tenha conseguido interagir
minimamente com dois colegas?
"Eles [os crucificados]
estavam cheios de dores, cãibras, sensações horrorosas, dificuldades de
respiração, enfrentando a voracidade de aves de rapina. Era uma tortura
absolutamente violenta, os caras estavam quebrados", diz o historiador.
Mas, neste caso, há um certo
lastro histórico para tal comportamento. Chevitarese lembra dos relatos do
historiador Flávio Josefo (37-100). Há uma passagem em que, quando Josefo
andava por uma área em que havia um enorme grupo de crucificados, acabou
intercedendo para que três de seus amigos fossem libertados. Corria o ano de
69. As autoridades atenderam ao seu pedido.
"Então, por mais macabra
que possa ter sido essa conversa, houve uma conversa entre Tito e seus amigos
que estavam sofrendo sob a cruz", afirma o historiador.
Chevitarese também lembra que esse tipo de comportamento poderia ser observado "ao menos no início das torturas", quando os condenados estariam "lastimando ali suas horas finais de vida". "E isso não seria de todo estranho, de todo absurdo", concorda.
Fonte: https://g1.globo.com/
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