Por Miriam Goldenberg - Antropóloga e professora da UFRJ.
13.set.2023
É proibido envelhecer: se você está velho, a culpa é sua!
Há duas
semanas, quebrei um pedaço do dente molar. "Nossa", pensei,
"estou ficando velha!". Meus dentes não aguentam mais mastigar as
mesmas coisas que sempre comi, como castanhas-do-pará. Por que fui tão burra de
mastigar uma coisa tão dura? Que raiva de mim mesma. A culpa é minha!
Fui à
dentista. Ela disse que, provavelmente, o molar quebrou porque tenho bruxismo,
estou apertando muito os dentes durante a noite. E me aconselhou: "Mirian,
seus dentes pioraram muito. Por que você não se aposenta? Você não precisa mais
trabalhar tanto assim. O desgaste dos dentes é reflexo da sua tensão, ansiedade
e preocupação com o trabalho. Você precisa se divertir mais, viajar com o
marido, sair com as amigas, aprender a não fazer nada". Em resumo: como o
meu maior prazer é trabalhar, vou acabar ficando uma velha desdentada. E a
culpa é minha!
Depois de
ficar mais de duas horas com a boca aberta na dentista, tive 38,7 graus de
febre, dor de garganta, tosse, espirros, nariz entupido, noites sem dormir e
estou até hoje sem paladar e olfato. Poxa, sempre uso máscara em locais
fechados e tomei todas as doses da vacina para Covid e gripe. Só tirei a
máscara para ir à dentista. Quem mandou comer castanha-do-pará? A culpa é
minha!
Para piorar
ainda mais a situação, na semana anterior havia ido à ginecologista. Levei uma
bronca porque a minha osteoporose, que já era grave para a minha idade, piorou
nos últimos três anos. Segundo ela, eu não poderia ter parado de tomar a
injeção para osteoporose. "Não pode parar!", ela me repreendeu,
"quando para de tomar a injeção dá efeito rebote. Você não sabe que o
risco de fraturar o fêmur é muito perigoso na sua idade?". Mas, então, por
que ela nunca me avisou que eu não poderia parar de tomar a injeção caríssima?
Por que ela nunca me falou do tal efeito rebote? Não interessa se ela foi
relapsa, lógico que a culpa é minha!
O pior de
tudo não foi a febre, a tosse, a dor de garganta, a insônia, a osteoporose, o
dente quebrado e o dinheiro que gastei com médicos, dentistas, exames e
remédios. O pior foi levar broncas de profissionais que me disseram que estou
fazendo tudo errado, que não estou sabendo me cuidar do "jeito certo"
para a minha idade. Afinal, ficar velha é culpa minha!
Na minha
pesquisa sobre envelhecimento e felicidade, quando
perguntei às mulheres "Quem vai cuidar de você na velhice?", elas
responderam categoricamente: "Eu mesma". E, em seguida, "minhas
amigas".
Já os
homens responderam: "Minha esposa", "minhas filhas" e
"minhas netas".
São as
mulheres que cuidam. Elas cuidam de todos da família e reclamam que não sobra
tempo para cuidar de si. As mulheres da chamada "geração sanduíche"
sentem-se sufocadas por obrigações e responsabilidades de cuidar dos pais
idosos, dos cônjuges, dos filhos e netos. Algumas cuidam até mesmo dos
ex-maridos que ficaram doentes, apesar de estarem separadas há muitos anos. Um
dos casos mais emocionantes que pesquisei foi o de uma escritora de 98 anos que
me disse que não poderia morrer nunca, pois precisava cuidar do filho de 72
anos que teve um AVC e um infarto.
Quando eu
era bem mais jovem, minhas amigas me questionavam: "Quem vai cuidar de
você na velhice? Como vai ser sua velhice se você decidiu não ter
filhos?". Eu respondia: "Quem vai cuidar de mim na velhice? Eu
mesma!".
Hoje,
quando me fazem a mesma pergunta, não sei como responder. Primeiro, porque já
estou me sentindo uma velha decrépita e descartável. Segundo, porque, apesar de
tantos anos de pesquisas, parece que não estou sabendo como cuidar de mim do
"jeito certo". E, pior ainda, a culpa é minha!
É preciso
ter muita coragem para envelhecer em um país que trata os mais velhos como
inúteis, ignorantes, teimosos, difíceis, ridículos, invisíveis, decrépitos e
descartáveis. Ficar velho, no Brasil, é uma espécie de "morte
simbólica".
Há mais de três décadas eu venho repetindo como um mantra: "O jovem de hoje é o velho de amanhã". Parafraseando Guimarães Rosa, o que a vida quer é ver a gente aprendendo a se cuidar no meio da juventude, e se cuidar ainda mais no meio da velhice. O que a vida quer da gente é coragem.
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/
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