AUTISMO EM ADULTOS: COMO LIDAR COM O DIAGNÓSTICO TARDIO
Publicado e revisado em: 9 de junho de 2022
O diagnóstico, mesmo que tardio,
aliado à terapia, é fundamental para o autoconhecimento e desenvolvimento da
independência.
“Entre a nossa comunidade,
brincamos que crianças autistas não envelhecem; elas entram no pote no final do
arco-íris e desaparecem.” É dessa forma descontraída, porém crítica, que
Luciana Viegas, 28 anos, pedagoga, ativista pela neurodiversidade e
idealizadora do movimento “Vidas negras com deficiência importam”, define a
relação da sociedade com o apagamento dos adultos no espectro.
De fato, a discussão sobre
o transtorno do espectro autista (TEA) na fase adulta
ainda é restrita, mas isso não significa que as pessoas deixem de fazer parte
do espectro com o avançar da idade. O autismo é uma condição para a vida toda, e
compreender seu funcionamento em cada fase da vida é fundamental para garantir
qualidade de vida e inclusão social das pessoas autistas.
Para começar a explicar o que é
o TEA, o mais fácil é dizer o que ele não é. Ao contrário do que os estigmas
afirmam, o transtorno do espectro autista não caracteriza uma doença, mas sim
uma variação do funcionamento típico do cérebro. No livro “guia” dos
diagnósticos de saúde mental, DSM-5, o TEA faz parte dos
transtornos do desenvolvimento neurológico, no qual os sintomas tendem a se manifestar
nos primeiros anos de vida.
Esses sintomas são
principalmente déficits em funções de comunicação, sociabilidade e interação, e
a presença de comportamentos, interesses e atividades restritas e repetitivas.
Eles podem estar presentes em maior ou menor intensidade.
Um autismo para cada pessoa
Há, inclusive, uma classificação
com o objetivo de facilitar e orientar o manejo e as intervenções necessárias
para cada pessoa. Atualmente, essa classificação é bastante questionada pela
própria comunidade autista, uma vez que, por ser o espectro, é difícil “colocar
em caixas” cada manifestação do transtorno. De qualquer forma, essa
classificação é mais útil para definir o nível de apoio demandado por cada um.
Ela é dividida entre graus e grupos.
- Nível 1: existe uma dificuldade
para a interação social, porém sutil, além de dificuldade para troca de
atividades e problemas de organização, também de forma leve. Exige apoio
leve.
- Nível 2: a dificuldade para
socialização é maior. Há também uma resistência a lidar com mudanças, além
de comportamentos repetitivos. Exige apoio moderado.
- Nível 3: há déficit de
comunicação verbal e não verbal de forma mais clara. A pessoa também
possui dificuldade em abrir-se para interações sociais que partam de
outras pessoas, muita dificuldade em mudanças e comportamentos repetitivos
constantes. Exige muito apoio.
“Já em relação ao grupo, existem
a síndrome de Asperger; o transtorno autista; o transtorno
invasivo do desenvolvimento; e, por fim, o transtorno desintegrativo da
infância”, explica Dr. Marcelo Valadares, neurocirurgião, médico do Hospital
Israelita Albert Einstein e pesquisador da Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Uma frase muito dita tanto pelos
especialistas quanto por indivíduos autistas é que “Existe um autismo para cada
pessoa”. E, considerando a variedade na manifestação dos sintomas e no
funcionamento dentro do espectro autista, não há o que define melhor a
condição.
Descobrindo-se autista
Mas, quando falamos em adultos
diagnosticados tardiamente, costuma haver um padrão: são pessoas que manifestam
os sintomas de forma mais leve, tidas apenas como tímidas ou com dificuldades
sociais típicas, o que atrasa o diagnóstico.
É o caso da Patrícia Ilus, 42,
artista e apresentadora no “Adultos no Espectro”,
projeto no Instagram que busca trazer visibilidade aos adultos autistas. Ela
recebeu o diagnóstico apenas aos 41 anos, mas conta que sempre percebeu ter
dificuldade em socializar. A decisão de buscar um especialista veio depois de
uma situação no trabalho.
“Tinha muitas dificuldades em
relação a minha socialização, minha percepção sensorial e aos stims (movimentos
autoestimulatórios), mas acreditava que era tímida e apenas diferente. Quando
duas produtoras que trabalhavam comigo partiram para outros projetos, entrei
numa crise profunda, que me fez ver que eu não tinha superado minhas
dificuldades. Elas viabilizavam meu trabalho no que diz respeito a fazer
contato com as pessoas. Sem elas, me senti completamente perdida e comecei a
pensar seriamente que pudesse ser autista, pois sabia que a condição afetava
relações sociais.”
A princípio, Patrícia buscou ajuda
pelo SUS, mas infelizmente não encontrou uma equipe preparada para lidar com a
possibilidade de um diagnóstico do TEA em uma pessoa adulta.
“Tentei apoio pelo SUS, mas não
consegui prosseguir com a investigação. O clínico geral que me atendeu não
levou minha queixa a sério, e disse que eu não era autista depois de 5 minutos
de consulta. Tentei a psicóloga do postinho, mas os atendimentos foram
suspensos com a pandemia. Resolvi juntar dinheiro para conseguir minha
avaliação pela rede particular. Meu diagnóstico não foi demorado e não deixou
dúvidas. Ou seja, eu só precisava encontrar os profissionais certos”, relembra.
Autismo e raça
O relato se assemelha ao da
pedagoga Luciana, que, além de lidar com a falta de preparo da equipe, encarou
ainda um outro empecilho: o racismo. “O autismo tem raça, classe social. Quando
discutimos o transtorno, logo pensamos em um homem branco muito inteligente.”
Ela começou a suspeitar da
condição depois que seu filho, Luiz, foi diagnosticado como autista quando
tinha um ano e nove meses. A descoberta do próprio diagnóstico motivada pelo
diagnóstico de um filho ou parente não é exclusividade de Luciana, como explica
a seguir o dr. Marcelo Valadares.
“Principalmente quando falamos
sobre os graus mais leves do TEA, é muito comum que pais, que começam a
entender melhor o assunto após diagnosticarem seus filhos, descubram que
convivem com o autismo há anos. Muitas vezes, existe uma discreta dificuldade
para interação social, mas essas pessoas são consideradas apenas tímidas, e isso
acaba anulando qualquer investigação.”
Já pesquisando sobre o TEA e
percebendo suas próprias características, Luciana decidiu compartilhar sua
suspeita com o clínico geral que a acompanhava pelo SUS. O profissional
concordou com a hipótese, e realizou o encaminhamento para a neurologista. Foi
quando o desgaste começou.
“Na hora que eu entrei no
consultório, a neurologista já disse que eu não era autista. Falou que eu
estava lendo demais sobre autismo e por isso estava achando que tinha o
diagnóstico, mas que isso era coisa da minha cabeça. A desculpa foi que eu era
casada, o que não faria sentido para uma pessoa autista”, relembra.
Além do próprio capacitismo da
profissional em questão – uma vez que o espectro abrange diferentes graus de
comprometimento das relações sociais, e uma pessoa autista pode perfeitamente
desenvolver um relacionamento –, Luciana chama atenção para a questão racial, e
conta que se sentiu negligenciada.
“Eu sou uma mulher negra, então
todas as vezes que eu tinha uma crise de descontrole era associada a
transtornos mais marginalizados. O autismo não é um transtorno marginalizado. O
autismo tem raça, tem classe. Sempre que a gente fala em autismo, nós
imaginamos homens brancos muito inteligentes. E aí, quando você traz isso para
mulheres negras, o que sobra? Nada. Sobra a gente tentando dar conta desse
processo de forma solitária. Quando eu fui pra internet conhecer outras
mulheres negras autistas, vi que as histórias batiam. São várias e várias
mulheres negras que passam a vida toda sofrendo com o capacitismo, o racismo, e
não têm acesso ao diagnóstico”, desabafa.
Fonte: https://drauziovarella.uol.com.br/
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