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domingo, 3 de setembro de 2023

Inculturação no primeiro milênio (1/2)

Os ofertantes apresentados a Santo Ambrósio pelos mártires Gervásio e Protásio, 
lado leste do cibório (século X), Basílica de Santo Ambrósio, Milão

Arquivo 30Dias – 08/09 - 2003

Inculturação no primeiro milênio

Bruno Luiselli, professor catedrático de literatura latina, explica em seu último livro como o cristianismo se difundiu entre os analfabetos e os pobres nos primeiros séculos, falando em sua língua e através de sua cultura. Desde o início, a dinâmica da inculturação foi uma necessidade óbvia, ainda que não teorizada. Entrevista

por Paolo Mattei

O professor Bruno Luiselli chama o período do século V ao VIII d.C. na Europa Ocidental de «era romano-bárbara». Séculos de convulsões históricas, de fronteiras violadas, de emigrações massivas e violentas de populações nómadas e pagãs nos territórios do antigo Império Romano. Séculos que sempre foram metaforizados às pressas na imagem do pôr-do-sol, com a noite de silêncio cultural e humano que naturalmente se seguiria. «Eu, por outro lado, sempre estudei este período com os olhos não voltados para o seu passado, mas para o seu futuro. Considero essa idade não em retrospectiva mas em perspectiva», explica ao 30DiasLuiselli, professor titular de literatura latina na Universidade La Sapienza e professor do Instituto Patrístico Augustianum de Roma. A perspectiva de “perspectiva” adoptada pelo professor permite-nos observar melhor a riqueza dos frutos que durante os séculos da época romano-bárbara amadureceram na Europa Ocidental em termos de crescimento humano e cultural. No seu último livro, A Formação da Cultura da Europa Ocidental (Herder, Roma 2003), Luiselli reconstitui as etapas dessas grandes transformações. E presta especial atenção ao processo de evangelização dos povos do Império e dos chamados bárbaros, utilizando as categorias sociológicas de cunhagem muito recente como “inculturação” e “aculturação”. Fizemos algumas perguntas a ele.

Qual é o sentido de falar de inculturação nos primeiros séculos do cristianismo?
BRUNO LUISELLI: Inculturação é um termo que constitui uma conquista de hoje, especialmente desde o Concílio Ecumênico Vaticano II. É a dinâmica através da qual a mensagem evangélica e a doutrina cristã entram nas línguas e nas culturas locais, são inculturadas precisamente, para chegar adequadamente aos destinatários da própria mensagem, da própria doutrina. Uma bibliografia agora rica floresceu sobre inculturação durante muitos anos; conferências são realizadas e muito se teoriza sobre isso. Então me perguntei: uma dinâmica desse tipo, mesmo que não fosse teorizada como agora, estava ausente no cristianismo antigo, na Igreja antiga? Comecei a refletir e percebi que muitos aspectos e dinâmicas do cristianismo primitivo nada mais eram do que inculturação. Não houve teorização sobre inculturação, mas era uma necessidade óbvia. E então decidi escrever esta história da cristianização dentro do mundo romano e nas vertentes ditas bárbaras, germânicas e celtas.

Você explica que uma das primeiras manifestações do conceito de inculturação pode ser encontrada no discurso de Paulo aos atenienses no Areópago.
LUISELLI: Sim, é o episódio que lemos em Atos dos Apóstolos 17,22-31. Paulo é o primeiro a afirmar a assunção do cristianismo de elementos da cultura pagã, justamente o altar ao deus desconhecido e o verso do poeta-filósofo grego Arato: “desse deus somos a linhagem”. O Apóstolo proclama que o altar que os pagãos dedicaram ao deus que não conhecem, eles ergueram inconscientemente ao Deus verdadeiro. Paulo então enuncia a assunção das realidades pagãs para usá-las para os propósitos da proclamação cristã. Mas gostaria de dizer que a inculturação na história do cristianismo se manifesta ainda antes do discurso no Areópago. Acontece pela primeira vez precisamente na própria Encarnação, quando o Verbo com P maiúsculo, Deus, assume a natureza humana e se expressa com a palavra do homem, ao longo do tempo, no lugar e na cultura particulares em que Jesus viveu. «O Verbo se fez carne e habitou entre nós», diz João.

Quem são os destinatários da inculturação cristã nos primeiros séculos?
LUISELLI: Em primeiro lugar, os pobres. Em Mateus 11:5 lemos que “a boa notícia é anunciada aos pobres”. E os destinatários da primeira das bem-aventuranças ( Mt 5,3) são «os pobres de espírito» que, na minha opinião, são precisamente os pobres, aqueles que não possuem riquezas. Isto é confirmado pela bem-aventurança paralela, a de Lucas 6,20, na qual se diz apenas “bem-aventurados os pobres”. Com efeito, o esclarecimento “no espírito” sublinha, na minha opinião, a condição que não permite aos pobres a arrogância e o carácter dogmático típicos das classes economicamente hegemónicas.

Como se expressa esta preferência pelos pobres na evangelização do mundo romano?
LUISELLI: Os pobres, as massas analfabetas, são o componente enormemente majoritário da sociedade antiga. Então a mensagem cristã é inculturada entre os pobres, entre as massas analfabetas, falando com a sua língua e com a sua cultura. Mostro neste livro como o latim, através do qual a mensagem cristã é expressa quando dirigida às massas do mundo romano, é um latim humilde e degradado. É por isso que faz os intelectuais pagãos torcerem o nariz. Os apologistas cristãos respondem às suas críticas com uma magnífica postura antigramatical e antipurista. Como explica Arnóbio: “O que é dito talvez seja menos verdadeiro se cometemos erros de número, de caso, de preposição, de particípio ou de conjunção?”. O próprio Agostinho mostra, desde a sua pregação, o desejo de se fazer compreender pelos humildes destinatários das suas palavras: «Que nos importam as reivindicações dos gramáticos? É melhor que você nos compreenda enquanto proferimos barbáries, do que ser abandonado por nós enquanto falamos eloquentemente”; ou: “É preferível ser repreendido pelos professores de gramática do que não ser compreendido pelas pessoas”.

Mas a mensagem cristã é por natureza dirigida a todos…
LUISELLI: Claro. As classes socialmente elevadas, a intelectualidade romana, certamente não estão excluídas da redenção. Assim, a mensagem cristã também se expressa através da cultura da intelectualidade aristocrática. A este respeito, devemos ter em mente que o Cristianismo, embora sendo e permanecendo uma “religião da Tradição”, é também uma “religião do Livro”. Os apóstolos de Cristo e os seus sucessores trouxeram a Tradição oral e o Livro, ou seja, o corpus de textos do Antigo e do Novo Testamento, para todo o mundo. Para ler e compreender o Livro por excelência, os intelectuais cristãos encontraram confortáveis ​​e úteis os instrumentos de leitura que a tradição escolástica romana e helenística disponibilizou. A cultura profana greco-romana encontrou-se assim com a cristã. A cultura profana consistia em gramática, retórica, artes liberais, que posteriormente, a partir da antiguidade tardia e depois ao longo da Idade Média, será denominado "trivium" e "quadrivio". Este é outro tipo de inculturação, inteiramente dentro do mundo romano. Quando a mensagem cristã é dirigida à intelectualidade pagã, utiliza uma linguagem apropriada, valendo-se da parafernália retórica tradicional, como se vê, por exemplo, na literatura que defende o credo cristão dos ataques dessa mesma intelectualidade. Muitos cristãos eram discípulos de professores pagãos e eles próprios se tornaram mestres da gramática e da retórica com os discípulos pagãos. Desta forma, o cristianismo assimilou e salvou o produto mais prestigiado do paganismo: grande parte da cultura clássica e da escola. Resumindo,

E o que aconteceu nas encostas bárbaras do mundo ocidental?
LUISELLI: O cristianismo difundiu-se segundo a mesma dinâmica de inculturação também entre os povos germânicos e entre os povos celtas, com o uso de línguas e culturas locais quando se tratava de se expressar ao nível das massas pobres. Quando, pelo contrário, foi necessário explicar o Livro por excelência, não foi possível encontrar nessas áreas a culta tradição expressiva e a doutrina gramatical e retórica presentes no mundo romano. Tornou-se então necessário introduzir essas mesmas ferramentas interpretativas do texto bíblico nas vertentes extra-romanas. Assim, naquelas áreas não romanas, a inculturação do segundo nível, do mais alto nível, foi transformada em “aculturação” no sentido romano. Assim, a dinâmica da inculturação, utilizando línguas e culturas locais, legitimou e valorizou essas mesmas línguas e culturas ao favorecer o nascimento de literaturas nacionais no vernáculo. Enquanto a dinâmica de aculturação no sentido romano criou o koiné intelectual de formação romana capaz de escrever e falar em latim.

Fonte: http://www.30giorni.it/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF