Arquivo 30Dias – 08/09 - 2003
Inculturação no primeiro milênio
Bruno Luiselli, professor catedrático de literatura latina, explica em seu último livro como o cristianismo se difundiu entre os analfabetos e os pobres nos primeiros séculos, falando em sua língua e através de sua cultura. Desde o início, a dinâmica da inculturação foi uma necessidade óbvia, ainda que não teorizada. Entrevista:
por Paolo Mattei
Mesmo dentro do Império havia, especialmente entre
os pobres, quem não sabia latim. Qual foi a dinâmica inculturativa neste
caso?
LUISELLI: Sim, mesmo dentro do mundo romano havia focos de resistência à
romanização e, portanto, resistência linguística à consequente
latinização. Alguns bispos sensíveis se esforçaram para utilizar as
línguas e culturas desses povos que hoje definimos como “alloglots”:
grupos que faziam parte do mundo político-institucional romano, mas que ainda
não haviam assimilado a cultura romana, tanto que eles não conseguiam se
expressar em latim. Um exemplo é o da África romana, para cuja
evangelização é importante ter presente o testemunho de Agostinho. Para
chegar às populações rurais, Agostinho considerou oportuno pregar na língua
púnica, hoje diríamos, mais cientificamente, na língua
“neopúnica”. Agostinho não estava em condições de pregar nessa língua,
embora conhecesse alguns elementos dela. Ele então recorreu a um de seus
diáconos, Lucilo, que falava púnico. Agostinho considerou tão importante a
colaboração deste diácono que recusou entregá-la ao bispo de Sitifi, irmão de
Lucilo, que a havia solicitado. Agostinho quis abordar isso humillimum
vulgus , e ele mesmo nos testemunhou que, além dos sermões, também
foram compostos salmos abecedários na língua púnica destinados
à educação cristã.
Como o Cristianismo se espalhou entre os povos não romanos?
LUISELLI: A dos primeiros séculos foi uma cristianização não oficial, não
organizada de cima. As ocasiões eram variadas. Prisioneiros, por
exemplo. Os cristãos capturados durante as incursões bárbaras atraíram a
atenção dos seus senhores, fascinados pela sua humanidade boa e
positiva. Esta dinâmica já está documentada na segunda metade do século
III. Um poeta cristão muito interessante, Commodian, nos diz isso
claramente quando fala de invasores góticos pagãos que alimentam cristãos
cativos. Outro canal eram os mercadores, protagonistas dos contatos entre
o mundo romano “intra limite” – deste lado das fronteiras do Império – e
o mundo “extra limite” – para além das fronteiras do mundo
romano. Tácito nos conta sobre isso. Não foi uma cristianização
erudita ou organizada. Eram antes encontros entre pessoas comuns, pessoas
do povo. Assim, para resumir: no lado gótico, no lado germânico - tanto
através do Reno como na esfera britânica, ou seja, entre os anglo-saxões - e no
lado celta, ou seja, no extremo oeste da Grã-Bretanha e na Irlanda, eu pude ver
como as primeiras sementes do cristianismo foram lançadas por essas pessoas
humildes. Assim nasceram os primeiros crentes. A Igreja oficial
chegou sempre mais tarde, isto é, quando tomou consciência desta presença de crentes
no mundo não romano. Então foram criados bispos isto é, no extremo
oeste da Grã-Bretanha e na Irlanda, pude ver como as primeiras sementes do
cristianismo foram espalhadas precisamente por estas pessoas
humildes. Assim nasceram os primeiros crentes. A Igreja oficial
chegou sempre mais tarde, isto é, quando tomou consciência desta presença de
crentes no mundo não romano. Então foram criados bispos isto é, no
extremo oeste da Grã-Bretanha e na Irlanda, pude ver como as primeiras sementes
do cristianismo foram espalhadas precisamente por estas pessoas
humildes. Assim nasceram os primeiros crentes. A Igreja oficial
chegou sempre mais tarde, isto é, quando tomou consciência desta presença de
fiéis no mundo não romano. Então foram criados bispos ad hoc que
foram enviados como pastores.
No seu livro você traça a história da cristianização até o século
IX. Em 813 realizou-se o Concílio de Tours, em certo sentido a
“oficialização” da inculturação cristã…
LUISELLI: O Concílio de Tours representa uma viragem de época, um momento
fundamental. No cânon 17 a comunidade dos padres conciliares estabelece
que os textos da pregação herdados da grande tradição
patrística cristã anterior não são mais repetidos em latim, mas em «rusticam
Romanam linguam aut Theodiscam, quo facilius cuncti possint intellegere quae
dicuntur», isto é, na língua rústica “romana” ou na língua “alemã”, então
que todos possam entender mais facilmente o que está sendo dito. Este é o
reconhecimento dos dois grandes componentes geoculturais que constituíram o império
de Carlos Magno: o mundo que fora romano, o mundo românico, de tradição latina,
até à região do Reno; e o mundo germânico, a partir da região do
Reno. No Concílio de Tours havia bispos de ambos os componentes. A
partir desse momento, a pregação teria sido de cunho românico na língua
“Romýna” mas “rústica”, isto é, nos dialetos descendentes do latim; por
outro lado, em falantes germânicos. Estas duas grandes realidades
geopolíticas – a antiga românica gaulesa, hoje francesa, e a germânica –
tornar-se-ão as nações protagonistas da história da Europa e do mundo.
Fonte: http://www.30giorni.it/
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