Os Mártires do Século XX
O presente artigo considera o fato do martírio
no século XX, paralelo ao dos primeiros séculos. A igreja quer reconhecer e
homenagear os heróis da fé, que sofreram em campos do concentração, prisões e
outras ocasiões, e dos quais alguns ainda vivem, merecendo toda a estima dos
contemporâneos.
A história se repete. O passado,
que parecia definitivamente ultrapassado, retorna com modalidades novas. É o
que se dá com a época dos mártires de 64 a 313, em que o Império Romano levou à
morte muitos milhares de cristãos. O século XX fez que os cristãos revivessem a
era do martírio não mais com anfiteatros e feras, mas em campos de
concentração, masmorras solitárias, fuzilamento.., Conforme o Papa João Paulo
II, é dever da igreja recordar este fato e comemorar os heróis que faleceram
por fidelidade a Cristo em quatro continentes do mundo contemporâneo:
“Estes dois mil anos depois do
nascimento de Cristo estão marcados pelo persistente testemunho dos mártires.
Também este século, que caminha
para o seu ocaso, conheceu numerosíssimos mártires, sobretudo por causa do
nazismo, do comunismo e das lutas raciais ou tribais. Sofreram pela sua fé
pessoas das diversas condições sociais, pagando com o sangue a sua adesão a
Cristo e à Igreja ou enfrentando corajosamente infindáveis anos de prisão e de
privações de todo gênero, para não cederem a uma ideologia que se transformou
num regime de cruel ditadura. Do ponto de vista psicológico, o martírio é a
prova mais eloquente da verdade da fé, que consegue dar um rosto humano
inclusive à morte mais violenta e manifestar a sua beleza mesmo nas
perseguições mais atrozes.
Inundados pela graça no próximo
ano jubilar, poderemos mais vigorosamente erguer ao Pai o nosso hino de
gratidão, cantando: Te martyrum candidatus laudat exercitus (o exército
resplandecente dos mártires canta os vossos louvores). Sim, é o exército daqueles
que “lavaram as suas vestes e as branquearam no sangue do Cordeiro” (Ap 7, 14).
Por isso, a Igreja espalhada por toda a terra deverá permanecer ancorada ao seu
testemunho e defender zelosamente a sua memória. Possa o povo de Deus,
revigorado na fé pelos exemplos destes autênticos campeões de diversa idade,
língua e nação, cruzar confiadamente o limiar do terceiro milênio. À admiração
pelo seu martírio associe-se, no coração dos fiéis, o desejo de poderem, com a
graça de Deus, seguir o seu exemplo, caso o exijam as circunstâncias” (Bula
Incarnationis Mysterium nº 13).
1. Martírio: que é?
A palavra mártir vem do grego
mártys, mártyros, que significa testemunha. O mártir é uma testemunha
qualificada que chega ao derramamento do próprio sangue. O Papa Bento XIV assim
se exprime:
“O martírio é a morte
voluntariamente aceita por causa da fé cristã ou por causa do exercício de
outra virtude relacionada com a fé”.
O Catecismo da Igreja Católica §
2473 retoma o conceito:
“O martírio é o supremo
testemunho prestado à verdade da fé; designa um testemunho que vai até a
morte”.
O Concílio do Vaticano II
desenvolve tal noção:
“Visto que Jesus, Filho de Deus,
manifestou Sua caridade entregando Sua vida por nós, ninguém possui maior amor
que aquele que entrega sua vida por Ele e seus irmãos (cf. 1Jo3, 16; Jo 15,
13). Por isso, desde o início alguns cristãos foram chamados e alguns sempre
serão chamados para dar o supremo testemunho de seu amor diante de todos os
homens, mas de modo especial perante os perseguidores. O martírio, por
conseguinte pelo qual o discípulo se assemelha ao Mestre, que aceita livremente
a morte pela salvação do mundo, e se conforma a Ele na efusão do sangue é
estimado pela Igreja com exímio dom e suprema prova de caridade. Se a poucos é
dado, todos, porém, devem estar prontos a confessar Cristo perante os homens,
segui-lo no caminho da cruz entre perseguições, que nunca faltam à Igreja”
(Lumen Gentium nº 42).
A propósito deve-se notar o
seguinte: O martírio é uma graça que tem sua iniciativa em Deus. Não compete ao
cristão procurar o martírio provocando os adversários da fé. A Igreja sempre
condenou esse comportamento, pois seria presunçoso (quem pode Ter certeza de
suportar corajosamente os tormentos do martírio?); além do quê, seria provocar
o pecado do próximo ou dos algozes.
Para que haja martírio
propriamente dito, requer-se que o cristão morra livremente, ou seja, aceite
conscientemente o risco de morrer por causa da sua fé. A aceitação da morte
pode ser explícita, como no caso em que o perseguidor deixa a escolha entre renegar
a fé (ou uma virtude relacionada com a fé) e a morte. A aceitação livre pode
ser implícita quando a pessoa sabe que o seu compromisso cristão pode levá-la
até a morte e, não obstante, é fiel a esse compromisso.
Para que a Igreja declare
oficialmente que alguém é mártir da fé, são efetuadas pesquisas a respeito de:
– a verdadeira causa da morte:
pode ser que um cristão seja condenado à morte não por ser cristão, mas por
estar envolvido em alguma campanha política ou de outra ordem;
– a livre aceitação da morte por
parte da vítima;
– graças ou milagres obtidos por
intercessão do(a) servo(a) de Deus.
O processo é iniciado na diocese
à qual pertencia a vítima ou na qual ela foi levada à morte. Continua e termina
em Roma, na Congregação para as Causas dos Santos.
O martírio é algo tão antigo
quanto a pregação da Palavra de Deus. Já ocorreu na história dos Profetas do
Antigo Testamento. No século II a.C. os irmãos macabeus sofreram a morte
cruenta por causa da sua fé (cf. 2Mc 7, 1-42), assim como o escriba Eleazar
(cf. 2MC 6, 18-31). O martírio teve seu ponto alto em Jesus Cristo. Santo
Estêvão é o primeiro mártir do Cristianismo após Jesus Cristo (cf. At 7,
55-60). No fim do século I o Apocalipse fala de “imensa multidão, que ninguém
pode numerar, daqueles que lavaram e alvejaram suas túnicas no sangue do
Cordeiro” (cf. Ap 7, 9.14). Em síntese, São Paulo afirma que “todos aqueles que
quiserem viver com piedade em Cristo Jesus, serão perseguidos” (2Tm 3, 12).
2. O Martírio no século XX
O martírio, tão presente em
nosso século como em nenhum outro, tem suas características próprias, assaz
paradoxais:
1) Este é o século em que as autoridades mais se preocuparam com não
fazer mártires cristãos. Assim o nacional-socialismo alemão condenou muitos
fiéis católicos não por causa da sua fé, mas por motivos políticos. Do lado
marxista, Stalin recomendava aos chefes de regime comunistas que nunca pusessem
a luta contra a Igreja no plano religioso, mas sempre no plano político, como
fazia Himmler na Alemanha. O aparato jurídico soviético dispunha de dezenas de
leis e decretos destinados a envolver os religiosos em tramas de ordem civil e
política, e nunca de ordem religiosa.
O Cardeal Alexandre Todea,
cabeça da Igreja Católica na Romênia, viu a liquidação da Igreja em 1948.
Tornou-se pastor clandestino de seus fiéis. Em abril de 1952, em Bucarest, o
general Nikolki, chefe da Securitate, chamou-o à sua presença depois que o Cardeal
foi descoberto e preso, e disse-lhe:
“Já que ninguém no século XX
morre por causa da sua fé, o Sr. Deve reconhecer que quis aniquilar os
comunistas”.
Respondeu-lhe o Cardeal: “Antes
disso, posso chamar um psiquiatra?”
– “Para quê?”
– “Para averiguar qual de nós
dois é louco: o senhor ou eu?”
O Cardeal foi finalmente
condenado à morte “como lacaio do Vaticano e inimigo do comunismo, constituindo
uma ameaça para o novo estilo de vida que leva ao povo a felicidade”.
2) O martírio incruento… Muitos fiéis foram sujeitos à tortura
física, psíquica e moral mais requintada possível sem chegar a morrer. O
encerramento em campos de concentração, com todo tipo de maus tratos, podia
durar dez, vinte, trinta ou mais anos, exigindo coragem e tenacidade
sobre-humanas. E, apesar de tudo, não lograram o título de mártires (apesar de
terem sofrido crudelíssimos tormentos). Conta um sacerdote sobrevivente de um
campo de concentração:
“Se eu soubesse o que me
aguardava no campo de concentração, eu teria preferido ser fuzilado. Mas, ao
contrário, eu me alegrei! Se eu tivesse sido fuzilado como tantos outros
sacerdotes, teria sido um mártir. Hoje trata-se de beatificar um ou outro deles,
e eu, que sofri por muito mais tempo do que eles, ainda posso cometer desatinos
sobre a terra”.
3) Há aqueles que morreram desconhecidos, como vítimas de violência e
maus tratos. Ninguém o testemunhou para poder proclamar seu heroísmo e sua
glória. Não tiveram a graça de confessar frente ao mundo o nome de Jesus,
embora tenham morrido por causa dele.
Os mártires do século XX foram,
muitas vezes, ignorados… na Alemanha, na URSS, na China, em Cuba… Em parte,
isto se deu por causa da censura das notícias que saiam de tais países; não era
(nem é hoje ainda) possível saber o que acontece nos bastidores de um país
totalitário. Em parte, também se deve à onda de secularismo que tem passado
pelas nações em que há liberdade religiosa: o consumismo e o bem-estar têm
levado muitos cristãos a quererem atenuar a loucura e o escândalo da fé,
afastando os homens de Cristo e da Igreja.
D. Estevão Bettencourt, osb
Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
Nº 456, Ano 2000, Pág. 194.
Fonte: https://cleofas.com.br/
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