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terça-feira, 12 de setembro de 2023

Os Mártires do Século XX (1/6)

Os mártires do Séculos XX (Crédito: Cléofas)

Os Mártires do Século XX

 POR PROF. FELIPE AQUINO

O presente artigo considera o fato do martírio no século XX, paralelo ao dos primeiros séculos. A igreja quer reconhecer e homenagear os heróis da fé, que sofreram em campos do concentração, prisões e outras ocasiões, e dos quais alguns ainda vivem, merecendo toda a estima dos contemporâneos.

A história se repete. O passado, que parecia definitivamente ultrapassado, retorna com modalidades novas. É o que se dá com a época dos mártires de 64 a 313, em que o Império Romano levou à morte muitos milhares de cristãos. O século XX fez que os cristãos revivessem a era do martírio não mais com anfiteatros e feras, mas em campos de concentração, masmorras solitárias, fuzilamento.., Conforme o Papa João Paulo II, é dever da igreja recordar este fato e comemorar os heróis que faleceram por fidelidade a Cristo em quatro continentes do mundo contemporâneo:

“Estes dois mil anos depois do nascimento de Cristo estão marcados pelo persistente testemunho dos mártires.

Também este século, que caminha para o seu ocaso, conheceu numerosíssimos mártires, sobretudo por causa do nazismo, do comunismo e das lutas raciais ou tribais. Sofreram pela sua fé pessoas das diversas condições sociais, pagando com o sangue a sua adesão a Cristo e à Igreja ou enfrentando corajosamente infindáveis anos de prisão e de privações de todo gênero, para não cederem a uma ideologia que se transformou num regime de cruel ditadura. Do ponto de vista psicológico, o martírio é a prova mais eloquente da verdade da fé, que consegue dar um rosto humano inclusive à morte mais violenta e manifestar a sua beleza mesmo nas perseguições mais atrozes.

Inundados pela graça no próximo ano jubilar, poderemos mais vigorosamente erguer ao Pai o nosso hino de gratidão, cantando: Te martyrum candidatus laudat exercitus (o exército resplandecente dos mártires canta os vossos louvores). Sim, é o exército daqueles que “lavaram as suas vestes e as branquearam no sangue do Cordeiro” (Ap 7, 14). Por isso, a Igreja espalhada por toda a terra deverá permanecer ancorada ao seu testemunho e defender zelosamente a sua memória. Possa o povo de Deus, revigorado na fé pelos exemplos destes autênticos campeões de diversa idade, língua e nação, cruzar confiadamente o limiar do terceiro milênio. À admiração pelo seu martírio associe-se, no coração dos fiéis, o desejo de poderem, com a graça de Deus, seguir o seu exemplo, caso o exijam as circunstâncias” (Bula Incarnationis Mysterium nº 13).

1. Martírio: que é?

A palavra mártir vem do grego mártys, mártyros, que significa testemunha. O mártir é uma testemunha qualificada que chega ao derramamento do próprio sangue. O Papa Bento XIV assim se exprime:

“O martírio é a morte voluntariamente aceita por causa da fé cristã ou por causa do exercício de outra virtude relacionada com a fé”.

O Catecismo da Igreja Católica § 2473 retoma o conceito:

“O martírio é o supremo testemunho prestado à verdade da fé; designa um testemunho que vai até a morte”.

O Concílio do Vaticano II desenvolve tal noção:

“Visto que Jesus, Filho de Deus, manifestou Sua caridade entregando Sua vida por nós, ninguém possui maior amor que aquele que entrega sua vida por Ele e seus irmãos (cf. 1Jo3, 16; Jo 15, 13). Por isso, desde o início alguns cristãos foram chamados e alguns sempre serão chamados para dar o supremo testemunho de seu amor diante de todos os homens, mas de modo especial perante os perseguidores. O martírio, por conseguinte pelo qual o discípulo se assemelha ao Mestre, que aceita livremente a morte pela salvação do mundo, e se conforma a Ele na efusão do sangue é estimado pela Igreja com exímio dom e suprema prova de caridade. Se a poucos é dado, todos, porém, devem estar prontos a confessar Cristo perante os homens, segui-lo no caminho da cruz entre perseguições, que nunca faltam à Igreja” (Lumen Gentium nº 42).

A propósito deve-se notar o seguinte: O martírio é uma graça que tem sua iniciativa em Deus. Não compete ao cristão procurar o martírio provocando os adversários da fé. A Igreja sempre condenou esse comportamento, pois seria presunçoso (quem pode Ter certeza de suportar corajosamente os tormentos do martírio?); além do quê, seria provocar o pecado do próximo ou dos algozes.

Para que haja martírio propriamente dito, requer-se que o cristão morra livremente, ou seja, aceite conscientemente o risco de morrer por causa da sua fé. A aceitação da morte pode ser explícita, como no caso em que o perseguidor deixa a escolha entre renegar a fé (ou uma virtude relacionada com a fé) e a morte. A aceitação livre pode ser implícita quando a pessoa sabe que o seu compromisso cristão pode levá-la até a morte e, não obstante, é fiel a esse compromisso.

Para que a Igreja declare oficialmente que alguém é mártir da fé, são efetuadas pesquisas a respeito de:

– a verdadeira causa da morte: pode ser que um cristão seja condenado à morte não por ser cristão, mas por estar envolvido em alguma campanha política ou de outra ordem;

– a livre aceitação da morte por parte da vítima;

– graças ou milagres obtidos por intercessão do(a) servo(a) de Deus.

O processo é iniciado na diocese à qual pertencia a vítima ou na qual ela foi levada à morte. Continua e termina em Roma, na Congregação para as Causas dos Santos.

O martírio é algo tão antigo quanto a pregação da Palavra de Deus. Já ocorreu na história dos Profetas do Antigo Testamento. No século II a.C. os irmãos macabeus sofreram a morte cruenta por causa da sua fé (cf. 2Mc 7, 1-42), assim como o escriba Eleazar (cf. 2MC 6, 18-31). O martírio teve seu ponto alto em Jesus Cristo. Santo Estêvão é o primeiro mártir do Cristianismo após Jesus Cristo (cf. At 7, 55-60). No fim do século I o Apocalipse fala de “imensa multidão, que ninguém pode numerar, daqueles que lavaram e alvejaram suas túnicas no sangue do Cordeiro” (cf. Ap 7, 9.14). Em síntese, São Paulo afirma que “todos aqueles que quiserem viver com piedade em Cristo Jesus, serão perseguidos” (2Tm 3, 12).

2. O Martírio no século XX

O martírio, tão presente em nosso século como em nenhum outro, tem suas características próprias, assaz paradoxais:

1) Este é o século em que as autoridades mais se preocuparam com não fazer mártires cristãos. Assim o nacional-socialismo alemão condenou muitos fiéis católicos não por causa da sua fé, mas por motivos políticos. Do lado marxista, Stalin recomendava aos chefes de regime comunistas que nunca pusessem a luta contra a Igreja no plano religioso, mas sempre no plano político, como fazia Himmler na Alemanha. O aparato jurídico soviético dispunha de dezenas de leis e decretos destinados a envolver os religiosos em tramas de ordem civil e política, e nunca de ordem religiosa.

O Cardeal Alexandre Todea, cabeça da Igreja Católica na Romênia, viu a liquidação da Igreja em 1948. Tornou-se pastor clandestino de seus fiéis. Em abril de 1952, em Bucarest, o general Nikolki, chefe da Securitate, chamou-o à sua presença depois que o Cardeal foi descoberto e preso, e disse-lhe:

“Já que ninguém no século XX morre por causa da sua fé, o Sr. Deve reconhecer que quis aniquilar os comunistas”.

Respondeu-lhe o Cardeal: “Antes disso, posso chamar um psiquiatra?”

– “Para quê?”

– “Para averiguar qual de nós dois é louco: o senhor ou eu?”

O Cardeal foi finalmente condenado à morte “como lacaio do Vaticano e inimigo do comunismo, constituindo uma ameaça para o novo estilo de vida que leva ao povo a felicidade”.

2) O martírio incruento… Muitos fiéis foram sujeitos à tortura física, psíquica e moral mais requintada possível sem chegar a morrer. O encerramento em campos de concentração, com todo tipo de maus tratos, podia durar dez, vinte, trinta ou mais anos, exigindo coragem e tenacidade sobre-humanas. E, apesar de tudo, não lograram o título de mártires (apesar de terem sofrido crudelíssimos tormentos). Conta um sacerdote sobrevivente de um campo de concentração:

“Se eu soubesse o que me aguardava no campo de concentração, eu teria preferido ser fuzilado. Mas, ao contrário, eu me alegrei! Se eu tivesse sido fuzilado como tantos outros sacerdotes, teria sido um mártir. Hoje trata-se de beatificar um ou outro deles, e eu, que sofri por muito mais tempo do que eles, ainda posso cometer desatinos sobre a terra”.

3) Há aqueles que morreram desconhecidos, como vítimas de violência e maus tratos. Ninguém o testemunhou para poder proclamar seu heroísmo e sua glória. Não tiveram a graça de confessar frente ao mundo o nome de Jesus, embora tenham morrido por causa dele.

Os mártires do século XX foram, muitas vezes, ignorados… na Alemanha, na URSS, na China, em Cuba… Em parte, isto se deu por causa da censura das notícias que saiam de tais países; não era (nem é hoje ainda) possível saber o que acontece nos bastidores de um país totalitário. Em parte, também se deve à onda de secularismo que tem passado pelas nações em que há liberdade religiosa: o consumismo e o bem-estar têm levado muitos cristãos a quererem atenuar a loucura e o escândalo da fé, afastando os homens de Cristo e da Igreja.

D. Estevão Bettencourt, osb
Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
Nº 456, Ano 2000, Pág. 194.

Fonte: https://cleofas.com.br/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF