Tolkien não escrevia com um interesse catequético ou apologético – e isso traz um sabor especial à religiosidade, profundamente cristã, de sua obra. Entenda:
Os Valar (anjos) esperavam há muito pelo encontro com os Primogênitos que Ilúvatar (Deus) havia lhes prometido criar no mundo. E aconteceu que um desses Valar, se afastando de seus lugares de caça, como que por acaso encontrou aqueles a quem tanto esperava. E, os vendo, encheu-se de admiração, como se eles fossem inesperados, maravilhosos e imprevistos… Porque assim é como as coisas de Deus: parecem novas e surpreendentes, ainda que as esperássemos desde sempre.
Essa narrativa, imaginada por J.R.R. Tolkien, em seu O Silmarillion (Harper Collins Brasil, 2019), diz muito não só sobre a sua obra, mas também sobre o coração de seus leitores. Seu estilo, a literatura de fantasia, se tornou um sucesso mundial cada vez maior porque nos fala de alguma coisa pela qual esperamos ardentemente, ainda que nos pareça surpreendente quando encontramos. Nosso coração insiste em reconhecer que algo subsiste para além da aparência material do mundo, um mistério – ou melhor, um Mistério, com letra maiúscula – nos acompanha em nosso perambular cotidiano. Esperamos o tempo todo que algo venha nos resgatar da mesmice de sempre, dos esforços e sofrimentos sem sentido, dos prazeres vazios que parecem se esvair em nada. Tolkien, de forma magistral, escreveu sobre esse algo. Sua Terra Média, ambientação de O Senhor do Anéis, realmente não existe ou existiu em qualquer território material, nesse planeta ou em outro, mas está sempre presente, ainda que sem as personagens e figuras emblemáticas imaginadas por Tolkien, no coração de cada ser humano.
Superando um velho preconceito e descortinando novos horizontes
Já houve um tempo em que a literatura de fantasia foi condenada, por muitos cristãos, como um chamado ao paganismo, convite a práticas esotéricas e crenças contrárias à fé. Era um contexto no qual, infelizmente, o formalismo se sobrepunha ao espírito. Imaginava-se que tudo que não se encaixasse dentro de um discurso católico rígido representa uma negação e uma fuga dos princípios cristãos. A própria especificidade de cada obra era perdida (um livro escrito para entretenimento não é um tratado de filosofia), o medo da influência de discursos subliminares embotava o discernimento e não permitia distinguir o que é verdadeiramente contrário à fé daquilo que até afirma a fé…
Com isso, muitos cristãos perdiam a chance de se fascinar com obras que, com outras linguagens, poderiam ajudá-los a compreender melhor a própria experiência religiosa. Além disso, se perdia uma importante oportunidade de um diálogo evangelizador, aos moldes daquele proposto por São Paulo, dirigindo-se aos atenienses, ao referir-se ao Deus Desconhecido, que adoravam sem conhecer (At 17, 23).
Nesse sentido, podemos compreender e valorizar o fascínio que Tolkien exerce entre movimentos que vão dos hippies, com suas propostas de contracultura na década de 1960, aos atuais geeks, apaixonados pelo mundo virtual e pelas fantasias veiculadas online. O mundo de O Senhor dos Anéis é uma ponte para que pessoas muito diferentes possam falar e se entender sobre “as coisas e as histórias que realmente importam”, parafraseando uma frase de Sam Gamgee no filme de Peter Jackson.
Uma grande história sobre os humildes que herdarão a Terra
Tolkien não escrevia com um interesse catequético ou apologético – e isso traz um sabor especial à religiosidade, profundamente cristã, de sua obra. Essa religiosidade não é um projeto intelectual, mas um diálogo que nasce espontaneamente entre o coração e a imaginação do autor. Nesse sentido, não se pode negar que algumas aproximações entre a narrativa tolkieniana e as tradições e elementos da tradição cristã podem ser um pouco (ou muito) forçadas, mas outras são até difíceis de não se considerar.
Para se entrar verdadeiramente no espírito de O Senhor dos Anéis, é fundamental a leitura de O Silmarillion, conjunto de contos nos quais Tolkien narra a história de sua Terra Média, desde o surgimento de todas as coisas, por vontade de Deus, até os eventos descritos na Trilogia filmada por Peter Jackson. Com esse pano de fundo, se percebe que a obra tolkieniana nos fala dos perigos da vaidade e da arrogância; de como os poderosos, vítimas de suas próprias ambições e prepotências, se perdem e são contaminados e vencidos pelo Mal. Trata-se de uma grande elegia aos pequenos e aos fracos, uma declaração de confiança numa salvação final que não virá da força ou do poder, mas sim do amor e do dom de si.
Dificilmente, numa história de aventuras, se encontrará um herói mais “cristico” que Frodo Baggins. O pequeno hobbit também nasce numa terra esquecida pelos registros históricos dos poderosos, realiza sua missão não por ser forte e poderoso, mas sim por ser puro e humilde, pronto para sacrificar-se pelo bem do mundo. Seu trajeto até a Montanha da Perdição, onde destruirá definitivamente o Anel – eliminando a possibilidade do mal vencer no mundo – se aproxima de certa forma à subida de Jesus a Jerusalém e ao Gólgota, onde Ele salvará a humanidade. De modo similar, Sam Gamgee, seu fiel colaborador, não é outro que não o santo, ser humano fraco e confuso, até cômico em suas limitações, que não encontra outra razão de ser que não aquela de olhar, apoiar e carregar no mundo o seu senhor.
Tolkien e o senso religioso
Mas, não é demais repetir, esses e muitos outros paralelos entre o cristianismo e a obra de Tolkien se tornam forçados – e até caricaturais – se entendidos como um projeto intelectual. São consequências naturais de um modo de ver o mundo. A fé é um modo de olhar o mundo, percebendo a Transcendência que se oculta em cada detalhe da realidade. Esse olhar impregnou a imaginação de Tolkien e se refletiu em suas obras – e nos impacta, mesmo quando não nos damos conta de sua origem, pela profunda correspondência com as exigências mais profundas de nosso coração.
Por conta dessas implicações da obra de Tolkien, o Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP, com o apoio da revista Passos, do movimento Comunhão e Libertação, promove o Encontro “Tolkien: vida, obras e o senso religioso”, com a presença de três profundos conhecedores da sua obra: Diego Klautau, doutor em Ciências da Religião pela PUC-SP, professor do curso de especialização em Teologia e Ensino Religioso da Faculdade de Teologia da PUC-SP; Rafael Soares, autor do blog “O bolseiro”, sobre a obra de Tolkien; Luana Maíra Rufino Alves Zubelli, doutora em Economia Criativa pela UFRJ, Coordenadora de Cinema e Vídeo da ANCINE. O evento acontecerá na sexta-feira, 29 de setembro, a partir das 19h30, podendo ser visto tanto presencialmente quanto online. As inscrições podem ser feitas no link https://eventos.pucsp.br/tolkien/.
Fonte: https://pt.aleteia.org/
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