Arquivo 30Dias – 08/09 - 2003
Inculturação no primeiro milênio
Bruno Luiselli, professor catedrático de literatura latina, explica em seu último livro como o cristianismo se difundiu entre os analfabetos e os pobres nos primeiros séculos, falando em sua língua e através de sua cultura. Desde o início, a dinâmica da inculturação foi uma necessidade óbvia, ainda que não teorizada. Entrevista
por Paolo Mattei
O professor Bruno
Luiselli chama o período do século V ao VIII d.C. na Europa Ocidental de «era
romano-bárbara». Séculos de convulsões históricas, de fronteiras violadas,
de emigrações massivas e violentas de populações nómadas e pagãs nos
territórios do antigo Império Romano. Séculos que sempre foram metaforizados
às pressas na imagem do pôr-do-sol, com a noite de silêncio cultural e humano
que naturalmente se seguiria. «Eu, por outro lado, sempre estudei este
período com os olhos não voltados para o seu passado, mas para o seu
futuro. Considero essa idade não em retrospectiva mas em perspectiva»,
explica ao 30DiasLuiselli, professor titular de literatura latina
na Universidade La Sapienza e professor do Instituto Patrístico Augustianum de
Roma. A perspectiva de “perspectiva” adoptada pelo professor permite-nos
observar melhor a riqueza dos frutos que durante os séculos da época
romano-bárbara amadureceram na Europa Ocidental em termos de crescimento humano
e cultural. No seu último livro, A Formação da Cultura da Europa
Ocidental (Herder, Roma 2003), Luiselli reconstitui as etapas dessas
grandes transformações. E presta especial atenção ao processo de
evangelização dos povos do Império e dos chamados bárbaros, utilizando as
categorias sociológicas de cunhagem muito recente como “inculturação” e
“aculturação”. Fizemos algumas perguntas a ele.
Qual é o sentido de falar de inculturação nos primeiros séculos do
cristianismo?
BRUNO LUISELLI: Inculturação é um termo que constitui uma conquista de
hoje, especialmente desde o Concílio Ecumênico Vaticano II. É a dinâmica
através da qual a mensagem evangélica e a doutrina cristã entram nas línguas e
nas culturas locais, são inculturadas precisamente, para chegar adequadamente
aos destinatários da própria mensagem, da própria doutrina. Uma
bibliografia agora rica floresceu sobre inculturação durante muitos
anos; conferências são realizadas e muito se teoriza sobre
isso. Então me perguntei: uma dinâmica desse tipo, mesmo que não fosse
teorizada como agora, estava ausente no cristianismo antigo, na Igreja
antiga? Comecei a refletir e percebi que muitos aspectos e dinâmicas do
cristianismo primitivo nada mais eram do que inculturação. Não houve
teorização sobre inculturação, mas era uma necessidade óbvia. E então
decidi escrever esta história da cristianização dentro do mundo romano e nas vertentes
ditas bárbaras, germânicas e celtas.
Você explica que uma das primeiras manifestações do conceito de inculturação
pode ser encontrada no discurso de Paulo aos atenienses no Areópago.
LUISELLI: Sim, é o episódio que lemos em Atos dos Apóstolos 17,22-31. Paulo
é o primeiro a afirmar a assunção do cristianismo de elementos da cultura pagã,
justamente o altar ao deus desconhecido e o verso do poeta-filósofo grego
Arato: “desse deus somos a linhagem”. O Apóstolo proclama que o altar que
os pagãos dedicaram ao deus que não conhecem, eles ergueram inconscientemente
ao Deus verdadeiro. Paulo então enuncia a assunção das realidades pagãs para
usá-las para os propósitos da proclamação cristã. Mas gostaria de dizer
que a inculturação na história do cristianismo se manifesta ainda antes do
discurso no Areópago. Acontece pela primeira vez precisamente na própria
Encarnação, quando o Verbo com P maiúsculo, Deus, assume a natureza humana e se
expressa com a palavra do homem, ao longo do tempo, no lugar e na cultura
particulares em que Jesus viveu. «O Verbo se fez carne e habitou entre
nós», diz João.
Quem são os destinatários da inculturação cristã nos primeiros séculos?
LUISELLI: Em primeiro lugar, os pobres. Em Mateus 11:5 lemos que “a
boa notícia é anunciada aos pobres”. E os destinatários da primeira das
bem-aventuranças ( Mt 5,3) são «os pobres de espírito» que, na
minha opinião, são precisamente os pobres, aqueles que não possuem
riquezas. Isto é confirmado pela bem-aventurança paralela, a de Lucas
6,20, na qual se diz apenas “bem-aventurados os pobres”. Com efeito, o
esclarecimento “no espírito” sublinha, na minha opinião, a condição que não
permite aos pobres a arrogância e o carácter dogmático típicos das classes
economicamente hegemónicas.
Como se expressa esta preferência pelos pobres na evangelização do mundo
romano?
LUISELLI: Os pobres, as massas analfabetas, são o componente enormemente
majoritário da sociedade antiga. Então a mensagem cristã é inculturada
entre os pobres, entre as massas analfabetas, falando com a sua língua e com a
sua cultura. Mostro neste livro como o latim, através do qual a mensagem
cristã é expressa quando dirigida às massas do mundo romano, é um latim humilde
e degradado. É por isso que faz os intelectuais pagãos torcerem o
nariz. Os apologistas cristãos respondem às suas críticas com uma
magnífica postura antigramatical e antipurista. Como explica Arnóbio: “O
que é dito talvez seja menos verdadeiro se cometemos erros de número, de caso,
de preposição, de particípio ou de conjunção?”. O próprio Agostinho
mostra, desde a sua pregação, o desejo de se fazer compreender pelos
humildes destinatários das suas palavras: «Que nos importam as reivindicações
dos gramáticos? É melhor que você nos compreenda enquanto proferimos barbáries,
do que ser abandonado por nós enquanto falamos eloquentemente”; ou: “É
preferível ser repreendido pelos professores de gramática do que não ser
compreendido pelas pessoas”.
Mas a mensagem cristã é por natureza dirigida a todos…
LUISELLI: Claro. As classes socialmente elevadas, a intelectualidade
romana, certamente não estão excluídas da redenção. Assim, a mensagem
cristã também se expressa através da cultura da intelectualidade
aristocrática. A este respeito, devemos ter em mente que o Cristianismo, embora
sendo e permanecendo uma “religião da Tradição”, é também uma “religião do
Livro”. Os apóstolos de Cristo e os seus sucessores trouxeram a Tradição
oral e o Livro, ou seja, o corpus de textos do Antigo e do Novo Testamento,
para todo o mundo. Para ler e compreender o Livro por excelência, os
intelectuais cristãos encontraram confortáveis e úteis os instrumentos de
leitura que a tradição escolástica romana e helenística disponibilizou. A
cultura profana greco-romana encontrou-se assim com a cristã. A cultura
profana consistia em gramática, retórica, artes liberais, que
posteriormente, a partir da antiguidade tardia e depois ao longo da Idade
Média, será denominado "trivium" e "quadrivio". Este
é outro tipo de inculturação, inteiramente dentro do mundo romano. Quando
a mensagem cristã é dirigida à intelectualidade pagã, utiliza uma linguagem
apropriada, valendo-se da parafernália retórica tradicional, como se vê, por
exemplo, na literatura que defende o credo cristão dos ataques dessa mesma
intelectualidade. Muitos cristãos eram discípulos de professores pagãos e
eles próprios se tornaram mestres da gramática e da retórica com os discípulos
pagãos. Desta forma, o cristianismo assimilou e salvou o produto mais
prestigiado do paganismo: grande parte da cultura clássica e da
escola. Resumindo,
E o que aconteceu nas encostas bárbaras do mundo ocidental?
LUISELLI: O cristianismo difundiu-se segundo a mesma dinâmica de inculturação
também entre os povos germânicos e entre os povos celtas, com o uso de línguas
e culturas locais quando se tratava de se expressar ao nível das massas
pobres. Quando, pelo contrário, foi necessário explicar o Livro por
excelência, não foi possível encontrar nessas áreas a culta tradição expressiva
e a doutrina gramatical e retórica presentes no mundo romano. Tornou-se
então necessário introduzir essas mesmas ferramentas interpretativas do texto
bíblico nas vertentes extra-romanas. Assim, naquelas áreas não romanas, a
inculturação do segundo nível, do mais alto nível, foi transformada em
“aculturação” no sentido romano. Assim, a dinâmica da inculturação,
utilizando línguas e culturas locais, legitimou e valorizou essas mesmas
línguas e culturas ao favorecer o nascimento de literaturas nacionais no
vernáculo. Enquanto a dinâmica de aculturação no sentido romano criou o
koiné intelectual de formação romana capaz de escrever e falar em latim.
Fonte: http://www.30giorni.it/
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